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Dirceu Villa


 

Eclipse (real e metafórico)
 

 

Observa-se em tom de crítica que os brasileiros ignoram a obra literária de seus países vizinhos da América Latina (não só da América do Sul): é verdade, e é lamentável.

Há um ligeiro atenuante, muito embora cretino, que nunca chego a ouvir daqueles que soltam essa crítica: os brasileiros ignoram a obra literária dos próprios brasileiros. Mas há, e acrescento por outro lado, um aspecto ainda mais indecoroso da mesma questão: se ignoramos os estrangeiros quando estão em seus próprios países de origem, o que dizer se os ignoramos quando vivem há trinta anos conosco? É o caso do poeta uruguaio Alfredo Fressia, um dos mais célebres moradores da Rua Aurora, que lançou há pouco, em Montevidéu, Eclipse: cierta poesía (1973-2003), civiles iletrados, 2003, contendo um livro novo (Eclipse) e uma recolha antológica de suas obras anteriores.

Homem culto, generoso e poeta importante, não só porque seja um poeta muito bom, mas porque também não cedeu a nenhuma moda poética, como tantos fazem apenas para verem seus nomes mencionados aqui ou ali por este ou aquele. Por isso, talvez, ainda não seja tão lido quanto merece.

Mas, se sabemos que ele não é um aproveitador, o que ele é?

Certa vez, conversando sobre o seu livro, foi deixando pelo caminho palavras como "penumbrista" e "crepuscular", com um sorriso ligeiramente irônico; se, por um lado, ironizava o hábito recalcitrante de se colar rótulos inócuos em tudo que aparece, por outro, indicava algo sobre sua poesia, que no fundo dizia menos respeito ao que de fato ela é do que a seu, digamos de um modo terrivelmente impressionista, temperamento. O nome de seu último livro, Eclipse, aponta para isso também e não por mero acaso: apegado aos desenvolvimentos das possíveis maneiras de se utilizar a palavra, de aspectos científicos, históricos e ocultos sobre o evento astronômico, ao fim da plenitude, à morte — por ilação —, encontramos um tom elegíaco e meditativo que seria uma das maneiras de se traduzir esse "penumbrista".
 

Sabías que esa noche llegaría, la del sistro de caliza
yaciendo en la caverna, en silencio los lobos
y los hombres de manos artífices, tan diestros
en el arte de morirse.
¿Y tú, ahí afuera, te sorprendiste herido por los astros?
Ya no palpitan, no son almas donde huía fugaz una pasión, esta vez
nacieron opalinos huevos del eclipse, esperando por abrirse
en el derrrumbe. Caerán sobre la tierra que pisaste, planetas huecos
de la primera cuadratura, piedras rotas sobre el cristal que habías historiado
con tus viejas escenas de caza en Nínive.
La hora llegó, ya viste demasiado el pergamino de tu cielo.
Ya sabes que tu pecho en negativo no acusa corazón ni familia ni nada
de sagrado, Fressia irremediable, sólo esa ostra celeste hecha de tiempo,
madreperla menguante (no repitas la mala suerte en el eclipse)
donde volvía a nacer siempre tu padre, indagando inútilmente
por un hijo, su mensaje en el tiempo, huellas digitales contra el vidrio
empañado de futuro y a ti, botella al mar, te tragaba el torbellino,
dorsal, desde los Apeninos a la pampa. (...)
[1]
 

Isto é, não se trata de uma poesia direta e veloz, mas que produz espirais, que contrapõe e vai concentrando argumentos, e que às vezes pode ser, entretanto, o contrário disso, como na primeira parte de "Tres Mesas del Sorocabana"[2]:
 

Los pensamientos vagabundos
se piensan
como nubes, así
navíos olvidados
o sin rumbo las nubes
no dejan señales en el viento
y erran
sin memoria
como dunas
a voluntad de mar
que nadie piensa.

 

Suavemente aliterativo, com assonâncias e pequenos blocos paronomásticos, que imitam o fluxo irregular das nuvens, enquanto as palavras executam, com espantosa simplicidade, a conexão entre elas, as nuvens, e pensamentos passageiros (que "no dejan señales en el viento") num impacto só.

Há o Fressia que ataca aspectos políticos, mas nunca panfletário, como no comovente "Praga Invadida", por exemplo; o que iconiza a cidade de Montevidéu, a Coquete ("Montevideo, la Coquette", entre outros); o da perspectiva homoerótica que, como escreve Luis Bravo no ótimo estudo introdutório ao livro, "fue pionera en la poesía uruguaya, junto al exultante Evohé (1971) de Cristina Peri Rossi."[5] O "Bello Amor", como no título deste poema:
 

Bello amor, bellos amantes,
porque el amor no pasa
de un memorial de hombres que me amaron (...)
bello y estéril, bello
porque estéril, porque destinado
al memorial de hombres que me amaron (...)

 

Mas essa multiplicidade temática revela sempre uma voz coerente, que nunca se fragmenta em cacos, construída com subordinações sintáticas, delicados arranjos de um estilo cultivado e que, portanto, realiza um trabalho muito complexo: é uma poética sem dúvida alguma atual e com forte sentido de tradição também.

Posso ouvir claramente a sutil ironia do meu caro Fressia: "penumbrista".
 

Alfredo Fressia
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