Rodrigo de Souza Leão
Dirceu Villa
entrevistado por
Rodrigo de Souza Leão
seomario@centroin.com.br
POUND
E
AS ESTRIPULIAS DE
DIRCEU VILLA
Dirceu Villa, poeta nascido em São
Paulo em 1975, é autor de MCMXCVIII (1998), publicado pela extinta
Série Badaró; escreveu também Descort (2000), que ganhou o prêmio
Nascente, mas, hélas! não foi publicado. Tem pronto um terceiro
livro de poemas chamado Zeusfaber (2002). Formado em Letras pela
USP, editou em 1999, juntamente com Cídio Martins, a revista de arte
Gargântua (para a qual desenhou a capa), e apresentou um programa de
entrevistas e leituras para a rádio da internet CR37, do museu Casa
das Rosas. Escreveu um punhado de prefácios, foi revisor de textos
médicos, quadrinista, acabou de publicar poemas na revista Ácaro e
prepara atualmente uma tradução em versos de Lustra, de Ezra Pound,
como dissertação de mestrado na USP. Foi incluído na antologia
Cities of Chance, da editora nova-iorquina Rattapallax — a ser
lançada —, em que traduziu os próprios poemas e os de Rodrigo
Petronio para o inglês. Por fim, tem se dedicado a traduzir e
adaptar as Metamorfoses, de Ovídio, por puro gosto da coisa.
1. Como foi ter
ganho o prêmio Nascente?
Considerando que foi o primeiro e
único prêmio ao qual concorri, foi uma sensação muito boa e bizarra,
porque o dividi com um amigo que venceu junto, o Rodrigo Petronio; e
umas pessoas que nos conheciam no anfiteatro começaram a fazer coro:
“Marmelada!”. Mas eu estou perfeitamente consciente de que prêmios
não significam nada no sentido de apreciação. Eu pensei, no entanto,
que funcionaria no aspecto editorial, que os editores olhariam e:
“Ah, você ganhou um prêmio”. Disseram isso, mas não mudou em nada a
vontade deles de me publicar.
A grande verdade, e um pouco chata
também, é que há um número ridiculamente inexpressivo de pessoas que
podem ler um poema bom e diferenciá-lo de um monte de bobagem. E a
grande maioria delas não é editor. Por exemplo, já ouvi de um editor
conhecido o seguinte sobre a obra do José Saramago: “Eu não entendo
disso, mas leio os jornais”. A literatura virou um comércio e os
editores se tornaram, em grande medida, comerciantes. Eles não
entendem do assunto, mas lêem os jornais. É muito difícil achar hoje
uma coisa que existia, o editor que “descobre” um autor ainda
jovem, algo que potencializava muito o meio. C’est dommage.
Por falar em comércio, o prêmio veio
na melhor hora possível, eu estava duro e o dinheiro me fez
sobreviver dignamente por alguns meses.
2. Quais mudanças
teve a sua poética do primeiro livro até o que está fazendo agora?
Mudou tudo. Na verdade, eu não gosto
de repetição e não acho que tenho uma poética, sumarizável em alguns
parágrafos. O pior crime de um autor, além da acefalia, é entediar o
leitor inteligente. E acredito que nunca fechei um livro temático,
com uma estrutura que vai explicando por que aquele poema foi
aparecer ali, a ligação ubíqua com o título — depois a crítica fica
maravilhada quando encontra as ressonâncias e produz vários volumes
sobre o assunto. Os meus livros refletem, suponho, não só o nível
técnico a que eu havia chegado, mas também as formas que fui
obrigado a usar ou inventar para dizer o que era preciso antes que o
leitor pudesse resmungar: “Ah, é o Dirceu Villa, tá na cara”. Há
também grandes poetas com linguagem muito definida e repetitiva,
como João Cabral, que se você lê muito em seqüência se torna
cansativo.
Mas eu disse “leitor” com muita boa
vontade e imaginação, porque publiquei apenas um livro, com tiragem
limitadíssima de 85 exemplares; de qualquer forma, funciona assim.
Escrevo poema a poema, e quando a quantidade revela ter retratado
suficientemente a poesia daquele meu período, eu procuro fechar um
livro.
