Cláudio Willer
cjwiller@uol.com.br
Como ler García
Lorca?
Criador múltiplo,
Federico García Lorca sobrepôs gêneros. Teatralizou
o poema e
poetizou o drama. Transformou
o teatro em arte total, trabalhando com todas as
suas modalidades, dos fantoches
à experimentação vanguardista, acrescentando-lhe música
e dança. Fez de ambos, poemas e peças de teatro, coisa para
ser declamada e cantada. Foi compositor (na discografia, destaque para
a gravação de composições suas com o guitarrista
Narciso Yepes e a cantora Tereza Berganza) e artista plástico. Transitou
do regionalismo, especialmente andaluz (sendo notável sua recuperação
do Cante Jondo, cantar de origem cigana) à mais ousada e desenfreada
invenção. Os tão populares Pranto para Ignácio
Sanchez Mejías, o Romanceiro Gitano, as Canções, são
poemas dramáticos, escritos para serem falados. Recuperam a tradição
oral. E muitas das falas dos personagens em peças como Bodas de
Sangue e Yerma são declamações de poemas. As peças
na linha de frente do repertório teatral também receberam
versões cinematográficas por diretores como Saura e Bardén.
Muitos de seus poemas são peças obrigatórias no repertório
da declamação, como o Pranto para Ignacio Sanches Mejías
(Eram as cincoda tarde... às cinco em ponto da tarde...) e o Romance
Sonâmbulo do Romaceiro Gitano (Verde que te quero verde...). É
possível afirmar que a popularidade da declamação
de poemas e do sarau literário se mantiveram pela contribuição
lorqueana (pessoal, inclusive, pois foi um grande declamador, com apresentações
apoteóticas em público). Expoente da vanguarda espanhola,
da geração de 27 (e que grupo, e que geração!
- Rafael Alberti, Jorge Guillém, Vicente Aleixandre, Gerardo Diego,
Luís Cernuda, Dámaso Alonso, mais seu ambivalente amigo e
inimigo Buñuel, seu sedutor Dalí...), integrou a essa modernidade
a herança do barroco e de Gongora. Foi ao mesmo tempo clássico
e vanguardista. Cerebral e delirante. Apolíneo e dionisíaco.
Solar e noturno.
As homenagens a Lorca, por
ocasião de seu centenário de nascimento (a 5 de junho passado),
não só na Espanha, mas no Brasil e no restante do mundo,
confirmam tratar-se de um autor popular. De toda a literatura espanhola,
o único mais editado e traduzido do que ele é Cervantes.
Além de ser lembrado, comentado e estudado, Lorca também
compareceu em outros autores. Foi o poeta de outros poetas. Há coletâneas
e antologias com as páginas magistrais sobre ele e sobre sua morte,
por Antonio Machado, por seus contemporâneos e amigos Luís
Cernuda, Jorge Guillém, Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Miguel
Hernandez, por Pablo Neruda, que lhe dedicou textos inflamados em Espanha
em meu Coração (que integra o livro Tercera Residencia),
e por Stephen Spender, seu tradutor em inglês. Allen Ginsberg mostrou
que a Ode a Walt Withman foi um dos poemas que o inspiraram a escrever
Uivo.
No Brasil, dedicaram-lhe
poemas Drummond, Bandeira, Vinícius de Morais e
Paulo Mendes Campos. Este
último, em sua Ode a Federico García Lorca, fez
uma montagem de textos lorqueanos,
mostrando que sua própria produção poética
era um diálogo, mesmo frustrado e impossível, com o interlocutor
ausente: Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino que lançasse
uma pedra no fundo de um poço e em vão esperasse o baque
final tão cheio de paz.Contemporâneos, como Lupe Cotrim Garaude,
o citaram e parafrasearam com liberalidade. Dessa geração,
são autores de poemas sobre Lorca, entre outros, Hilda Hilst, Renata
Pallottini, Roberto Piva, Lindolf Bell. Seria possível uma sessão
completa só com leituras de poemas de qualidade sobre Lorca por
autores brasileiros. E valeria a pena um estudo mais extenso sobre essa
influência de Lorca no Brasil, desde os anos 30. Um dos possíveis
temas deste estudo seria o exame de como alguns desses autores citam ou
espelham mais o Lorca do Romancero Gitano, e outros o Lorca do Poeta em
Nova York. Outro tema, a difusão oral de sua poesia, complementando
a encenação de suas peças, principalmente através
da notável declamadora (e também consistente poeta) Mariajosé
Carvalho.
