Dimas Carvalho
Aqui, do meu quarto
Moramos todos
nós nesta casa, cada um no seu quarto, a família toda. Não sei
precisamente quantos somos, porque nunca nos vemos; na verdade,
nenhum de nós sai de seus aposentos. A comida é entregue no quarto
no momento em que o lixo diário é recolhido. Também não se vê quem
entrega a comida e recolhe o lixo. Mas, embora passando os dias
trancado aqui, viajo pelo mundo todo. Ultimamente estive em Camberra,
depois passei pelo Texas, Espanha, a Patagônia e a Cidade do Cairo.
Um dos meus
passeios favoritos é à Escandinávia. Adoro as paisagens geladas, os
meses sem sol. Lá, cavalgo os grandes rinocerontes rosados, passeio
pelos imensos túneis do metrô secreto que liga o Pólo Norte a
Londres e Nova Iorque. Quando baixam os discos-voadores, sou o
primeiro a recepcioná-los. Algumas vezes viajo de submarino. Desço a
profundidades abissais, sete, oito mil metros, e lá converso
longamente com polvos gigantescos, peixes cegos, corais
borbulhantes, vulcões e harpias. Os seres das profundezas possuem um
admirável senso de humor, e é um espetáculo edificante ver como eles
praticam um canibalismo filosófico e estóico, do qual não estão
ausentes o suicídio e as torturas mais sutis e pavorosas. Delicio-me
com a delicadeza dos seus poetas, pintores e artesãos, sem dúvida
alguma os melhores do globo, injustamente condenados, pela imensidão
das águas oceânicas, a um ostracismo e a um desconhecimento por
parte do público que só podemos classificar como absolutamente
deploráveis.
Também costumo
navegar para outras galáxias, embora na maioria dos casos, por pura
preguiça, não ultrapasse as fronteiras do sistema solar. Gosto de
passear principalmente nos anéis de Saturno e no nebuloso Netuno,
planeta da minha predileção, pois lá não se encontram cobradores,
parentes e cantores de rap, não necessariamente nesta ordem. E como
é bom cavalgar os hipocampos de Júpiter, deslizando pelas paisagens
veludosas que se estendem por milhares de quilômetros. Isso sem
falar nos mergulhos entre as nuvens de Vênus, que rendem horas de
êxtase contínuo, esqui privilegiado de prazeres conspícuos.
Voltando a
minha casa, descanso por semanas ou meses seguidos. Hiberno. Escrevo
longas cartas sem destinatários, ao mesmo tempo em que recebo
correspondência de pessoas que vivem no futuro e que se comunicam
comigo usando não sei que espécie de artifícios. Promovo grandes
banquetes, e alguns dos meus convivas mais freqüentes são Napoleão
Bonaparte e Leonardo da Vinci. Aristóteles aparece de vez em quando,
apesar de estar ultimamente muito ocupado, escrevendo um tratado
sobre as moscas azuis da Mandchúria. Mas tenho o maior cuidado de
não convidar para a mesma festa Joana D’Arc e Alexandre II, pois
eles simplesmente se detestam, e já tive muito trabalho em uma
ocasião em que o serviço de cerimonial falhou, havendo um
desagradabilíssimo encontro dos dois. Afora isso, os banquetes são
um verdadeiro sucesso, e até inimigos figadais, Churchill e Hitler,
por exemplo, se comportam exemplarmente, mesmo quando por acaso
sentam lado a lado. Só não consegui ainda entender é como cabem
neste pequeno cubículo em que vegeto 200, 300, 500 pessoas, sem
contar os músicos e os garçons, que, como todos sabem, são duas
espécies animais bastante agitadas, e que por este motivo ocupam um
espaço desproporcional às suas funções e utilidades.
Outro dia,
resolvi testar as minhas capacidades. Comecei por comer: ingeri 200
litros de gasolina, oito tortas, três queijos médios, seis
pizzas-família, dez quilos de cavala, doze quilos de capim-mimoso.
Depois corri setecentas léguas sem parar, tocando um trumpete que
ganhei no último Natal, presente de um urso panda amigo meu que mora
na Criméia. Não contente, nadei durante 50 dias, sem comer nem
beber, fazendo a circunavegação da África quatro vezes, e ainda
falam que Vasco da Gama é o tal. Para encerrar este meu período de
férias atlético-olímpicas, encerrei-me no túmulo de Nabucodonosor,
onde vivi por oitocentos dias alimentando-me com hidromel, formigas
e gafanhotos que me eram trazidos por carruagens de fogo puxadas por
dragões alados. Só saí de lá quando a grande águia rodou sobre mim
por setenta vezes, e todos os leões da Báctria começaram a urrar em
uníssono. Feito isso, arranquei as montanhas do Cáucaso para fazer
com elas a casa de morada do meu coelho de estimação, que reside na
hospitaleira cidade de Jamestown, para onde enviei, via telex, todos
os utensílios necessários à sua boa acomodação.
Agora estou
ouvindo barulho nos outros quartos. De cada lado vem um som
diferente: são fanfarras, músicas sacras, tinir de metais, descargas
de banheiros, trombetas, cristais que se partem, buzinas, silvos de
trens, roncos de avião, sinfonias fragmentadas, grunhir de porcos,
patadas, coices, miados, uivos, choques de caminhões em alta
velocidade, ambulâncias, explosões nucleares, trinados de pássaros,
alto-falantes, zumbido de insetos, troar de canhões, gritos, ruídos
de portas e janelas que se fecham com violência, pneus que freiam,
apitos, fragor de ondas, chuva caindo, relâmpagos e trovões. Em cada
quarto desta maldita casa acontecem mil coisas diferentes a cada
momento, e em cada um deles, eu sei, há um maluco escrevendo suas
fantasias mais delirantes, e, o que é bem pior, o relato de coisas
verdadeiras que vemos, ouvimos e sabemos e que, se as ousássemos
contar, seriam tachadas de fantasias e mentiras desvairadas. Mas
será que eles todos são realmente e totalmente malucos?
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