Comecei testando minhas
possibilidades, no MCMXCVIII (1998), aprofundei isso com escolhas
mais específicas no Descort (2000) e deixei tudo de lado quando fiz
o Zeusfaber (2002), que é outra coisa, e sofreu algum influxo das
minhas leituras do Jean Cocteau, principalmente Le Cap de
Bonne-Ésperance, com um cubismo diferente do e anterior ao de Pound
dos Cantos, e muito interessante — Cocteau é um poeta que deveria
ser mais traduzido por aqui, mais lido. Houve, nesse meu último
livro também, a interferência do meu trabalho com as Metamorfoses,
de Ovídio: a velocidade da narrativa, a sucessão de quadros móveis e
a métrica.
3. Qual a
importância de ter uma revista literária? Como foi a experiência com
a revista Gargântua?
As revistas literárias tiveram uma
importância histórica e estética muito forte, principalmente no
final do século XIX— por exemplo, a Cosmopolis, que publicou o “Coup
de Dés”, de Mallarmé — e começo do XX — com as diversas revistas do
modernismo, principalmente a BLAST, dos vorticistas ingleses, sem
esquecer da Orpheu portuguesa e da Klaxon brasileira, que é muito
bonita, mas meio primitiva; depois, elas se tornaram um veículo
gasto, não tão empolgante, mas, ainda assim, um veículo,
particularmente para poetas jovens se tornarem minimamente
conhecidos (e eu acredito que, na verdade, dos editores). A
Gargântua entra nesse ponto.
Éramos meio moleques de faculdade
tentando aparecer e demonstrar que a poesia escrita na época não era
o lixo que costumavam dizer. Ora, apenas não tinham conhecido as
pessoas certas. Mas apesar da nossa qualidade e do nosso entusiasmo,
suspeito que a revista hoje me pareça um tanto inocente e (uma boa
qualidade) pretensiosa. A capa verde com metade do rosto da Medusa,
que eu imitei do Franz von Stuck, ficou ótima, mas mesmo isso não
ajudou a vender a revista, que foi um total fiasco financeiro e não
passou do número zero. Em parte, a culpa pode ser creditada à
distribuição inexistente, antiprofissional. O velho problema da
distribuição, que come uns dois terços do preço de capa e torna o
livro no Brasil um artigo de luxo.
A experiência de levar uma revista
teve seu tanto de prazer e aborrecimento. Prazer, porque é divertido
inventar as coisas (principalmente visuais), e nós contamos com um
bom amigo, o Douglas Braga, e a esposa dele, a Maila Blöss, que
estavam cheios de idéias. Foi ele que resolveu pôr a metade da cara
da Medusa, e foi uma sugestão e tanto. A Gargântua poderia — e
deveria — ter sido melhor. Mas tinha um ótimo patrono, o Rabelais.
4. Você fez o
programa de rádio para o site da Casa das Rosas. Conte-nos sua
experiência. O que é mais difícil e mais fácil para um perguntador?
A experiência foi muito boa, porque
trabalhamos sempre com pessoas que estavam interessadas na arte em
si, e faziam o que faziam por esse motivo. E não havia restrições,
podíamos falar de Eliot numa entrevista, pular para a Revolta dos
Malês (como na entrevista com o Luís Fulano de Tal), poesia latina,
questões sobre se existe uma poesia típica feminina, métrica no vers
libre, tradução, etc. Liberdade total.
O mais difícil é controlar o tempo. Eu
tinha meia hora para entrevistar as pessoas, e tinha gente que
rendia uma hora, uma hora e meia, e outros que balbuciavam por
quinze minutos. Eu certamente preferiria uma flexibilidade que me
permitisse encerrar o suplício de alguns poetas tímidos (ou
provocá-los decentemente) e estender a garrulice louca de outros.
Quando foi o Antonio Medina, professor de Língua e Literatura Grega
da USP, pudemos falar bastante, não só porque ele fala bem e muito,
mas porque o R.L. Jackson, que era, por assim dizer, nosso chefe e
incentivador, achou que dava. Mas foi uma conversa séria, o Medina
não soltou nenhuma palhaçada literária costumeira, que faz a gente
gargalhar pra valer; não foi como se você o encontrasse por aí e ele
viesse com as histórias dele. Mas foi muito bom e abordamos várias
questões interessantíssimas sobre tradução poética (falávamos da
tradução que tinha feito a partir da versão grega do Cântico dos
Cânticos).
O mais fácil, e acho que você deve
saber, é dirigir o assunto para onde se quer. Os entrevistados são
sempre pegos meio de surpresa — “quais vão ser as perguntas?”, “como
vou responder?”, “que figura sairá disso?” — e se pode dirigir a
conversa, com cuidado de nunca ir muito depressa, porque as pessoas
normalmente precisam de um tempo para se acostumar com um microfone
e com a invasão de suas idéias por um curioso.
