Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

Rosane Villela

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Poesia & conto:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 

 


 

Fortuna: 

 

 


Alguma notícia do(a) autor(a):

Rosane Villela

 

Thomas Colle,  The Return, 1837

Antonio Mariano de Lima

 

Affonso Romano de Sant'Anna

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Rosane Villela
 

 

 

 

 

 

Alguma notícia da poeta

 

 

Rosane Villela é formada em Letras pela PUC-Rio (1976). Professora aposentada de inglês, trabalhou com crianças e adolescentes, nos cursos Oxford e Ibeu. Tem o certificado de proficiência em língua inglesa da Universidade de Michigan e o curso de piano clássico da Escola da Madalena Tagliaferro.

Publicou o Navalha no verso pela 7Letras em 2000, com orelha escrita por Carlito Azevedo, e foi selecionada para a seção Quatro Poetas da Revista Literária Livro Aberto, junho/julho 2000. Em 2001, compartilhou com Fábio Rocha e Helena de Sousa Freitas o primeiro lugar no Concurso de Poesia online promovido pela Home Page, endereço www.geocities.com/poemasazuis, cujo único jurado foi Affonso Romano de Sant'Anna e, em 2002, participou com um poema e um conto, selecionados por João Silvério Trevisan, do Balaio de Textos do SESCSP ON LINE.

Ainda em 2002, o jornalista e escritor Antonio Mariano, em sua coluna do Jornal da União, de João Pessoa, escreveu um artigo sobre a sua poesia. Em maio de 2003 foram publicados alguns poemas, como também dois contos no Correio das Artes, suplemento literário do Jornal da União, do editor Linaldo Guedes.

Em 2004, proferiu palestra na Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, intitulada Poesia e Criação, a convite de Marco Lucchesi. Em julho de 2005 teve um conto publicado pela Revista Bestiário - ano 2 / número 17.

É membro-fundadora da Letra Falante, grupo de discussão de literatura infantil e juvenil, criado em 2007, no curso avançado de Ninfa Parreira, na Estação das Letras, de Suzana Vargas, onde fez também vários cursos. É autora de: “Bartolomeu e o Caminho do Meio”, sobre o livro “O olho de vidro de meu avô”, de Bartolomeu Campos de Queirós, publicado pela Revista Zunái; “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, publicado na revista Germina; “A literatura que fala lendas”, de temática africana, do livro “Nyangara Chena: A cobra curandeira”, de Rogério Andrade Barbosa, publicada no site Dobras da Leitura, de Peter O’Sagae; “A chinela que não cabe em qualquer um”, do conto “A chinela turca”, de Machado de Assis, publicada na revista Germina; “Nessa hora o mundo pára”, do livro “Catando piolhos: Contando histórias” de Daniel Munduruku; “A noite dos tempos”, do livro “Ao pé das fogueiras acesas”, de Elias José; “Resenhando Ana Suzuki e Jônetsu”, homenagem à autora junto ao seu romance “Jônetsu”. Sua obra “Apanhando a lua...” no prelo, é o seu primeiro trabalho publicado para o público juvenil, pela Editora Paulinas.

A seguir, Rosane Villela conversa com o poeta Elias José:


 

 

Fale um pouco da Rosane "leitora" e conte como você desenvolveu o gosto pela leitura.
O gosto pela leitura começou na minha infância, pelas contações orais dos causos de meus avós, meus pais, e toda a minha família interiorana, criada em fazenda e no interior de Minas Gerais e Estado do Rio de Janeiro. Uma riqueza infinita de relatos encantatórios. E também pela música. Eu ouvia a minha professora de piano tocar e, para mim, a melodia contava a história que eu imaginava. Ouvindo, eu lia, no apuro da imaginação e sensibilidade. Lembro-me, também, de meus irmãos e eu nos sentarmos ao redor de uma eletrolinha para ouvir os discos de long-play, com histórias gravadas, que minha mãe nos comprava. E lembro-me dela, também, em pé, na cabeceira de uma mesa grande, lendo um jornal ou um livro, ao mesmo tempo em que supervisionava os deveres escolares dos quatro filhos. Eu ficava maravilhada em vê-la ler um jornal "tão grandão" e um livro "tão grossão". Ela sempre tinha um romance, uma revista, um jornal nas mãos. Daí para a leitura, foi apenas um passo. Naturalmente e sem pressão, a Rosane leitora se fez pelo exemplo que tinha em casa. Um exemplo em que livro e jornal eram meios de comunicação para o conhecimento e para o encantamento.

