Cida Sepúlveda
55
Valmir desceu do
fusca com a arma na mão apontada para baixo, braço estirado rente à
perna. Vi seus dedos enrijecidos, as veias saltando nervosas.
Aproximou-se do rapaz e disse em tom arrogante: quem é barbeiro?
Eram seis da tarde de uma quarta movimentada na avenida Raimundo de
Sá. O posto de gasolina explodira em gargalhadas quando o guarda da
Associação Comercial arrancou e passou por cima da borracha da bomba
provocando um estrondo.
Iria completar
três meses de experiência na nova função no domingo seguinte.
Sonhava com a efetivação, depois de tantos anos trabalhando como
ajudante de pedreiro, serviço sujo e sem valor. Passara por testes,
cursos, entrevistas, antes de vestir a farda e carregar a pistola.
Magro, alto, quieto, moreno índio, cabelos encaracolados, olhos
miúdos, rosto longo e fino, tinha 40 anos de vida lascada em
lavouras e construções pela cidade – onde houvesse chance lá estava
ele com a mão na massa.
Não estudou.
Paranaense do interior, pobre de chão e de idéias, suava para por
arroz, feijão e ovo na mesa. Três filhos homens cresciam nos dois
cômodos que alugava em meio a barracos de tábua e construções
improvisadas de tijolos. Ia e vinha no fusca equipado com cassetete
e outros artefatos, como canivetes, facas, enfim, uma boa dose de
armamentos leves. Antes de saltar do carro olhou pelo retrovisor e
viu o moço em pé, riso de escárnio, debruçado sobre o capô do opala
vermelho.
Viu também sua
ira nos olhos estatelados. Ira de séculos, pensei, quando o vi sacar
da arma e atirar à queima-roupa no jovem que gesticulava,
protestava, mostrava-lhe os documentos e o desafiava com aquela
irresponsabilidade dos vinte. Invejara-o decerto, eis a única
explicação para tanta morte.
O moço caiu ao
primeiro tiro. No chão tomou mais dois. Valmir entrou no fusca e
partiu em alta velocidade. Pegou uma estrada qualquer. O interior se
ramifica em muitos interiores. Num deles, se acharia seguro e em
condições de planejar a seqüência da fuga.
De trabalhador
braçal, pai de família, sem passagem pela polícia, tornou-se um
procurado, um perigoso foragido. Rodou o Brasil, norte e nordeste,
Minas, até voltar para o tronco, ali onde as raízes não se acabam,
mesmo que devastadas pelas pestes e idades. Passaram-se dezoito
anos, daqui dali, sem carteira assinada, sem documento, fazendo
bicos e biscates.
Ouviu falar que
o Supermercado Linha Azul estava pegando segurança aos montes.
Salário bom, seguro saúde, transporte, treinamento, uniforme, cesta
básica. Fez a ficha, pediram identidade, perdera. Deram uns dias
para ele tirar outra.
Saiu de casa bem
cedo na segunda. Entrou no órgão do estado onde a carteira saía na
hora, pegou a senha, sentou. O povaréu se aglomerava em filas e
bancos. Arrepiou-se de pensar que voltaria ao mundo após
apresentar-se à balconista, dar seu nome, a foto três por quatro e
logo em seguida pegar a identidade...o tempo passara, muito, não
precisava temer, mas tremia.
O painel apitou
e mostrou o número 55. Ele se levantou lívido. Sente-se, disse a
balconista, uma jovem pálida e corcunda. O senhor perdeu a
identidade? Qual o seu nome, por favor? Ela digitou Valmir Aparecido
Silva com uma rapidez que o deslumbrou: aqueles dedos magros
pareciam ganchos da máquina. Eram ganchos mágicos que iriam
devolver-lhe o nome e o rosto, com apenas alguns toques, sem
desconfianças.
Respirou fundo,
baixou os olhos, relaxou braços e pernas...já estava velho, 58 anos,
sentia-se um prisioneiro...das andanças, dos medos, das fugas, dos
pensamentos. Não percebeu a moça se levantar e ir ao fundo da
repartição. Quando se deu conta, dois policiais o cercavam e o
algemavam.
Não protestou.
Condenado pelo júri popular, retraiu-se na cadeira dos réus e chorou
sua derrota. Vestia camisa branca, calça azul e rezara durante as
quatro horas de julgamento, de olhos baixos e mãos suplicantes.
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