Há um exemplo bizarro de
direcionamento da conversa, que foi quando me entrevistaram com
alguns amigos na Secretaria Municipal de Cultura, e que me fez
desconfiar da imprensa. Uma jornalista, com muito boa vontade,
resolveu que apareceríamos na revista da Secretaria porque na época
houve um certo burburinho sobre as nossas leituras feitas em sebos
do centro da cidade de SP. Ela foi muito simpática, mas nós
percebemos que já havia uma opinião formada sobre quem éramos. Eu e
os meus amigos passamos o tempo todo tentando delicadamente
dissuadi-la da concepção Sociedade dos Poetas Mortos que tinha sobre
quaisquer poetas vivos. Falamos de poesia medieval, de experimentos
técnicos, mencionei o Lorenzo dei Medici, que escreveu uma poesia
ornamental, etc. Depois percebemos que talvez tenha sido pior. No
primeiro parágrafo da publicação, para nosso total espanto, nos
tornamos personagens shakespeareanos, românticos, idealistas,
sofisticados. Eu devo ter falado algo de Shakespeare, e daí ela
aplicou uma dose cavalar de Harold Bloom. Enfim, eu procurei rir.
5. Como é tão jovem
e ser tradutor do Ezra Pound? Quais são as dores e as delícias da
tradução?
Muito sinceramente, eu ainda não sou
“tradutor de Ezra Pound”; estou trabalhando em um livro dele,
Lustra, publicado em 1916. O caso é que sempre houve algo de
congenialidade minha com Ezra Pound, o que me levou a tentar
traduzir alguns poemas ainda inéditos. Eu comecei quando estava
trabalhando como revisor de literatura médica, um trabalho maldito:
os textos eram um desastre completo e as traduções da editora
pareciam ter sido feitas no Babylon. Houve manhãs em que dormi
solenemente em cima das provas, e todo dia pensava em como ler
pilhas de textos mal escritos arruinaria a minha arte; é provável
que naquele ano não tenha escrito uma linha. Enfim. O fato é que,
para não sentir que estava enterrando minha vida naquele lugar por
uns míseros trocados, comecei a traduzir poemas do Lustra escondido.
Esse sempre foi um livro que a crítica tratou com desdém, porque
ficou entre o volume elegíaco que Pound tirou do chinês, Cathay,
aquele que consideram a primeira grande obra dele, Hugh Selwyn
Mauberley, e os Cantos, a obra definitiva. Como eu acho muito errado
pensar assim, e parece um pensamento típico anglo-germânico, de
etapas sucessivas de superação, resolvi que poderia dar uma tese,
oferecendo mais um livro de Pound em português (Lustra ainda está
inédito por aqui, a não ser por alguns poemas bem traduzidos por
Mário Faustino e Augusto de Campos naquela histórica antologia da
Hucitec & Edunb) e repropor o interesse no livro. São poemas muito
atraentes e malévolos, é um livro muito charmoso.
Traduzir tem um lado muito bom que é
parecido com teatro: você precisa se imaginar como outro autor para
encontrar palavras certeiras, o estilo, a voz, digamos. Há também
estripulias técnicas, que funcionam como um jogo, e também são muito
interessantes. Já em outras traduções que eu fiz, o divertido foi
encontrar um meio caminho entre a minha linguagem e a do autor que
eu estava traduzindo, e incorporar ao texto algo que pertence à
mesma tradição; há muito mais liberdade, é um trabalho menos
ilustrativo e mais pessoal. E dá bons resultados, se você sabe o que
fazer.
E quanto à juventude: é a época das
ousadias insanas, não é? Há os caras que tiram racha, eu traduzo
Pound.
6. Oceano: ”(...)
os homens não sabiam não faziam idéia/de que o mundo se mantinha
sem beiradas/sem aparos era o mundo um horizonte curvo/além do
que se vê além do que se vive além “. O que é o além para o
poeta? O Oceano é eterno?