O que faz atualmente e como tem promovido a leitura nas suas rodas de trabalho?
Lembro-me de que o primeiro passo que dei, neste sentido, foi aos 18 anos, quando, na fazenda de meus pais, à noite, consegui alfabetizar muitos dos trabalhadores, nas férias e nos seguidos fins-de-semana que íamos para lá. Nesta época, eu estava terminando o Normal, curso que fiz antes de entrar na faculdade de Letras. Acredito que, de alguma maneira, promovi a possibilidade de leitura para eles. Com o meu primeiro livro, de poesia, o Navalha no Verso, publicado em 2000, pela 7Letras, participei de eventos em faculdades, escolas, e em livrarias, com leitura de poemas. Também proferi palestra na Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, intitulada Poesia e Criação, a convite de Marco Lucchesi. Atualmente, continuo me dedicando à literatura. Leio, para reforçar o meu conhecimento da língua portuguesa, e para apreender a arte literária em suas construções infinitas. Para que a minha escrita melhore e possa chegar ao leitor de um modo que o conquiste, o encante, e o faça refletir, quer ele seja adulto ou criança. Espero que, com o livro Apanhando a lua..., da Paulinas, eu possa contribuir mais para promover a leitura. Também, sou uma das integrantes e membro-fundadora de um grupo chamado Letra Falante, onde há discussões sobre Literatura Infantil e Juvenil. Temos um projeto de promoção de leitura nas escolas, objetivando a formação de leitores, assim como projetos para seminários e eventos a que o grupo pretende se estender para o ano de 2009. Um site e uma revista virtual estão sendo discutidos, e o nosso blog será reativado.

Como conheceu as obras de Elias José?
Através das resenhas do grupo Letra Falante, criado no curso de Ninfa Parreiras, onde a linguagem, a ilustração, e o projeto gráfico das obras infantis e juvenis são discutidos. Em 2006, foram elaboradas resenhas de autores diversos quando, então, escrevi sobre O olho de vidro de meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós, e O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, publicados, respectivamente, nas revistas Zunái e Germina, ambas virtuais. Já em 2007, objetivando uma ajuda aos professores e promotores da leitura, resolvemos tratar as resenhas por temas. Pela obrigatoriedade do ensino e transmissão da cultura africana e afro-brasileira, desde 2003, nos estabelecimentos de ensino públicos e privados de todo o País, escolhemos autores, cujas obras apresentavam a temática africana. Algumas das nossas resenhas podem ser lidas no portal Dobras da Leitura, de Peter O'Sagae. Coube a mim a obra de Rogério Andrade Barbosa, Nyangara Chena: a cobra curandeira. Depois, o grupo Letra Falante partiu para o estudo das obras indígenas e, então, me coube o livro Catando Piolhos - Contando Histórias, de Daniel Munduruku, e o excelente livro de Elias José, Ao Pé das Fogueiras Acesas, recontos seus de algumas fábulas indígenas brasileiras.

Se tivesse que recomendar as obras de Elias José para crianças, quais os motivos que você daria a elas?
Primeiramente, elas alcançam o leitor. Já seria um motivo suficiente. No entanto, não posso me furtar em dizer que as obras de Elias José são lúdicas, têm ritmo, poesia, conteúdo. E são imagéticas. Elias conversa, brinca, compartilha, no encantamento da literatura.

Cite um trechinho bonito de Elias José que você mais gostou na obra que resenhou e comente brevemente.
Eu citaria o trecho da sua introdução ao livro Ao pé das fogueiras acesas, quando diz: "hoje, em tempos de fogueiras apagadas/ precisamos fuçar na memória/ e catar os cacos dos sonhos/ para engrandecer a vida/ e não sufocar o mito e a poesia". Porque resume a sensibilidade de Elias José como escritor, e mostra a sua preocupação com a preservação da tradição e dos costumes. Como a contação de histórias, que traz o sonho, o imaginário. Imprescindível para um mundo melhor.

