César Leal
Soares Feitosa Psi, a Penultima
A publicação do livro Psi, a
Penúltima, de Soares Feitosa, veio revelar um fenômeno novo e
altamente significativo. Para mim não constitui surpresa o
aparecimento desse livro. Fui o primeiro a pôr em jogo minha
reputação ao escrever sobre os seus poemas e mostrar aos leitores —
sem nenhuma restrição — a força de uma sensibilidade nova que reunia
ao talento inato a capacidade de utilizar o computador na criação de
uma escrita visual de beleza impressionante. Era fácil, na época,
desacreditar Soares Feitosa. Difícil seria atingir os juízos de
valor de quem dedicou toda a vida à poesia, ao seu ensino e à
crítica do poema. Os juízos de valor são subjetivos. Tal lição que
vem da tradição da crítica inglesa, passa por Coleridge e chega a
Northrop Frye, significa que os juízos de valor podem ser
transferidos de “forma indireta” mas não diretamente aprendidos.
Seria necessário um tratado pra expor tudo o que se torna
indispensável à compreensão deste tópico. Mas convém aclarar o
caminho lembrando uma frase de Northrop Frye: “Os juízos de valor se
fundam no estudo da literatura; o estudo da literatura jamais pode
fundar-se no juízo de valor”.
Os Quixotes irrefletidos — diria
Eduardo Portella — não sabem o que isso significa. Eles julgam que o
leitor competente não tem capacidade para compreender o potencial de
despeito que se oculta por trás de suas atitudes, de seus escritos,
se é que tais textos possam ser chamados de “escrita”. Mas qualquer
estudante de literatura sabe que esse pensamento dominante na teoria
literária e expresso por Frye, é um pensamento muito simples. Não é
necessário sequer que o leitor, para compreendê-lo, seja um “leitor
perfeito”, aquele tipo de leitor de que fala a teoria psicológica
elaborada pela crítica prática. Antes de tudo um leitor inteligente.
Há muitos leitores inteligentes no Brasil, inclusive no Recife.
Mas para que falar em questões
teóricas, se temos diante dos olhos poemas com a força de Lua de
Março, de Soares Feitosa, onde os pássaros, o vento, insetos e
árvores conversam numa linguagem plena de beleza, como se
estivéssemos diante de um novo Esopo ou La Fontaine? As imagens e
visualizações gráficas — e não são poucas — impedem-me a citação dos
versos desses poemas, que além de tudo, à semelhança de Lorca, W. H.
Auden e T. S. Eliot, são de grande extensão. O que não se pode é
ficar indiferente à linguagem mágica, apocalíptica e esplêndida de
Soares Feitosa. A originalidade é um valor e a voz desse poeta é uma
voz original. Ao apresentá-lo aos leitores, em fevereiro de 1994,
concluí afirmando: “guardem na memória (a memória da mídia é muito
fraca) o nome desse poeta. Os críticos competentes irão lembrar seu
nome no próximo século”.
Acredito que não fui
suficientemente profeta nessa previsão. Não foi preciso esperar pelo
século XXI. Mostrando a grandeza de seus versos já surgiram estudos
de Marcelo Coelho, de Sèbastien Joachim, além da idônea e magnífica
análise de Wilson Martins, em recente artigo publicado em “Prosa e
Verso” de O Globo. Wilson Martins é mais que um crítico: é um
humanista que durante 30 anos ensinou literatura brasileira na
Universidade de Nova Iorque.
Entendo que a maior influência que
atua sobre um poeta é a própria força da tradição literária. Ela
impõe — por ser a literatura uma instituição — modelos, paradigmas,
estruturas. Mas a práxis poética de Soares Feitosa contesta, por seu
fazer a priori, ele próprio criando seus modelos, essa afirmativa —
aliás válida para a maioria dos poetas, mas não para ele. Feitosa
confisca padrões estabelecidos e impõe uma ordem nova à escrita
poética. Digamos escrita e não escritura, esse francesismo tão
disseminado em nossos estudos literários. Mobilizando as “forças
secretas” da língua, constrói uma expressão poética que dá as costas
à língua como criação social. Essas “forças secretas” não são
misteriosas porque existem na “voz” dos ventos, das águas, dos
insetos, das abelhas, dos répteis; nas ondas, na luz, no desenho das
estrelas (constelações), nas máquinas, nas aves migratórias, nos
alfabetos, na cabala, nos números, enfim, na enorme variedade da
vida.
Utilizando uma fantasia (não é
“ditatorial”) como a de Rimbaud, Soares Feitosa é um intérprete da
alma humana e “gosta de falar de coisas” — na expressão de Sebastião
Uchoa Leite, ao comentar os seus poemas. Hegel ensina que o
“elemento pessoal da poesia se revela mais explicitamente quando
alguma circunstância real é oferecida ao poeta e lhe proporciona
ocasião para desenvolver seu próprio pensamento”. É o que ocorre com
Soares Feitosa. A realidade é sua matéria. Mas a expressão do real é
nele pura magia de linguagem. Natureza e cultura se conjugam em
Soares Feitosa enquanto na maioria dos poetas tais forças permanecem
separadas. Daí criar os seus poemas como a natureza cria os seres e
as coisas. Na imagem presente no espírito se encontra centrada a
originalidade de sua expressão. A poesia de Soares Feitosa é o
oposto da minha. Mas isso não significa que eu não o reconheça como
um grande poeta.
Sertanejo de três séculos, com
domínio das literaturas clássicas, conhecedor dos segredos do grego
e do latim, aprendido não somente na escola mas como produto humano
da educação daquelas famílias severas que nos séculos XVII e XVIII
ocuparam todo o sertão dos Inhamuns, no Ceará, Soares Feitosa é um
dos poucos que escuta e traduz a voz das árvores: “A palmeira falou
— puro ouro, puro verde/ Prefiro o chão / profundo, para enfiar, /
prefiro o céu, / vertical, para subir / donde raiz e céu contempla
tudo / estou no mesmo canto / todos os dias / todas as horas / tenho
pacto com o Sol, / que sabe e precisa de mim”. São versos fortes que
exigem uma sensibilidade nova para sentir os pontos de emoção que
neles se escondem. O grande poeta Paul Elouard, contemporâneo de
Manuel Bandeira em Clavadel (Suíça) ao escrever sobre as palmeiras,
em verso requintadamente moderno, disse:
As árvores a copa orvalhada
de Sol.
Retas
Dou ao meu sol a seiva evaporada,
O sol repousa sobre o mármore das folhas
Como a água do fundo no fundo adormecido.
Soares Feitosa responde ao poeta
francês: [Lua de Março]
Palmeira, puro ouro:
Sem a franja de minha copa
O clarão do Sol seria um luzeiro sem matiz.
Ele sabe!
O tamanho e a direção de minha sombra
Bendizem a aurora,
Abençoam o crepúsculo.
Ao ler o poema Ayrton, o pintor
Francisco Brennand, poeta que também é admirador de Soares Feitosa,
escreveu:
Quando Soares Feitosa desvendou
o mistério da prematura morte dos jovens
(só eles sabem morrer com dignidade)1
sua voz distanciou-se no prado metálico com a velocidade,
com a mesma pressa das parábolas do Cristo —
na interpretação Matheus & Pasolini.
Não tinham tempo a perder.
Não havia pausa nem Piedade:
antes configurava-se o Eterno!
Os alemães têm razão: o jardim da Poesia tem muitas flores.
Notas:
1) frase de SF
Leia obra poética de Soares Feitosa
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