Para o poeta, em termos gerais, eu não
saberia dizer. Há poetas e poetas. Nesse poema que você mencionou
talvez queira dizer: é simples supor que se pode definir a vida em
termos daquilo que se conhece, e ignorar ou simplesmente deixar de
reconhecer que sabe-se dela uma parte ínfima. Talvez por isso o
poema tenha algo, me parece, das chamadas Grandes Navegações, e do
espírito da vã glória de mandar. Porque nesse caso se pressupõe que
se entende suficientemente do mundo para dizer como as coisas devem
ser. O que resulta numa espécie de George Bush.
Sobre o oceano. Eu gosto muito dos
litorais e tenho um verdadeiro amor pelo mar. Você pode olhar para
aquela vastidão de água que os olhos não apreendem e pensar
inclusive que há mais daquilo no mundo do que terra. E será sempre
algo que você conhece menos e tem menos familiaridade com do que a
terra. Se isso não puder sugerir uma sensação de distância do que se
conhece, então eu não sei o que pode.
Já eternidade é uma coisa um pouco
longa demais para um sujeito que irá, na melhor das hipóteses,
desfilar uns noventa anos por aí, opinar sobre.
7. Syllabus: “Os
deuses se inclinam num pórtico/velho do centro esquecido, em São
Paulo: curvas art nouveau no parapeito”. Falar dos Deuses é a melhor
forma de ser moderno ou pós? Ser moderno é a ambição do poeta?
Eu não sei o que é ser moderno. “Pós
moderno” é, você me perdoe, uma expressão vazia como um cheque em
branco: você põe lá o que bem entender. Porque seria preciso supor
que sabemos precisar o que é moderno, numa definição, e que pós
moderno seria aquela baderna posta junta só porque vem depois de se
fechar o ciclo anterior. Mesmo no chamado “modernismo”, por exemplo,
há posturas diametralmente opostas, como as dos futuristas de
Marinetti e dos surrealistas de Breton. Qual define o que se chama
moderno? Ou, digamos, defina-me de modo que caibam nisso os dois
tipos e mais todos os outros. É fácil generalizar um duvidoso
“espírito de época”, mas fica bem complicado quando se desce para as
obras. Tem quem leve “pós moderno” a sério, Frederic Jameson e
outros críticos, mas para mim isso é engarrafar fumaça. Jameson, por
exemplo, escreveu que as botas do Van Gogh eram um quadro mais
“profundo” que as sapatilhas de bailarina de Warhol. Muito bem, como
é que se mede essa profundidade, com uma régua? Se estivermos
falando apenas do aspecto pictórico de profundidade, por que tratar
como um valor em si? É conversa de louco.
Vamos supor que moderno possa ser algo
que se considere pertencendo, sempre, a uma espécie de hoje
atemporal. Isso é possível, embora você tenha de tomar saudavelmente
uma posição anticientífica (além do mais, a falsa postura científica
nunca deveria ter sido adotada em assuntos de arte). Barreiras de
língua e tempo podem ser quebradas, e isso é o que nos diz a obra de
Shakespeare, Ovídio, Velásquez, etc. Suponho que essa ambição é
comum aos artistas, poder falar, como for, às pessoas de tempos
diversos; é claro que alguém pode dizer que isso demonstra uma
vaidade fenomenal, mas por outro lado só falamos de cultura porque
houve o que transcendesse o tempo em que surgiu.
Quanto à outra parte da pergunta: não
estou “falando dos deuses”. Alguém pode falar dos deuses num
tratado, numa obra histórica, com um distanciamento seguro. Eu não
estou falando dos deuses. Eles pertencem a uma sensibilidade que não
tem como se expressar de outra maneira. Os deuses pertencem às
manifestações vivas da natureza, do meu ponto de vista. Nesse poema,
eles se opõem à beleza finita dos prédios artisticamente concebidos,
que uma época dinheirólatra deixa estragar para pôr um monstro de
vidro, metal e concreto no lugar. Porque é mais moderno.
8. Seus poemas são
cheios de referência. Você nos fala de Goethe, Duchamp, Yeats.
Quanto mais referência melhor o poema?
Bem, quanto a Goethe, é que a piada
era boa demais para se perder. Esse tema persistentemente romântico
das últimas palavras no leito de morte costuma ser visto até hoje
com admiração, e por isso sempre se carrega na qualidade filosófica
do dictum quase-fúnebre.