 

 

 

     

 

   
Manoel de Barros

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Alberto da Costa e Silva

 

 

 

 

 

 

 
 
 
 
Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

Rosane Villlela

 
A NOITE DOS TEMPOS
 

Nas labaredas das gerações, o tempo dispara fábulas. E o homem conta a sua arte, aquecido pela magia primitiva da oralidade. De Esopo a Elias José, apenas um sopro, nas diferentes formas de fabular que resgatam o imaginário universal. E o que é de um povo expande-se a favor da humanidade ao pontuar-se através da recriação.

Da ágora — praça pública dos gregos, local dos discursos e discussões na Antigüidade Clássica — aos dias atuais, ainda que o registro das civilizações nos chegue sob a forma de documentos escritos que comprovam ou não a sua autenticidade, o fato é que o homem é um articulador dos tempos. À procura do conhecimento não somente de sua história e da origem da humanidade, como também da magia dos seus inúmeros mitos, lendas e fábulas.

Se, pelo mito, a história de uma civilização pode ser contada pela carga simbólica que adquire para uma determinada cultura; e se, pelas lendas, pode ser sonhada pela narrativa fantasiosa que as inclui; pelas fábulas, o homem encontra o caminho para se exemplificar por meio da representação de uma idéia abstrata, através das figuras dos animais.

Nas fábulas indígenas da obra Ao Pé das Fogueiras Acesas, de Elias José, esta exemplificação procede a cargo da cultura a que elas remetem. Uma exemplificação de ensinamento, própria da nação, em que pesa a sua sobrevivência no meio onde vive. Transferindo a esperteza e a inteligência aos animais que apresentam desvantagem física frente aos outros, as fábulas suscitam situações que sugerem como superar os medos, reagir face ao perigo, ser criativo, estar atento ao inesperado, sobreviver na mata, enfim.

Mas não é por esse viés que o reconto delas feito por Elias José chega ao leitor. É pela força encantatória da ludicidade que sua narrativa o transporta, de maneira muito prazerosa, ao rito da nação indígena, onde muitas histórias são aquecidas e recontadas ao redor da fogueira. O mito indígena, assim, com poesia, é retomado e nos tornamos também parte daquela nação, daquela floresta.

Em seu reconto das fábulas — que, no sumário, aparecem com vinhetas imbuídas de detalhes dos animais, ilustrados por André Neves —, o autor, com sua habilidade indiscutível de contador de histórias, entremeia cantos que lembram brincadeiras provocadoras de crianças arteiras, com a utilização rítmica recorrente dos “Olé, olá, olé, oliri-ri” que iniciam ou finalizam versos, como nas histórias “ O jabuti e a onça” e “O jabuti e o elefante” ; e mantém o mesmo entusiasmo de jocosidade em “A esperteza do sapo”, “A raposa e o homem”, “A raposa e a onça” e “As trapalhadas da aranha-caranguejeira”, com uma narrativa tão quanto consistente e repleta de diálogos.

Ainda, em um testemunho de amor à tradição, que apresenta logo na introdução, Elias José homenageia “Esopo, La Fontaine, Sílvio Romero, Câmara Cascudo e muitos outros” e avisa ao leitor para não buscar nas fábulas somente lições de moral. Defende, antes, “as mil formas de fabular e de refabular” para que a chama de imaginárias fogueiras continue vibrando, e expressa a necessidade de não esquecermos a tradição e cuidarmos dos dias atuais, quando afirma: “Hoje, em tempos de fogueiras apagadas, / precisamos fuçar na memória / e catar os cacos dos sonhos / para engrandecer a vida / e não sufocar o mito e a poesia”.

Também motivado pelo eixo comum aos textos apresentados — a ludicidade e a reverência ao gênero —, André acompanha o autor com igual brilhantismo. Sem estabelecer legendas imagéticas ao texto de Elias e, com cuidado, oferece, através da brincadeira de suas imagens, diversão ao leitor ao mesmo tempo em que sensibiliza o seu olhar. Para os detalhes que saltam das formas grandes que cria — como os olhos expressivos dos animais, que caracterizam seus sentimentos. Para as particularidades que pinça do texto — como na ilustração enorme do elefante que ocupa uma página e meia, para contrapor-se à do pequeno jabuti que, com ele dialoga em pé sobre uma pedra, num cantinho da mesma página. E para o movimento dos seus traços — como o fio onde a aranha-caranguejeira se balança; a tromba do elefante que parece mergulhar numa página inteira, para segurar a ponta de uma corda afundada no mar, para o início de uma disputa; e as letras do título Ao pé das fogueiras acesas que podem ser visualizadas chispadas, na cor alaranjada da brasa, pelas labaredas da fogueira acesa que é circundada pelos animais da floresta.