Em São Paulo, cidade
na qual estão presentes, não apenas traços de imigração
espanhola, mas também
dos refugiados do franquismo, especialmente através do Centro Republicano
Espanhol, conduzido, entre outros, por Gabriel Otamendi, a evocação
de Lorca teve um significado político. As homenagens em curso, estas
de 1998, fazem parte de uma seqüência que inclui a mobilização
de 1968 (presentes Paulo Duarte, Cacilda Becker, Ruth Escobar, Renata Pallottini,
entre outros) no Teatro Municipal e na Biblioteca Mário de Andrade,
em favor da inauguração do monumento a Lorca por Flávio
de Carvalho. Logo em seguida, a obra seria depredada por militantes do
CCC, ensejando novas manifestações, em favor de sua recuperação:
leituras de poesia em 1977 e uma sessão na Biblioteca Mário
de Andrade em 1978. Tais sessões nem chegavam a ter um duplo sentido,
ao homenagearem Lorca e também valerem como protesto em favor da
redemocratização do país (lembro-me de, na leitura
de poemas de 1977, na porta da Livraria Brasiliense, organizada por mim
em parceria com Ruht Escobar, haver uma quantidade de pessoas gravando
e fotografando tudo, que, com certeza, não era de jornalistas, porém
de informantes policiais).
Como ler García Lorca?
Por onde começar, em uma obra não apenas múltipla,
porém extensa, tão
extraordinariamente extensa, até ciclópica, para alguém
que
viveu apenas 38 anos?
Minha sugestão é
começar por aquilo que é central. Por sua poesia. E pelo
mais
complexo e intrigante de
seus livros de poesia, tomando a edição brasileira da Obra
Poética Completa (tradução de William Agel de Melo,
Martins Fontes, 1989), e abrindola no meio, na página 413 No Poeta
em Nova York, sua obra radical, assumidamente hermética:
Não me perguntem nada. Eu vi que as coisas
quando buscam seu curso encontram seu vazio.
Ao instalar-se, de 1929
a 1930, em uma Nova York abalada pela grande crise
econômica, um ambiente
tão diferente de sua Andaluzia natal e da Madri que o
acolhera, Lorca experimentou
o estranhamento. Na literatura do século XX, é
quando imagens, aproximações
de realidades diferentes, se apresentam com maior brilho, na descrição
alegórica de um mundo metropolitano que perdeu seu eixo, sua
identidade e o sentido da
origem:
O ímpeto primitivo baila com o ímpeto mecânico,
ignorantes em seu frenesi da luz original.
Porque, se a roda esquece sua fórmula,
já pode cantar desnuda com as manadas de cavalos;
e se uma chama queima os gelados projetos,
o céu terá que fugir ante o túmulo das janelas.
Baudelaire, já em
1846, havia argumentado em favor de uma beleza moderna, uma
beleza nova e particular,
que se faz presente nas metrópoles: A vida parisiense -
dizia ele - é fecunda
em temas poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos
envolve e sacia como a atmosfera;
mas não o vemos. Conforme nos mostram seus
poemas em prosa, descrições
de cenas da vida urbana, seu maravilhoso
metropolitano convive com
a miséria e o horror. Em um ensaio famoso, Walter
Benjamin mostrou que Baudelaire
assim inaugurava uma nova relação entre o poeta
e a metrópole, simbolizada
pelo flaneur, o caminhante desgarrado. Penso que
Lorca, no Poeta em Nova
York, radicalizou essa relação. Levou-a ao paroxismo, ao
fazer que sua voz soasse
como a voz dos profetas anunciando o apocalipse, sob
forma de colisão
entre o mundo artificial, com sua falsa tristeza de luva desbotada
e rosa química, e
o cosmo:
Nova York de lama,
Nova York de arame e de morte.