No meu caso, quando leio referências
bem empregadas numa obra, elas me atiçam a curiosidade (que,
convenhamos, é uma qualidade bem decadente nos dias de hoje). Outra
coisa que as referências fazem é demonstrar que tal arte é uma arte,
e que os praticantes dela têm gostos, ou universos que podem ser
partilhados com proveito. Às vezes pode parecer cansativo, mas eu
garanto que é estimulante. E isso não tem nada a ver com qualidade
propriamente poética. Há inúmeros poetas que não referem nada (ao
menos não tão marcadamente como eu) e são magníficos. E há milhares
que prendem em seus poemas uns badulques chiques com mão tão pesada,
referências tão desproporcionais no sentido de onde a tirou e onde
ela veio parar, que você percebe não haver conexão alguma entre
qualidade e citação.
E eu, de qualquer forma, não acho que
as minhas referências sejam impeditivas. São todas de um tipo muito
brando, muito simpático, de convite ao leitor a compartilhar a
leitura, ou o modo de ler.
9.Você se utiliza
dos mitos gregos para construir a sua poética. Qual a importância
dos mitos gregos hoje em dia?
A mesma importância que mar,
mulheres, homens, plantas, animais, transformações, deus, o “como eu
me sinto”, as roupas no varal, a justiça, a injustiça, a guerra
iminente, os problemas próprios da linguagem e da língua, piadas, a
juventude exuberante, outros poemas, seus amigos, seus inimigos,
trocadilhos, as boas e más idéias, o sexo, viagens, filosofia,
farras, fossas, a velhice, a sabedoria da experiência meditada, a
música, a rabugice, o prazer de viver, a doença, etc. têm para a
arte.
A ordem dos fatos na pergunta é
importante: eu não me utilizo de nada para construir a minha
poética, porque eu nunca sentei para escrever e pensei: “bom, aqui a
gente pode pôr o Netuno, depois uma seqüência de imitação de
hexâmetros datílicos, e vem um cara e fala um palavrão”. O poema
pede certas coisas, e tudo que você pode fazer, se souber como, é
dar. Isso não é para ser confundido com inspiração. Eu escrevo
poemas porque, entre dois trilhões de coisas que os seres humanos
fazem, calhou de ser isso o que eu faço, e há um trabalho infinito
de revisões e colagens, e até reescrituras muito elaboradas do
material bruto. Então há uma cultura de poesia (ou havia) e se pode
escrever poemas, e muitas idéias no meu cérebro já vêm exigindo uma
forma, assim como um filósofo é um impertinente viciado em perguntas
que ele encontra em toda parte.
10.”As flores
amarelas, flores gramofones, flores/sob os teus pés, flores que saem
de bolsas em tua homenagem/flores cobrem o chão, flores voam das
mãos, flores/anunciam o que virá, as flores amarelas com mil bocas”.
Há flores por todos os lados como na música dos Titãs?
Há flores por todo lado na casa onde
eu moro. E são amarelas. Na verdade há também um pouco da
recordação, quando estava escrevendo, de um filme dos irmãos Taviani
que se chamou por aqui “Noites com Sol”. É um belo filme tirado do
livro do Tolstói, Padre Sérgio (que saiu recentemente pela Cosac &
Naify), e há uma cena em que o menino — que virá a ser o Padre
Sérgio — espalha um monte de flores pelo caminho em que passará uma
autoridade, creio que religiosa. E então há essas flores amarelas,
que parecem clarins, e aí há o poema que chega num momento onde é
preciso que o personagem se esqueça do pensamento. Sem nada à volta,
as flores muito coloridas parecem chamar um tempo ou um lugar em que
as preocupações dele não têm mais sentido. Por vezes isso nos dá
certa sensação de alívio, não é?
11) Quais
seriam, em sua opinião, as reais perspectivas da poesia no mundo
contemporâneo? Por favor, discorra sobre o assunto.
Essa é uma pergunta bem ampla, não é?
Na Itália tem uma coleção de poesia e na contracapa vem anúncio da
Calvin Klein. Você compra um livrinho com antologia do Catulo e ele
vem com anúncio da Calvin Klein. No Brasil isso não existe, a
ligação entre uma coisa e outra é tão impensável que não acontece.
Então, mundo contemporâneo é muitas coisas diferentes ao mesmo
tempo. Na França ninguém se atreve a dizer que letra de música é
poesia (mesmo porque as letras deles são uma porcaria), e aqui você
tem essa polêmica divertida e acirrada. Nos Estados Unidos há um
ramo que faz confluência entre a performance e a poesia, que tem
algo a ver com rap. Eles têm também o poet laureate, que em geral é
um canastrão que só podemos aproximar dos da ABL, e ainda assim fica
impreciso. De modo que apontar perspectivas, ainda mais reais, num
meio tão estratificado e movediço seria muito irresponsável ou
irrefletido.