Tanto Elias José como André Neves, cada um a sua maneira, participam do existencialismo fabuloso ao recriarem a sua própria fábula, tão verdadeira, na intertextualidade com o fio condutor primeiro, o das fábulas indígenas. Com independência um do outro, ainda que alimentados pela mesma linguagem da ludicidade, abrem campos de alimentos distintos ao nosso olhar que, por sua vez, também recria.

Sai o leitor ganhando duplamente, embevecido pelo clima de magia e poesia que perpassa toda a excelente edição da Paulinas, cujas cores diversas e harmoniosas de páginas — em tons que passeiam do preto ao amarelo vibrante —criam a atmosfera propícia e também fabulam para contar a noite dos tempos. em prazer no âmbito

 

Allan R. Banks (USA) - Hanna

 

 

     
   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Nó do passado
 



“Um dos maravilhosos privilégios da arte é que a expressão de horror e dor pelo artista, se rítmica e cadenciada, enche de calmo júbilo o espírito.”
Charles Baudelaire

 

Numa ponta do passado, num portão que ela achava perdido, havia um nó. Destes bem apertados, como que adestrado. Um nó pastor-alemão, bem feito, de corpo negro e claro. Um nó de pedigree que arquivava antecedentes. Capaz de, permissivamente quieto, trocar olhares em segundos de orelhas ou, inesperadamente, desatar sua linhagem e atacar.

Mas, até agora, havia sido um nó treinado e independente. Não incomodava e nem ocupava espaço. Ficava na ponta nublada de sua rotina diária. E atrás de um portão que ela achava perdido.

Por que, então, o sonoro latido, se nunca ecoara?

Indagativas, as mãos suas acercavam-se, mas o odor bole-não-bole-vem-comigo exalava. Pedra. Sempre a mesma no seu caminho.
Escultura de flor e horror.
 

 

     

 

   
Gilberto Mendonça Teles

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Braulio Tavares

 

 

 

 

 

 

 

 

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Para um cão de lata ao rabo (*)


 


“Há no cão que espera uma expressão semelhante à tranqüilidade do leão ou à fixidez do deserto”.
(autor: um certo bruxo que, na mesma noite do acontecido, aparecera por Maraviha)

 

Esta é a história da cadela de duas latas, prima do cão de lata ao rabo, conhecido como “o encantado” de um bruxo.

Não se sabe de que maneira, mas, um dia, ela apareceu no povoado de Maravilha, vindo assim como anunciando um novo acontecimento. Era estriada em preto e branco, e degradava a cor no contínuo do seu corpo forte até atingir o início do rabo, onde o descolorido quase invisível dava a impressão de que, a partir dali e contrariando a robustez deste determinado prolongamento ou deslumbramento, chamem como queiram, nada mais importava a não ser as latas nele dependuradas. Como se, do começo da cauda até elas, houvesse um lapso, um salteado de olhar, tal a estranheza e as sortidas zoadas que elas faziam.

Como tudo que não é familiar gera desconfiança, o povo dali, a distância, só espreitava. Alguns diziam que o melhor a fazer era catar o bicho e zunir as latas léguas adiante, havendo quem afirmasse ser conveniente, para tal benfeitoria, fazer uso do estilingue ou aventurar a própria pólvora guardada com zelo há anos. Outros, já achavam que a coisa era do demo, e mexer com coisa enlatada, ainda mais dupla, no plural, era caminho imediato para a dor da perdição. E outros mais, ciscando a palha do fumo, só observavam como se, da natureza, ela própria desse conta e mais ninguém.

