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Alguma notícia da poeta
Rosane Villela é formada em Letras pela PUC-Rio (1976). Professora aposentada de inglês, trabalhou com crianças e adolescentes, nos cursos Oxford e Ibeu. Tem o certificado de proficiência em língua inglesa da Universidade de Michigan e o curso de piano clássico da Escola da Madalena Tagliaferro. Publicou o Navalha no verso pela 7Letras em 2000, com orelha escrita por Carlito Azevedo, e foi selecionada para a seção Quatro Poetas da Revista Literária Livro Aberto, junho/julho 2000. Em 2001, compartilhou com Fábio Rocha e Helena de Sousa Freitas o primeiro lugar no Concurso de Poesia online promovido pela Home Page, endereço www.geocities.com/poemasazuis, cujo único jurado foi Affonso Romano de Sant'Anna e, em 2002, participou com um poema e um conto, selecionados por João Silvério Trevisan, do Balaio de Textos do SESCSP ON LINE. Ainda em 2002, o jornalista e escritor Antonio Mariano, em sua coluna do Jornal da União, de João Pessoa, escreveu um artigo sobre a sua poesia. Em maio de 2003 foram publicados alguns poemas, como também dois contos no Correio das Artes, suplemento literário do Jornal da União, do editor Linaldo Guedes. Em 2004, proferiu palestra na Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, intitulada Poesia e Criação, a convite de Marco Lucchesi. Em julho de 2005 teve um conto publicado pela Revista Bestiário - ano 2 / número 17. É membro-fundadora da Letra Falante, grupo de discussão de literatura infantil e juvenil, criado em 2007, no curso avançado de Ninfa Parreira, na Estação das Letras, de Suzana Vargas, onde fez também vários cursos. É autora de: “Bartolomeu e o Caminho do Meio”, sobre o livro “O olho de vidro de meu avô”, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Revista Zunái; “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, publicado na revista Germina; “A literatura que fala lendas”, de temática africana, do livro “Nyangara Chena: A cobra curandeira”, de Rogério Andrade Barbosa, publicada no site Dobras da Leitura, de Peter O’Sagae; “A chinela que não cabe em qualquer um”, do conto “A chinela turca”, de Machado de Assis, publicada na revista Germina; “Nessa hora o mundo pára”, do livro “Catando piolhos: Contando histórias” de Daniel Munduruku; “A noite dos tempos”, do livro “Ao pé das fogueiras acesas”, de Elias José; “Resenhando Ana Suzuki e Jônetsu”, homenagem à autora junto ao seu romance “Jônetsu”. Sua obra “Apanhando a lua...” no prelo, é o seu primeiro trabalho publicado para o público juvenil, pela Editora Paulinas. A seguir, Rosane Villela conversa com o poeta Elias José:
Fale um pouco da Rosane "leitora" e
conte como você desenvolveu o gosto pela leitura.
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Nó do passado
Numa ponta do passado, num portão que ela achava perdido, havia um nó. Destes bem apertados, como que adestrado. Um nó pastor-alemão, bem feito, de corpo negro e claro. Um nó de pedigree que arquivava antecedentes. Capaz de, permissivamente quieto, trocar olhares em segundos de orelhas ou, inesperadamente, desatar sua linhagem e atacar. Mas, até agora, havia sido um nó treinado e independente. Não incomodava e nem ocupava espaço. Ficava na ponta nublada de sua rotina diária. E atrás de um portão que ela achava perdido. Por que, então, o sonoro latido, se nunca ecoara?
Indagativas, as mãos suas
acercavam-se, mas o odor bole-não-bole-vem-comigo exalava. Pedra.
Sempre a mesma no seu caminho.