O que se pode dizer, ao certo, é que
as perspectivas da poesia serão sempre aquelas que os poetas
construírem. Se se pode dizer que passamos por um período tenebroso
e ignaro, os poetas têm culpa nisso também. Se se pode definir a
poesia, como toda arte, como algo que refina os nossos sentidos e a
nossa inteligência, eu presumo que ela sempre será necessária, mesmo
que de tempos em tempos não ofereça tanto brilho. Acredito que se
você vivesse no século XVIII e tivesse uma boa perspectiva crítica,
diria que a poesia não tinha mais para onde ir, e que os poetas
então contemporâneos eram uma desgraça. Períodos como o fim do
século XIX na França, ou os primeiros decênios do século XX na
Europa (com poucos etc.), são raros.
Acredito que a poesia, a verdadeira
poesia, continuará sendo um bem inestimável, qualquer que seja a
forma que tome. Nossa impressão de sufoco atual se dá por uns quatro
ou cinco motivos: 90% de tudo que se faz é sempre lixo, mas agora
publicamos mais e há esse mal-estar; ninguém mais acredita que
existam parâmetros para se julgar arte, então eu posso não gostar e
devo ficar calado no meu canto, já que não entendo nada do assunto;
há outros meios de comunicação mais eficientes, como o cinema, ou
acessíveis, como a tv; nossa educação, a brasileira principalmente,
é um desastre provinciano ridículo, currículos precisam ser
urgentemente revistos, etc. Mas não é nada alarmante, é histórico,
um processo que se fecha em determinado momento. Mesmo porque
realidade — na intenção de reconhecer “reais perspectivas” —, é algo
indefinível. A realidade, ou o que isso significa para uma pessoa, é
uma malha complexa e suscetível à maneira de se olhar para ela.
12) Como os
artistas, entre eles, especificamente os escritores e, entre eles,
mais especificamente ainda, os poetas poderiam intervir neste mundo?
Com arte, por exemplo. A mistura disso
com ações mais, por assim dizer, interventoras, resulta em panfletos
medíocres ou em mal-entendidos colossais, como o de Ezra Pound, que
quase arruinou para sempre sua obra diante dos olhos das pessoas. Ou
Maiakóvski, que se frustrou amargamente com os descaminhos que tomou
a idéia inicial de revolução na Rússia.
Podem intervir também com educação. Já
que nós, artistas, somos tão sabidos, por que não arranjamos meios
de espalhar nosso conhecimento? Mas é preciso um pouco mais de bom
humor e é preciso não se levar tão a sério como os artistas “sérios”
têm feito ultimamente: são uns carrancudos, ou pessoas que explicam
o fato de os demais não se interessarem por literatura.
Muito antigamente os poetas não
precisavam ser uns aborrecidos com o mundo, nem uns arrogantes que
querem meter o nariz em tudo. O artista herói é um romântico, mas
devemos lembrar que ele normalmente morria cedo de tuberculose ou
passava desta para melhor antes de entrar na luta (como Byron pela
liberdade da Grécia). Um pouco do espírito de vanguarda revive o
romântico, mas diz assim: “Querem saber de uma coisa? Vocês são uns
idiotas vulgares e eu e meus amigos estamos à frente da sua
mediocridade”, e é claro que faz sentido até virar pose & paródia,
quando se esgota. E começou mais ou menos com Baudelaire. Mas a
vanguarda, na metáfora militar, deixa de lado o fato intrigante de
que é ela também que morre primeiro, a golpes de baioneta.
Os poetas não são pessoas
necessariamente boas, nem mais espertas a respeito de que rumo as
coisas devem tomar: são pessoas que captam, compreendem e exercem
linguagem num nível incomum, interpretam, representam. Então eu
proporia menos afobação em intervir e concentrar mais dessa
formidável intensidade na composição. O resto se faz por si.
13) Quais seriam,
no seu modo ver, as principais linhas de força e de fuga da poesia
atualmente produzida no Brasil? De onde viemos e para onde vamos?