Que anjo levas oculta na face?
Que voz perfeita dirá as verdades do trigo?
Quem o sonho terrível de tuas anedotas manchadas?
Para ele, o destino da metrópole
era o dilúvio sangrento:
Sangue que busca por mil caminhos mortes esfarinhadas e cinza de nardo,
céus hirtos em declive onde as colônias de planetas
rodam pelas praias com os objetos abandonados.
Poucas vezes alguém
delirou com tal intensidade, ao ver
o sangue que vem, que virá
pelos telhados e terraços, por toda parte,
para queimar a clorofila das mulheres loiras,
para gemer ao pé das camas ante a insônia dos lavabos
e esfacelar-se em uma aurora de tabaco e baixo amarelo.
O turbilhão de sangue
é recorrente. O famoso Nova York - Oficina e denúncia
começa assim:
Debaixo das multiplicações
há uma gota de sangue de pato;
debaixo das divisões
há uma gota de sangue de marinheiro;
debaixo das somas, um rio de sangue terno.
Surpreendendo-se com o que
estava a escrever, Lorca comentou, para seu amigo
Jorge Guillém, que
fazia "fragmentos de prosa de um tipo curiosamente surrealista"
(conforme as nota de Guillém
para a edição Aguillar da Obra Completa). Esse
comentário também
se refere a outros textos da mesma época, como a peça teatral
El Público, sua obra
mais opaca e difícil, que trata da homossexualidade de modo
aberto.
Logo no começo do
Poeta em Nova York, no poema Fábula e Roda dos Três
Amigos, aparece a história
de Henrique, Emílio e Lourenço, os amigos que se
perderam chorando e cantando.
E que estavam gelados, queimados, enterrados e
mumificados. Três
amigos que eram
três montanhas chinesas
três sombras de cavalo,
três paisagens de neve e uma cabana de açucena
pelos pombais onde a lua se abaixa sob o galo.
Mas o poema vai se afunilando,
à medida que seus versos se encurtam. Conduz a
uma descoberta: não
é de três que ele fala, mas de um só:
Três
e dois
e um.
O poema é sobre um,
sobre ele, sobre Lorca. É sobre minha morte deserta como
um só passeante equivocado.
A imagem poética passa
a ser fonte de profecias:
Quando se fundem as formas puras
sob o cricri das margaridas,
compreendi que me haviam assassinado.
Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,
abriram os tonéis e os armários,
destroçaram os três esqueletos para arrancar seus dentes de
ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram.
Mas se soube que a sexta lua fugiu torrente acima,
e que o mar recordou sem tardança
os nomes de todos os seus afogados.
Lorca pretendera dar, inicialmente,
ao Poeta em Nova York, o título de Introdução
à Morte. Vidente,
com a sensibilidade exacerbada pelo sentimento da ausência de
seu país, da falta
e da perda, após o fracasso de seus relacionamentos amorosos,
ele antecipou, nesse final
de 1929, a catástrofe coletiva que sobreviria em uma
década, e a catástrofe
pessoal, seu assassinato em agosto de 1936, nos primeiros
dias da guerra civil espanhola,
quando fascistas o seqüestraram, fuzilaram e
enterraram em uma vala que
nunca foi localizada (Não. Não me encontraram...).
Marcelle Auclair, sua amiga
pessoal, autora de uma biografia importante (Enfances
et mort de Garcia Lorca,
Éditions du Seuil, 1968), mostra como a morte e o
assassinato, obsessões
em sua obra, aparecem como premonição do seu destino.
Cita as Bodas de Sangue.
O famoso Romance da Guarda Civil Espanhola, do
Romanceiro Gitano. E, de
seu último livro de poesias, de 1936, o Divã do
Tamarit, o poema que é
uma despedida, o Gazel da Morte Sombria:
Quero dormir o sono das maçãs,
afastar-me do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir o sono daquele menino
que queria cortar o coração em alto-mar.