Maravilha, o povoado acima citado, cresceu ao redor da única praça, com casebres de telhados que mais pareciam verdadeiros chapéus d’uvas, por escorrerem-se, vermelhos, conforme ditava o aumento da família, e foi nela que o bicho resolvera estabelecer o seu sítio, ou melhor, as suas latas. Portanto, desde que o animal surgira, não havia um só morador que se salvasse bem-adormecido. Invariavelmente, despertavam e iam para a soleira de suas portas ver o alarde das latas que, inquietas e como soprando vida afora, ora ficavam debaixo da amendoeira da praça, ora em frente da delegacia, ora nas escadarias da igreja, fazendo com que, ao galgá-las e apeá-las, a cadela, apesar de seu desvelado cuidado, trotasse como trinta ou muitas elefantas. Também o estabelecimento que servia como padaria e armarinho, de Seu Joaquim Maria, filho de Francisco José, “mulato pintor”, e de Maria Leopoldina, “portuguesa ilhoa e lavadeira”, era uma outra preferência, principalmente quando Dona Carolina Augusta, sua mulher, estava preparando o conhecido “pão das eras”, receita de massa lhe passada, segundo ela contava, por seus ancestrais, e disputada pelos Hebreus, Babilônios, Cananeus, Jabuseus, Amorreus, Filisteus, Fariseus, Heteus e Heveus, por permitir o milagre da multiplicação.

Assim, o tempo, ciente de seu rabo, prosseguia, e o povo, a cada dia mais diminuído da aflição do inusitado, voltava a dormir até a manhã traçar suas riscas no dia a seguir, ninguém mais se incomodando com o tambor canino, tão acostumados ficaram com o batuque na madrugada.

Numa noite de lua cheia, entretanto, nenhum som estaqueou o sono, e, no desconforto do silêncio desabituado, as gentes levantaram-se, foram para a soleira da porta, e viram, bamboleantes, que havia, ao pé da amendoeira da praça, um casal de pequeninos cãezinhos, estriados em preto e branco, degradada a cor no contínuo dos seus corpos até atingir o final do rabo. Este, sem latas.

(*) exercício baseado no conto “Um Cão de Lata ao Rabo”, de Machado de Assis.

 

 

 

     

 

   
Rodrigo Garcia Lopes

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Daniel Mazza

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Melado debruçado


 


“A tarefa de amolecer diariamente o tijolo, a tarefa de abrir caminho na massa pegajosa que se proclama mundo, esbarrar cada manhã com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação canina de que tudo esteja em seu lugar...”
Julio Cortázar



"Um presente que fosse
rosa de doce
um carrinho de mão
para ofertar meu coração".

 

Assim o menino dizia, através da janela de meu carro, sem sorrir, fazendo o acontecido debruçado virar melado. De chumbo, numa manhã ensolarada de outono.

Pelo retrovisor pude vê-lo afastar-se de minha hostil vidraça, dobrando-se, como sempre fazia, em um outro veículo, e cantando a segunda das cinco pedintes estrofes que costumavam marcar o tempo estacionado por ali:


“Um presente que fosse
rosa de doce
um carrinho de mão
para cantar outra canção”.

 

Talvez o Vectra prata pudesse ajudá-lo. O sujeito que o dirige tem pinta de ser bom. Não disse? Lá vai din-din para o carrinho. Quisera eu ter um, para cantar outra canção, onde a dobra da vida não melodiasse a quê veio, me deixando cheio de dívidas. Dobra danada, cobra vendada silvando, desde que apareceu, o paraíso. Hum!

Tudo antes tão retilíneo, sem revoadas, passaradas, tão lisinho... Não este ninho que veio enrolando o meu forte. Forte, isto mesmo, não, norte. Estou cansado de ler norte em tudo que é lugar. O norte abusou de mim, me afundou em intolerância, logo eu que fui o rei de seu oposto em vida.

“Sorria para todos, forte como um touro”, falava meu pai, lá se vão mais de uns bons trinta e nove anos. “O sorriso, ao contrário do que muitos pensam, pode mascarar a determinação na sua quietude”, ele continuava. E, afinal, ilustrando com um largo desfiar de lábios, finalizava: “Lembre-se: a sua direção, é você somente quem a governa, mesmo que ela seja desviada por algum acontecimento”. E eu não consegui apurar isso a tempo nas negociações, desgovernado pelos sorrisos que não eram os meus. A direção branda deles foi a mais dura. Tanto quanto esta que tenho sob as mãos, e que me lembra a necessidade de alinhamento...

“Ombros para trás, menino. Cabeça para cima. Queixo reto”.

De alinhamento, meu pai entendia. Cansei de cair, mas não percebia. A pedra foi apenas um acidente. Quebrei o braço em duas partes, mas continuei firme, de queixo reto, cabeça para cima e ombros empertigados. O braço pesando a vergonha da dor de ver meu pai me consolar com seu comprido sorriso: “Isto, filho. Forte. Assim mesmo. É só uma abobrinha, vai passar”.