Técnica e estilo, e menos ares de
importância. É uma lição aparentemente simplória, mas temos poucos
exemplares disso no país. Machado de Assis seria o caso clássico na
prosa, uma coisa não sobredetermina a outra, mas atinge o nível da
elegância. Ele não clamaria ser um grande técnico, não teria muito
interesse em ser visto como estilista, o único atributo do Eça de
Queirós, que não sabia muito bem o que fazer com isso. Rui Barbosa
no discurso sobre a morte de Machado vê só o estilista, e hoje nós
sabemos como Rui Barbosa era mau escritor e mau leitor, típico
fenômeno de época.
Mas aí é que está: linhas de força e
fuga valem apenas para tradições fortes de poesia, como a francesa,
que você pode pôr em perspectiva. Mas a francesa vem, no entanto,
numa decadência brutal, veja as polêmicas do Houellebecq, que são
umas provocações de criança e, no entanto, lá se morde a isca.
O Brasil não tem nenhuma tradição
forte e sequer tem uma relação lá muito saudável com o objeto livro,
que vende adoidado em Bienal, mas só lixo. Poesia nunca teve muita
importância no nosso currículo, nem nunca foi algo carregado de
algum nível de nobreza. Quem esgotou as possibilidades da língua
portuguesa? Nunca houve essa sensação, como terá havido na
Inglaterra com Shakespeare, na Itália com Dante, etc. Não no sentido
infantil de angústia da influência, mas “muito bem, vamos para onde
daqui?” Isso estimula o desafio estético à convenção, ultrapassar o
supercânone.
Por outro lado, as grandes tradições
nacionais estão evaporando em favor de uma configuração mais ideal
de o que é arte pertence ao mundo. O único problema para a poesia,
para a arte da escrita, é que as línguas são diferentes, e isso até
certo ponto constitui patrimônio exclusivo. Daí as traduções, que
pretendem enxertar conhecimentos exteriores na língua de chegada, ou
promovem híbridos inovadores. Por incrível que pareça dizer isso no
começo do século XXI, os artistas brasileiros em geral precisam se
libertar do provincianismo de se contentar com qualquer poeminha e
de se sair arranjando quem proclame sua grandeza nos jornais.
E linhas de força não ajudam, porque
Carlos Drummond de Andrade foi um bom poeta, certamente uma linha de
força, e os que o tomaram como algum tipo de orientação produziram
coisas inanes, todo mundo obedecendo a uma tirada dele, a de que a
melhor poesia é um sinal de menos. Bem, isso eles conseguiram. Mesma
coisa acontece com a linhagem que se seguiu aos poetas concretos.
Linhas de força não ajudam: são um modismo ou uma limitação
acabrunhante. O poeta está a sós com sua poesia e precisa ser
honesto com isso: não pode seguir ninguém como a regra, porque daí
está contido no outro, é uma perda de tempo, e as pessoas podem
muito bem decidir, buscando a linha de fuga do quadro, que preferem
voltar à matriz.
14) Como
você situaria a sua própria obra no contexto atual? Fale sobre suas
potencialidades e limitações.
Minha obra é daquelas que, por ficar
no subterrâneo, não faz parte de nada exatamente, mesmo porque eu
não me identifico muito com o que tem sido feito, embora aprecie
alguns poetas, como, por exemplo, o Donizete Galvão — que ainda não
recebeu todo reconhecimento que merece, e a quem eu cheguei por mero
acaso, lendo o Nanico, publicado pelo Cláudio Giordano — e alguns
poetas mais próximos de mim em idade, que aconteceu de eu conhecer
por um motivo ou outro. Eu estou evidentemente me restringindo à
poesia brasileira.
É muito provável que minha obra vá ser
vista como parte de algo que está ainda em formação. É provável que
minha obra seja vista como uma anomalia, e é provável também que
minha obra nunca seja vista (embora você agora esteja dando uma
ajuda para o contrário). Não sei. Não tenho e sequer terei algum dia
distanciamento suficiente para situá-la, trabalho que cedo
gentilmente aos críticos de boa-vontade sobre a Terra (excluindo os
sociológicos, se é que existe alguma piedade neste mundo).
O que posso dizer é que minhas
potencialidades e limitações decorrem exclusivamente da matéria
mesma de que é feita minha poesia, e que ela é muito, muito
interessante. Ela me agrada mesmo, porque faço exatamente o que
gostaria de ler, ou você pensa que eu estaria falando tudo isso e
escrevendo um livro de poemas atrás do outro, achando que tudo não
passa de distração?
Um amigo me disse que eu tenho cara de
póstumo. Eu diria que isso é uma sensação insólita, meio
sousandradina.
Rodrigo de Souza Leão
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