Não quero que me repitam que os mortos não perdem o sangue;
que a boca podre continua pedindo água.
Não quero saber dos martírios que a erva dá,
nem da lua com boca de serpente
que trabalha antes do amanhecer.
Outras fontes categorizadas
seguem por esse caminho. A mais recente, Célia
Berretini, no Jornal da
Tarde de 30 de maio, abrindo com o Memento do Poema
do Cante Jondo: Quando eu
morrer,/ enterrai-me com minha guitarra/ sob a
areia.
De minha parte, acrescentaria
ao elenco de poemas antecipatórios a Canção da
morte pequena, de 1933,
publicada postumamente nos Poemas Esparsos, que me
parece arrepiante em sua
secura, sua concisão, e que por isso apresento na íntegra:
Prado mortal de luas
e sangue sob a terra.
Prado de sangue velho.
Luz de ontem e de amanhã.
Céu mortal de erva.
Luz e noite de arena.
Encontrei-me com a morte.
Prado mortal de terra.
Uma morte pequena.
O cachorro no telhado.
Só minha mão esquerda
atravessava montes
sem fim de flores secas.
Catedral de cinza.
Luz e noite de arena.
Uma morte pequena.
Uma morte e eu um homem.
Um homem só, e ela
uma morte pequena.
Prado mortal de lua.
A neve geme e treme
por trás da porta.
Um homem, e daí? O dito.
Um homem só, e ela.
Prado, amor, luz e arena.
Contudo, há divergência
entre seus principais comentaristas quanto ao lugar mais
ou menos central do Poeta
em Nova York e do restante de suas obras mais
herméticas, delirantes
e próximas ao surrealismo. Alguns - como Jorge Guillém, no
prefácio da edição
espanhola das Obras Completas - passam a idéia de um autor
mais apolíneo e cerebral.
Marcelle Auclair também trata o Poeta em Nova York
como exceção.
O próprio Lorca reforçou essa impressão em suas palestras
de
1927, ao propor a revalorização
do Gongorismo, e, por extensão, do apuro formal,
da criação
mais a frio.
O modo de ler Lorca altera-se,
penso, a partir da publicação em 1987 de Federico
García Lorca - uma
biografia, de Ian Gibson (Editora Globo, 1989), promovendo
a reavaliação
da sua contribuição, que coincidiu com a encenação
da peça maldita
El Público, por sua
vez justificando um número do Magazine Littéraire dedicado
a ele, de janeiro de 1988.
Ian Gibson corrigiu e retificou alguns chavões associados
à figura de Lorca.
Mostrou como ele já vinha dialogando com o surrealismo ao
longo dos anos 20, principalmente
no período mais frenético de sua relação com
Dalí, quando o artista
catalão também escrevia prosa poética e o poeta andaluz
produzia desenhos oníricos.
Além disso, Lorca parece sempre haver achado que o
poeta era uma espécie
de médium, veículo de uma fala não necessariamente
sua,
vinda de outro lugar, expressão
de uma alteridade, o "duende", conforme sua
palestra de 1933 sobre essa
versão andaluza do "daimon" grego, do delírio inspirado
de Platão. Para Gibson,
a imagética lorqueana, além de recuperar a metáfora
gongórica, e de apresentar
afinidade com o surrealismo, tem raiz andaluza, em um
modo regional de expressar-se.
