CONTRA O MAL-ESTAR DA MEDIOCRIDADE
Gazeta do Povo,
Curitiba, PR, 14.10.2000
CADERNO G
Reunião
de ensaios de Daniel Piza traz uma de nossas mais coerentes vocações
críticas
A idealização
é o principal recurso de uma sociedade em que imperam o poder da
midia e a ética do consumo. E é contra ela que se ergue o
crítico, este animal deslocado em culturas que se perderam no jogo
de reflexo das vaidades fáceis. Se a grande maioria dos produtores
culturais está buscando confirmação no outro e confirmando-se
nele, nem que para isso tenha que negar de forma agressiva o diferente,
o crítico será sempre um estraga-prazeres. Tal posição,
no entanto, é que determina a sua importância numa era em
que poucos distinguem a distância entre a arte e o artefato.
Crítico renitente,
Daniel Piza sistematiza uma súmula de sua reflexão sobre
cultura em Questão de gosto (Record, 2000), livro em que avulta
a sua opção por uma visada ?clássica? (palavra que
uso aqui sem nenhum sentido epocal ou estilístico) das manifestações
de arte, assumindo que é movido por uma questão de bom gosto,
já que toma como repulsivo tudo que há de epidérmico
na cultura, mesmo que venha com a mais respeitada das grifes e no mais
requintado pacote. Piza é antes de tudo um espírito independente,
para quem não pesam os princípios limitadores que configuram
o nacionalismo, a vanguarda, as minorias sexuais, a sociologia etc.
Observando tudo de um mirante
fincado além da língua e da nação, que alguns
tomam por excessivamente elitista e cosmopolita, ele consegue o distanciamento
cada vez mais raro em intelectuais comprometidos com o calor da hora e
das conveniências. O seu cosmopolitismo, dessa forma, tem um sentido
positivo por livrá-lo do pensamento de confraria característico
de nações periféricas e ressentidas, prontas para
uma auto-mitificação que lhes concede a ilusão da
perenidade.
Entrando em cena nos anos
90, Daniel Piza rompeu com os valores da contracultura, que ainda habitam
o centro do campo do poder, reestabelecendo padrões de exigência
de qualidade e se insurgindo contra as leituras muito coladas ao agora.
O seu lugar geométrico é a fronteira entre a tradição
e as manifestações atuais, como confessa na introdução:
?tentei tratar da cultura com um olho na herança e outro no presente?
(p.14), posição reforçada páginas adiante por
uma declaração de Octavio Paz, para quem ser culto é
pertencer a todos os tempos e lugares sem deixar de pertencer a seu tempo
e lugar. Esta dupla latitude vai ser responsável por um recorte
desmistificador das percepções equivocadas dos sectários
do presente. Na primeira parte de Questão de gosto, o autor nega
a falácia da contracultura e propõe uma conexão com
a civilização que, segundo um aformismo, é ?não
ser considerado elitista por gostar do que uma minoria gosta, nem pretensioso
por ser inconformista? (p.65).
Quem assume este ponto de
vista enraizado na tradição tende, naturalmente, a pensar
o aqui e o agora pelo seu potencial de transcendência histórica.
O hoje tem que ser um legado transmissível. Ao interpretar o Brasil,
Piza recusa o que ele chama, corretamente, de mitos paralisantes (tais
como a antropofagia, Zé Celso, Glauber Rocha, poesia concreta e
Oiticica), sustentados pelo clubismo que nos caracteriza.
Daí a literatura brasileira
aparecer centrada em seu maior nome, Machado de Assis, uma espécie
de mito fundador da grande literatura produzida no país, por sua
aversão a posições extremadas e esquemáticas,
o que lhe possibilitou uma condição intermediária
entre a herança européia e a vivência da situação
colonial do país, fonte de um estilo de ironias e de permanente
questionamento. A despeito desta característica de nosso maior escritor,
a crítica machadiana vem tentando simplificar a leitura de sua obra,
colocando-se sempre num de seus pólos, o que é mais um sinal
do primarismo do pensamento brasileiro, incapaz de perceber este meio-termo
que, segundo Piza, é a marca inconformista de Machado.
Ao analisar a literatura
brasileira pós-Machado, o autor persegue justamente aqueles que
souberam descender deste olhar desconfiado do país, elegendo uma
linhagem que passa, entre outros, por Euclides da Cunha, Monteiro Lobato,
Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto. Ao mesmo tempo, ele
recusa certas posições vinculadas demais ao dado local ou
ao elemento externo, cujos representantes típicos são, respectivamente,
Mário e Oswald de Andrade. Mesmo um Manuel Bandeira e um Vinicius
de Moraes teriam se entregado de forma um tanto simplista, em alguns momentos
de suas obras, aos valores do cotidiano. E Clarice Lispector seria por
demais simbolista e imprecisa, destinada a um consumo sectário,
principalmente pelas meninas, gays e professoras de literatura, não
conseguindo atingir uma posição ?clássica? (novamente
entre aspas), indispensável em uma literatura que se queira universal.
É um classicismo moderno
exemplar que ele encontra em um João Cabral, tão pouco compreendido
por seus acólitos: ?como os melhores criadores do país, ele
soube resistir à carnavalização e ao cartesianismo,
e, na adequação elíptica entre expressão e
construção, foi um grande poeta brasileiro moderno? (p.165).
Tratando também da
literatura internacional, Daniel Piza recoloca em termos corretos obras
de grandes autores treslidos no Brasil, como Pound, Joyce e Eliot. Porque
um de nossos males é fazer leituras viciadas, reduzindo os mestres
a pequenas dimensões para justificar nossa própria produção.
O caso mais gritante é a leitura concretista de Pound, transformado
em ícone da mística do novo, quando sua obra prioriza justamente
o contrário: ?o que Pound está defendendo não é
o novo pelo novo, o novo como ruptura, o novo nascido do oco - mas o novo
nascido da tradição, reescrita, repensada, retrabalhada,
o novo que continua o que foi feito de melhor antes?(p. 237). Mais adiante,
depois de mostrar os equívocos vanguardistas sobre a obra deste
autor, Daniel conclui: ?o que ele mais amou foi sua verdadeira herança,
a tradição viva e suas chamas ainda por conquistar?(p. 243).
O mesmo processo de limpeza dos preceitos críticos agregados a obras
fundamentais desta modernidade clássica se dá com relação
a Volpi, um pintor que teve o sentido de sua produção apropriado
indevidamente. Piza restitui-lhe a espessura humana, tirando-o do limbo
dos formalistas ao interpretar suas bandeirinhas antes como ?emblemas de
uma arte que busca a alegria infantil, não pura mas descompromissada,
que é lembrada em festas populares?(p.268), do que como representação
extrema da depuração artística e da gratuidade do
grafismo, tal como querem os concretistas.
Tanto nas artes plásticas
como na literatura, Piza se posiciona contra os vanguardismos vazios, os
modernismos modorrentos, as rupturas cegas, os modismos da era da publicidade,
crente no poder perenizador da grande arte - sentido histórico da
existência do homem enquanto animal cultural.
Dono de um estilo decidido,
de uma cultura universal sem ser pernóstica e de uma linguagem aberta,
Daniel Piza, com este livro, devolve ao crítico a sua grandeza na
cultura brasileira, vendo-o como um profissional que se aproxima e se distancia
do objeto de análise, conquistando este meio-termo civilizado, sem
o qual não existe reflexão isenta e nem possibilidade de
juízo sério. O grande segredo é possuir esta coisa
rara em nosso jornalismo: a inteligência, definida em um de seus
aforismos sem juízo, como a capacidade de ser seletivo sem ser discriminatório. |