Foi quando esfoliei a vontade de chorar, pois touro não se descasca com abobrinhas. E eu era o melhor dos touros, meu pai repetia.

Esfolia a vontade
Esfolia
Tá embaixo da tarde.
 

Só rindo. De onde veio isto? Vontade de quê? Já sei. De ter um carrinho, igual ao do garoto de rua e enchê-lo de, vamos dizer, possibilidades. Quem sabe, alguma decisão capaz, até mais tarde me ancoraria?

Novamente pelo retrovisor, vejo a irmã do menino brigando pelo seu direito de segurar o carrinho, e o pai, bêbado estabelecido no botequim da esquina, levando o bafo no cangote dela, a berrar pelo que diz também ser seu, de direito. O meu, enterrado, no cangote dos outros...

“Pai, tô precisando de dinheiro para pagar a ginástica. Preciso de umas três sweat-shirts para malhar. É roupa de última geração, velho. O suor não empapa e não incomoda. Mãe, faz um sorvete de marshmallow com banana e bota castanhas e calda de chocolate por cima. Pai, tá faltando requeijão. Traz na volta do trabalho”.

Sorria.

“Patrão, e o meu ordenado? Pode me adiantar a gratificação de final de ano prometida? Estou pendurada em prestações e os juros estão subindo demais”.

Sorria.

“Amor, tenho que deixar dois cheques na portaria: o do condomínio e o das cotas extras. Pode deixar que eu vou ao supermercado e compro o requeijão. Tenho mesmo de fazer compras. Ah! Querido, um tal de Gonçalo ligou quando você estava fazendo a barba. Ele me pediu para lhe dizer que o prazo para o banco acampar a firma ficou em duas semanas. Que banco, bem?”.

Sorria.

“Nossa! Estou atrasada para o cabeleireiro. Depois você me explica, tá?”.

Um longo percurso numa manhã de outono onde nem sorvete tem licença para se guardar...

"Um presente que fosse
rosa de doce
um carrinho de mão
para ofertar meu coração".

 

O menino, repetindo a primeira parte de seus versos na minha vidraça, me faz perceber que nem um milímetro eu andara neste embirrado trânsito, onde só o sinal canibal pisca, agora, para a esperança.

Meu carro não é Vectra, mas corre. Muito.
 

     

 

   
Secchin

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Paulo de Toledo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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À janela
 


“Eu vi uma cigarra atravessada pelo sol
como se um punhal atravessasse o corpo.”

Manoel de Barros

 

Amansou o ar com um gemido. De lâminas se tocando. Levantou-se da poltrona e dirigiu-se à janela. O dia estava bonito. A rosa amarela, mais amarela; a carrocinha de sorvete, a pressagiar boas vendas; o flanelinha, mais atento na vigilância dos carros; e o bêbado que pedia dinheiro, o conseguindo. Tudo perfeito, até mesmo aquele mar que, colhendo e recolhendo a sua língua, parecia entornar bom agouro.

Mas o gemido persistia. Insistente. ( Não que o emitisse, pois tinia para dentro, retornado em si mesmo.) De concreto em sua vida, somente aquele cenário com algumas mudanças: chuva, nuvens carregadas, calor desagradável, a rosa murcha, o bêbado dormindo na aresta da cachaça e, no lugar do sorveteiro, o pipoqueiro. O mar não; era sempre o mesmo. Gostava dele. Sorria quando as pessoas eram emboladas, quando os surfistas desciam em suas águas e, principalmente, quando via o horizonte tocá-lo, deixando o céu calado e salgado. Sempre lá. Inquestionavelmente tênue, mas firme. Sim..., bem diverso de sua existência.

Nos ouvidos, a dor. Lancinante. Voltava a sentar-se, com as mãos em concha contra eles, pretendendo cegar o zunido. Estava cansada. Vai ver era isso. Quem era aquele moço, todo de branco, que ajeitava o seu cabelo e lhe dizia, docemente, palavras que, sem graça, ela ouvia? Quem eram as crianças que corriam pela sala, que paravam a sua frente com o olhar indagativo, e que, depois, dando de ombros, desapareciam? E que tantos objetos eram aqueles que enfeitavam todo o living e contavam coisas de si que não sabia? No piano, porta-retratos onde se encontrava, desconhecida de seu jeito, com vestidos que lhe cabiam...