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Para um cão de lata ao rabo (*)
Esta é a história da cadela de duas latas, prima do cão de lata ao rabo, conhecido como “o encantado” de um bruxo. Não se sabe de que maneira, mas, um dia, ela apareceu no povoado de Maravilha, vindo assim como anunciando um novo acontecimento. Era estriada em preto e branco, e degradava a cor no contínuo do seu corpo forte até atingir o início do rabo, onde o descolorido quase invisível dava a impressão de que, a partir dali e contrariando a robustez deste determinado prolongamento ou deslumbramento, chamem como queiram, nada mais importava a não ser as latas nele dependuradas. Como se, do começo da cauda até elas, houvesse um lapso, um salteado de olhar, tal a estranheza e as sortidas zoadas que elas faziam. Como tudo que não é familiar gera desconfiança, o povo dali, a distância, só espreitava. Alguns diziam que o melhor a fazer era catar o bicho e zunir as latas léguas adiante, havendo quem afirmasse ser conveniente, para tal benfeitoria, fazer uso do estilingue ou aventurar a própria pólvora guardada com zelo há anos. Outros, já achavam que a coisa era do demo, e mexer com coisa enlatada, ainda mais dupla, no plural, era caminho imediato para a dor da perdição. E outros mais, ciscando a palha do fumo, só observavam como se, da natureza, ela própria desse conta e mais ninguém. Maravilha, o povoado acima citado, cresceu ao redor da única praça, com casebres de telhados que mais pareciam verdadeiros chapéus d’uvas, por escorrerem-se, vermelhos, conforme ditava o aumento da família, e foi nela que o bicho resolvera estabelecer o seu sítio, ou melhor, as suas latas. Portanto, desde que o animal surgira, não havia um só morador que se salvasse bem-adormecido. Invariavelmente, despertavam e iam para a soleira de suas portas ver o alarde das latas que, inquietas e como soprando vida afora, ora ficavam debaixo da amendoeira da praça, ora em frente da delegacia, ora nas escadarias da igreja, fazendo com que, ao galgá-las e apeá-las, a cadela, apesar de seu desvelado cuidado, trotasse como trinta ou muitas elefantas. Também o estabelecimento que servia como padaria e armarinho, de Seu Joaquim Maria, filho de Francisco José, “mulato pintor”, e de Maria Leopoldina, “portuguesa ilhoa e lavadeira”, era uma outra preferência, principalmente quando Dona Carolina Augusta, sua mulher, estava preparando o conhecido “pão das eras”, receita de massa lhe passada, segundo ela contava, por seus ancestrais, e disputada pelos Hebreus, Babilônios, Cananeus, Jabuseus, Amorreus, Filisteus, Fariseus, Heteus e Heveus, por permitir o milagre da multiplicação. Assim, o tempo, ciente de seu rabo, prosseguia, e o povo, a cada dia mais diminuído da aflição do inusitado, voltava a dormir até a manhã traçar suas riscas no dia a seguir, ninguém mais se incomodando com o tambor canino, tão acostumados ficaram com o batuque na madrugada.
Numa noite de lua cheia, entretanto,
nenhum som estaqueou o sono, e, no desconforto do silêncio
desabituado, as gentes levantaram-se, foram para a soleira da porta,
e viram, bamboleantes, que havia, ao pé da amendoeira da praça, um
casal de pequeninos cãezinhos, estriados em preto e branco,
degradada a cor no contínuo dos seus corpos até atingir o final do
rabo. Este, sem latas.
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Melado debruçado
Assim o menino dizia, através da janela de meu carro, sem sorrir, fazendo o acontecido debruçado virar melado. De chumbo, numa manhã ensolarada de outono.
Pelo retrovisor pude vê-lo afastar-se
de minha hostil vidraça, dobrando-se, como sempre fazia, em um outro
veículo, e cantando a segunda das cinco pedintes estrofes que
costumavam marcar o tempo estacionado por ali: Talvez o Vectra prata pudesse ajudá-lo. O sujeito que o dirige tem pinta de ser bom. Não disse? Lá vai din-din para o carrinho. Quisera eu ter um, para cantar outra canção, onde a dobra da vida não melodiasse a quê veio, me deixando cheio de dívidas. Dobra danada, cobra vendada silvando, desde que apareceu, o paraíso. Hum! Tudo antes tão retilíneo, sem revoadas, passaradas, tão lisinho... Não este ninho que veio enrolando o meu forte. Forte, isto mesmo, não, norte. Estou cansado de ler norte em tudo que é lugar. O norte abusou de mim, me afundou em intolerância, logo eu que fui o rei de seu oposto em vida. “Sorria para todos, forte como um touro”, falava meu pai, lá se vão mais de uns bons trinta e nove anos. “O sorriso, ao contrário do que muitos pensam, pode mascarar a determinação na sua quietude”, ele continuava. E, afinal, ilustrando com um largo desfiar de lábios, finalizava: “Lembre-se: a sua direção, é você somente quem a governa, mesmo que ela seja desviada por algum acontecimento”. E eu não consegui apurar isso a tempo nas negociações, desgovernado pelos sorrisos que não eram os meus. A direção branda deles foi a mais dura. Tanto quanto esta que tenho sob as mãos, e que me lembra a necessidade de alinhamento... “Ombros para trás, menino. Cabeça para cima. Queixo reto”. De alinhamento, meu pai entendia. Cansei de cair, mas não percebia. A pedra foi apenas um acidente. Quebrei o braço em duas partes, mas continuei firme, de queixo reto, cabeça para cima e ombros empertigados. O braço pesando a vergonha da dor de ver meu pai me consolar com seu comprido sorriso: “Isto, filho. Forte. Assim mesmo. É só uma abobrinha, vai passar”.
