Diego de Carvalho
Necrose (impura derme)
Sim, ainda guardo lembranças. Seria
difícil esquecer totalmente um movimento caótico de tal fulgor.
Talvez a presença ébria e dolorosa de doses de ressentimentos impeça
a diluição completa, ou, sendo otimista, o reflexo hipnótico da
decrépita pureza faça com que alguns instantes retornem em suave
frenesi.
Sim, admito, eu era jovem e lembro que
essa juventude-interior-exterior, nas estações que compartilhamos,
reproduziu uma bizarra forma que explodiu egos, resíduos genéticos e
impressões digitais sanguíneas, criando um corpo de silhuetas
dionisíacas.
Estranha forma, moldada a partir de
uma enorme e eficaz máquina ilusória, que compôs a “Síntese”, o
corpo profano-divino, imagem e reflexo da primeira identidade
perdida no lamaçal de delícias do jardim do Éden. Identidade
hermafrodita, de beleza explosiva, eternizada na própria dubiedade.
Eu – Sou eterno
Nós – Fomos brindados com a perfeição
Eu ou nós (não mais importa) – O céu é nosso
Sim, estações. Uma, duas, três
indefiníveis e inconstantes estações, onde cada
instante-corrosivo-distorcido-doloroso apresentou-se como o desejo
insano ao poder. Mágico, eu afirmava, pois o questionamento,
destroçado no uno que era múltiplo, foi banido cegamente.
Diziam que a vida iniciou, mas, na
verdade, foi à infância que retornou. Produção artística poderosa,
mas outros símbolos poderiam ser atribuídos, ingenuidade criativa,
ingenuidade-irracional, ingenuidade-insana.
Mas, como em todos os casos, o
definhamento não havia sido erradicado. As estruturas viciosas e a
não adequação, mesmo invisíveis, foram, aos poucos, guardadas em
bolsas de vinil multiforme indestrutível. A bolsa não era
reconhecida, pois à cegueira da beatitude não permitia sua
afirmação. Essa dureza implacável, que negava a exterioridade,
tornava o corpo frágil e agressivo. Qualquer agente ou máquina, que
bloqueasse os fluxos, era despoticamente destruído. É claro que, em
determinados momentos, sofridos e dolorosos momentos, a bolsa
repleta explodiu. A asfixia moral, a asfixia dos conceitos, a
asfixia da paradoxal cumplicidade total causou diminutas paralisias
respiratórias, que transcenderam em pequenas necroses.
Nós - dói principalmente quando pinto minhas poesias
Nós - estranho, realmente dói quando contemplo o sol
Eles - nada que uma microcirurgia não resolva
A necrose era irremediável.
Irremediável porque o corpo rejeita a si mesmo, com fagulhas de
desespero, em inúmeras particularidades. Até o ato carnal, a mais
pura forma de expressão do corpo, simbolizava a impossibilidade da
não destruição.
A microdestruição (a real
autodestruição) impediu a oxigenação necessária para a manutenção
vital do corpo. O não-organismo, perdido na ressonância da própria
dor, conjuntamente à polifonia não interativa, criou notas de terror
e egoísmo.
O corpo era enfermo em sua essência.
Ele apresentava a própria degeneração.
Sim, era o esperado, pois não havia a
possibilidade da harmonia. A razão havia sido abolida em função da
irracionalidade, apenas fruição e não-interpretação. Apenas ser o
ser e acariciar seus prazeres em demasia. A beleza da juventude, o
gozo contínuo. Instantes tiranos de regozijos, para sempre,
eternamente.
O corpo, de força extrema, por seu
egocentrismo, por considerar-se perfeito demais, em um ato cristão
de autopenitência suicidou-se, retornando a sua mais antiga forma, o
vácuo caótico de significado inexistente.
Ele - Este corte em teu ventre é a tua última provação
Ele - Sinto prazer pelo simples fato de tua dor existir
Ele - Eu assassino em nome da virtude
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