É verdade que havia um vestido que ela se lembrava de ter usado quando passeava no calçadão com as meninas. Aquelas... lembrava-se ou era o mar que arrebentava, fundo de pano abraçando o seu horizonte?

Ai, o gemido. O moço dizia para ela não se preocupar e que fora ele que havia tirado a fotografia. Estavam os quatro, ela, as garotas e ele, na Pedra do Arpoador, para onde sempre iam, para que pudessem criar asas e voar no azul da imensidão. E, depois, em outro dia, apontando para a Pedra, ele continuava: — Você a vê? Então, confie em seu olhar. O olhar tem poder. Arrepia a circunstância. Basta prestar atenção. — E ela podia, por alguns momentos, sentir a sua mesma imensidão nesta verdade ao fitá-lo. Imensidão a que lhe afigurava pertencer. Mas, timidamente, logo se desculpava por não entender, e, então, fixava-se no pôr-do-sol que acrescentava, ao vigor da natureza, o espetáculo de sua paixão. Tão fértil, tão sem perguntas. E generoso, como o olhar daquele moço que eriçava a sua vida. Também ela, tão sem perguntas. Ou seriam tantas, para que não ousasse fazer? Ou fazia, ele respondia e ela se esquecia?

Confirmava o sorriso branco do moço. Lá fora, o dia. E mais outro. E mais outro. Indo e vindo. Como o mar.

 

     

 

   
Bruno Miquelino

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Luciano Maia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Winterhalter Franz Xavier, Alemanha, Florinda

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Victor Mikhailovich Vasnetsov, Rússia, 1848-1926, The Knight at the Crossroads

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Rosane Villela

um pequeno bloco de

poemas


 

 

 

Cantiga anônima


O que me desempenha?

Biografo-me nos dias
em calmaria,
nos livros suados à tinta
à revelia,
nos amigos distantes,
nos beijos do sim,
do não, da partida
nem sempre bem-vinda,
na maresia da família
a rolar cantorias
no luar do sol
nos dias de mar
a remar rima
e selvageria.

Homem-Lobisomem,
qual o seu nome?


 

 

Cílios do dia


Os cílios do silêncio
na pálpebra do dia
vasculham tanto escuro
que nenhum grito
dor ou medo
faz pensar
ferido.

 

 

 

Entardecer no campo


A jade luz
traz ao seresteiro
a música dos pastos,
o mugir do horizonte calado,
a palha trançada
de cócoras, paciente,
e o olhar no além,
muito além
do buraco dos dentes.
 

 

 

 

Bailarino diáfano


Há horas que o vento
voa calado,
arrasta no rosto do céu
o seu véu e
desliza na ponta dos pés.
 


 

 

 

 

Ótica de amigo


Textura de poréns na alma
carregava despropósitos.

O definido engolido
era esquisito,

mas na casca eu via o rosa.

 

 

 

 

 

O velho sobrado


No velho sobrado que quase jaz,
o coqueiro permanece em teimosia de varal.

Não dá mais coco. Alguns
o aproveitam, outros não.

Há um desleixo natural de roupas encardidas,
umas vidas secando e molhando outras vidas.

No prédio ao lado, o vizinho atira uma banana e grita:
“três mil cascas apodreceram no seu telhado; com esta,
três mil e uma”.

Um morador do sobrado reclama. O outro
assobia para a menina que carrega
os livros escolares que ela não escolheu.

Algumas pessoas passam em frente ao sobrado.

A moça de batom desconta o feio visual
no sorriso polpudo de telha envelhecida.

A mulata envolve o filho com o braço
na despedida para mais um dia de labuta.

O moço que vem da rua nem a olha, preocupado
em entender a conta de luz que recebeu.

E o filho vê a mãe partir.

Nada diz.

Mas o portão range.


 

 

 

Uma canção desconhecida


Se pudesse, hoje eu seria esta música.

Uma voz de não saber tempo.
Um suspiro dado fora do ar,
luz que estala só o coração.

Tantos eus escutam o canto
que a suavidade o respinga
na voz que sou?

Ou tamanha voz ressoa em mim
como se meus tantos eu a fosse
assim, emprestada, numa tarde serafim?

 

 

 
   
Luís Manoel Paes Siqueira

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Pedro Lyra