Em suma, na questão
da exuberância e riqueza imagética, ele destaca a coerência,
o
quanto essas características
fazem parte de uma trajetória intelectual complexa,
porém consistente,
e não apenas de uma sucessão de vacilações,
crises e
alternâncias na criação
literária. Abrangente, mais que ciclotímico, buscando
abarcar desde as raízes
árabes da Andaluzia até as vanguardas européias suas
contemporâenas, Lorca,
foi, sem dúvida, exemplarmente, o poeta da emoção,
do
sentimento, da subjetividade
exacerbada; mas, ao mesmo tempo, sabia muito bem o
que estava fazendo. O fato
de pôr-se a escrever textos como Poeta em Nova York
e, mais ou menos simultaneamente,
as peças El Público e Asi que se pasen cinco
años (peça,
segundo ele, impossível de ser encenada; segundo Marcelle Auclair,
"peça de vertigem",
na qual o protagonista, que preferiu sonhar a viver, é
assassinado no final) atestam
sua honestidade e coerência. Diferencia-se de boa
parte do que aconteceu no
âmbito das vanguardas e movimentos literários por sua
natureza avessa ao sectarismo,
por sua compreensão do caráter plural e
contraditório da
poesia e da própria vida.
Gibson acha (conforme declarou
ao Magazine Littéraire) que a obra principal de
Lorca é Poeta em
Nova York. Com razão, a meu ver. Mas essa preferência não
o
leva a desconsiderar a produção
regionalista de Lorca, o Cancionero Gitano e as
Canções de
1924, mesmo corrigindo o exagero na imagem do Lorca "gitanista" e
popularesco. Complementar
à visão de Gibson é, parece-me, a do ensaísta
espanhol
Francisco Umbral, autor
de García Lorca, Poeta Maldito (Editorial Brughera,
1977): apresenta-o, em primeira
instância, conforme já declara no título, como
hiper-romântico, obcecado
pela exaltação amorosa como transgressão, perda e
destruição.
Umbral mostra o poeta transgressivo, noturno e "maldito" já presente
na
produção literária
dos anos 20, nas Canções, no Romanceiro Gitano. Sob essa
ótica, Poeta em Nova
York definitivamente não seria uma exceção, porém
a matriz,
o paradigma, cuja leitura
ilumina os demais aspectos de sua obra. Não só El
Público e Asi que
se pasen cinco años, mas também a Ode ao Santíssimo
Sacramento do Altar, de
1928, que escandalizou a Manuel de Falla, seu parceiro e
incentivador na organização
do festival do Cante Jondo, a quem Lorca a havia
dedicado. De Falla era um
católico austero e tradicionalista, tipicamente espanhol,
de uma das metades da Espanha
da época, a outra sendo passionalmente anarquista
e anticlerical. Não
agüentou coisas como a descrição do Sacramento na forma
de
manômetro que salva/
corações lançados a quinhentos por hora.
Entre os textos transgressivos
estaria, igualmente, Thamar e Amnón, poema que
encerra o Romanceiro Gitano.
Baseia-se em um episódio bíblico, a história de um
amor entre irmãos,
descrita de um modo tão lírico que acaba sendo a apologia
do
incesto. Pode ser uma metáfora
da sua homossexualidade, de seus amores
proibidos. Mas seria redutor
e simplista explicar o desespero lorqueano, sua
exacerbada fascinação
pelo proibido e marginalizado, exclusivamente por suas
paixões secretas
e mal resolvidas, declaradas de modo tão pioneiramente explícito,
na primeira pessoa, em Tua
infância em Menton do Poeta em Nova York:
Norma de amor te dei, homem de Apolo
pranto de rouxinol alienado
porém, pasto de ruínas, te afiavas
para os breves sonhos indecisos...
O drama amoroso é
apenas uma circunstância a mais. Um dos aspectos de uma
contradição
maior entre sujeito e objeto, desejo e realidade, sensibilidade poética
e
o mundo, que o levou a retratar
o mundo, na Ode a Walt Whitman, de forma
direta, nada hermética,
desde que se queira entender o que é dito:
Agonia, agonia, fermento e sonho.
Este é o mundo, amigo, agonia, agonia, agonia.
Os mortos se decompõem sob o relógio das cidades,
a guerra passa chorando com um milhão de ratas grises,
os ricos dão a suas queridas
pequenos moribundos iluminados,
e a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada.
Algumas vezes, utilizei-me
de Lorca para criticar um certo desinteresse acadêmico
por estudos biográficos.