Foi quando esfoliei a vontade de
chorar, pois touro não se descasca com abobrinhas. E eu era o melhor
dos touros, meu pai repetia. Só rindo. De onde veio isto? Vontade de quê? Já sei. De ter um carrinho, igual ao do garoto de rua e enchê-lo de, vamos dizer, possibilidades. Quem sabe, alguma decisão capaz, até mais tarde me ancoraria? Novamente pelo retrovisor, vejo a irmã do menino brigando pelo seu direito de segurar o carrinho, e o pai, bêbado estabelecido no botequim da esquina, levando o bafo no cangote dela, a berrar pelo que diz também ser seu, de direito. O meu, enterrado, no cangote dos outros... “Pai, tô precisando de dinheiro para pagar a ginástica. Preciso de umas três sweat-shirts para malhar. É roupa de última geração, velho. O suor não empapa e não incomoda. Mãe, faz um sorvete de marshmallow com banana e bota castanhas e calda de chocolate por cima. Pai, tá faltando requeijão. Traz na volta do trabalho”. Sorria. “Patrão, e o meu ordenado? Pode me adiantar a gratificação de final de ano prometida? Estou pendurada em prestações e os juros estão subindo demais”. Sorria. “Amor, tenho que deixar dois cheques na portaria: o do condomínio e o das cotas extras. Pode deixar que eu vou ao supermercado e compro o requeijão. Tenho mesmo de fazer compras. Ah! Querido, um tal de Gonçalo ligou quando você estava fazendo a barba. Ele me pediu para lhe dizer que o prazo para o banco acampar a firma ficou em duas semanas. Que banco, bem?”. Sorria. “Nossa! Estou atrasada para o cabeleireiro. Depois você me explica, tá?”.
Um longo percurso numa manhã de outono
onde nem sorvete tem licença para se guardar... O menino, repetindo a primeira parte de seus versos na minha vidraça, me faz perceber que nem um milímetro eu andara neste embirrado trânsito, onde só o sinal canibal pisca, agora, para a esperança.
Meu carro não é Vectra, mas corre.
Muito. |
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Amansou o ar com um gemido. De lâminas se tocando. Levantou-se da poltrona e dirigiu-se à janela. O dia estava bonito. A rosa amarela, mais amarela; a carrocinha de sorvete, a pressagiar boas vendas; o flanelinha, mais atento na vigilância dos carros; e o bêbado que pedia dinheiro, o conseguindo. Tudo perfeito, até mesmo aquele mar que, colhendo e recolhendo a sua língua, parecia entornar bom agouro. Mas o gemido persistia. Insistente. ( Não que o emitisse, pois tinia para dentro, retornado em si mesmo.) De concreto em sua vida, somente aquele cenário com algumas mudanças: chuva, nuvens carregadas, calor desagradável, a rosa murcha, o bêbado dormindo na aresta da cachaça e, no lugar do sorveteiro, o pipoqueiro. O mar não; era sempre o mesmo. Gostava dele. Sorria quando as pessoas eram emboladas, quando os surfistas desciam em suas águas e, principalmente, quando via o horizonte tocá-lo, deixando o céu calado e salgado. Sempre lá. Inquestionavelmente tênue, mas firme. Sim..., bem diverso de sua existência. Nos ouvidos, a dor. Lancinante. Voltava a sentar-se, com as mãos em concha contra eles, pretendendo cegar o zunido. Estava cansada. Vai ver era isso. Quem era aquele moço, todo de branco, que ajeitava o seu cabelo e lhe dizia, docemente, palavras que, sem graça, ela ouvia? Quem eram as crianças que corriam pela sala, que paravam a sua frente com o olhar indagativo, e que, depois, dando de ombros, desapareciam? E que tantos objetos eram aqueles que enfeitavam todo o living e contavam coisas de si que não sabia? No piano, porta-retratos onde se encontrava, desconhecida de seu jeito, com vestidos que lhe cabiam... É verdade que havia um vestido que ela se lembrava de ter usado quando passeava no calçadão com as meninas. Aquelas... lembrava-se ou era o mar que arrebentava, fundo de pano abraçando o seu horizonte? Ai, o gemido. O moço dizia para ela não se preocupar e que fora ele que havia tirado a fotografia. Estavam os quatro, ela, as garotas e ele, na Pedra do Arpoador, para onde sempre iam, para que pudessem criar asas e voar no azul da imensidão. E, depois, em outro dia, apontando para a Pedra, ele continuava: — Você a vê? Então, confie em seu olhar. O olhar tem poder. Arrepia a circunstância. Basta prestar atenção. — E ela podia, por alguns momentos, sentir a sua mesma imensidão nesta verdade ao fitá-lo. Imensidão a que lhe afigurava pertencer. Mas, timidamente, logo se desculpava por não entender, e, então, fixava-se no pôr-do-sol que acrescentava, ao vigor da natureza, o espetáculo de sua paixão. Tão fértil, tão sem perguntas. E generoso, como o olhar daquele moço que eriçava a sua vida. Também ela, tão sem perguntas. Ou seriam tantas, para que não ousasse fazer? Ou fazia, ele respondia e ela se esquecia? Confirmava o sorriso branco do moço. Lá fora, o dia. E mais outro. E mais outro. Indo e vindo. Como o mar.
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