É comum, em cursos de literatura e na própria produção
da
crítica, a exigência
de que a análise de um autor se atenha exclusivamente a seu
texto, ao que foi por ele
escrito, deixando de lado o contexto, do qual faz parte a
vida do próprio autor.
Por exemplo, ao se examinar a exacerbação e a exuberância
lorqueanas, fingir desconhecer
suas obsessões pessoais e sua tragédia. O resultado
desse vezo cientificista
e burocratizante sempre será o empobrecimento do ensino
da literatura e da própria
leitura. Por isso, recomendo que a fruição de poemas e
peças de teatro de
Lorca seja acompanhada pela leitura de uma de suas biografias.
A de Ian Gibson é
um modelo do gênero, um dos melhores estudos biográficos
jamais feitos, resultado
de décadas de pesquisa. Um trabalho de tal envergadura,
reaproximação
de criador e obra, é possível se o autor-tema, além
de legível,
literariamente importante,
for biografável, apresentando interesse como
personagem. E Lorca é
um biografável por excelência, um personagem de si
mesmo. Entre outros motivos,
por seu assassinato o haver transformado em mártir;
pela coexistência
de seu brilho pessoal, de seu enorme carisma e capacidade de
liderança, com as
dificuldades por haver sido homossexual em uma cultura
machista; pelo hermetismo
de partes de sua obra coincidir com mistérios de sua
vida íntima; pelos
desafios oferecidos ao biógrafo pela ausência de dados decisivos,
com o desaparecimento de
uma parte de sua correspondência e a destruição de
documentos na Guerra Civil
espanhola; enfim, por todos os paralelos possíveis
entre vida e produção
literária.
Ao contrário de fontes
categorizadas, como Marcelle Auclair, que preferiram a
discrição,
comentando, quando muito, sua paixão por Dalí, Gibson enfrentou
a vida
amorosa do poeta. Abordou
seus "casos", como o do escultor Emílio Aladrén, que
antecedeu sua crise e depressão
de 1928/29, e sua ida aos Estados Unidos e Cuba.
Esmiuçar episódios
amorosos e sexuais não é sensacionalismo, porém respeito
aos
fatos. Não se pode
aceitar a idéia de um García Lorca assexuado ou platônico,
quando ele mesmo tematizou
os amores proibidos, em El Público e nos Sonetos
del Amor Oscuro, inéditos
por décadas. Enfim, a maior clareza da figura do poeta
beneficia enormemente sua
leitura, pois as circunstâncias de sua vida não são
mera
informação
contextual. Estão dentro da obra, conferindo-lhe sentido.
Impressiona, em especial,
a explosão de atividade e criatividade de seus últimos
quatro ou cinco anos de
vida, do ciclo que se inicia com sua viagem e a triunfal
aclamação
na Argentina e Uruguai, em 1932/33. É o período das suas
grandes
peças de teatro,
do Pranto para Ignácio Sanchez Mejías, do Divã do
Tamarit, das
viagens e conferências,
e também de uma intensa atuação como animador e
agitador cultural, percorrendo
a Espanha para oferecer teatro ao povo com o grupo
La Barraca. Sua familiaridade
com a morte, sua obsessão pela morte, estão na
razão direta de seu
entusiasmo pela vida. Ou não? Ou, antevendo sua morte - pois,
nos últimos dias,
ele parou, deteve-se em sua terra natal, reduto de falangistas,
como se a aguardasse, embora
tivesse todas as chances de safar-se, de escapar
vivo, conforme relata Gibson
em páginas arrepiantes - procurasse, então, completar
em cinco anos o trabalho
de uma vida inteira?
Seja como for, sua multiplicidade
e pluralidade somam-se e compõe uma imagem, a
do poeta assassinado - morto
pela inveja e ressentimento, conforme argumentou
seu amigo Luís Cernuda
em um poema comovente, morto porque sua obra seria
um espelho de Caliban, uma
imagem de uma sociedade que esta não agüentava
enxergar - que se tornou
um dos mitos do século XX, com todo o merecimento.
Claudio Willer
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