Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Eleuda de Carvalho


 

A invenção do Brasil

 

Invenção do Mar - Carmen Saeculare, escrito por Gerardo Mello Mourão, é o mais novo épico da língua portuguesa. Após Os Lusíadas, onde o vate caolho e guerreiro Luiz Vaz de Camões conta a trajetória do povo português em suas delicadas caravelas, atravessando o Bojador, o Cabo das Tormentas, até dar - por acaso ou astúcia - nas costas do Brasil; e depois, com o lirismo sebastianista de Fernando Pessoa em Mensagem (sonhando, ele e seus heterônimos, com o Quinto Império), é a vez de a "a última flor do Lácio, inculta e bela" servir de veículo às cantigas epopéicas do poeta brasileiro, nascido em 1918 sob o sol dos Inhamuns.

O dístico latino, que se conjuga ao título do livro, significa, segundo o professor Carlos D'Alge, canção (ou lamento) secular. ``Você escolhe o que achar mais correto'', me diz. Ao livro de Gerardo cabe a dupla denotação. Invenção do Mar é canção e é lamento. Aqui, cantam-se os feitos dos antepassados, gentes portuguesa, negra e índia que, amalgamando-se, originaram o povo da raça Brasil. E é lamento, mais pelo presente e por causa do incerto futuro, pois o gigante está ainda adormecido no berço nada esplêndido da incompetência.

Invenção do Mar se compõe em sete cantos, precedidos por epitáfios e finalizados com uma gênese de intertextualidades. E é dedicado ``à memória de Luiz Gonzaga, Homero cantador dos mares do sertão e seus viventes''. Gerardo Mello Mourão diz que, desde os anos 60, pensava este livro, que teve redação finalizada entre 95 e 97, ano do lançamento. Em preparo, a tradução para o espanhol e o francês, ainda para 98.

A métrica épica clássica, do Homero grego e do latino Virgílio, articula-se aos versos livres e aos martelos e sextilhas dos cantadores de viola. Como padrão e mote, a invocação seguinte: ``O mito gera a lenda, a lenda gera o herói/ e só o herói pode gerar a história''. E a história, sintetiza o poeta Gerardo, "é fruto e flor da lenda".

Para ciência do leitor, o poeta tece a partitura do poema, reafirmando: "Nosso tempo, qualquer tempo que haja cortado o cordão do umbigo com o mito e a eternidade, é um tempo indigente". E, contrariando os estreitos becos que circulam as academias, e que davam como morta a épica neste tempo pós-moderno, Gerardo Mello Mourão segue reafirmando seus cantos de louvor e glória aos finados homens e mulheres que nos antecederam, repetindo, ao longo do poema, a expressão de sua masculinidade sertaneja: "e destes bagos venho", viemos todos nós.

Abrindo o Canto Primeiro, um verso provençal repetido certa vez, em sala de aula, pelo menestrel do conto, Moreira Campos, apertada magreza no seu paletó escuro, olhos em chama: "Ai flores do verde pinho". E esta flor da língua d'Oc ecoa no barroco do sertão -"na flor, na frôl e na fulô e seus aromas: saudades dos marinheiros", diz, na rapidez de um galope à beira- mar.

Os cantos assinalam os "barões do mar e vice-reis dos ventos", que fizeram a primeira globalização mundial entre os séculos 15 e 16. E o que acharam: "O sertão os espera em suas furnas/ de tetos de esmeralda e chão de prata/ entre marfins e pedras milagrosas". E a nova terra foi batizada, América.

O mito, miolo do épico, substância da história e espírito da poesia, tem para os de nossa língua um nome, perdido para sempre nas areias do Marrocos, recuperado no sabor de fado da língua lusitana, temperada aqui pelo nheengatu indígena e pelas falas de Angola, Moçambique, Costa do Marfim. "E no fundo da alma/ eram todos em busca de Sebastião/ pelos quintos do mundo". E, mais adiante, a revelação do Encoberto: "é por dentro de nós que ele viaja/ e espantados narcisos olharemos/ no cristal das lagoas e regatos/ nosso próprio rosto(...)/ E somos nós/ nossa própria esperança./ Sebastião sou eu".

Antes ainda das caravelas, contavam velhas lendas célticas de uma terra para além do grande mar, e lhe chamavam Brasil. Está nos mapas náuticos medievais. Depois, quando por aqui chegou Pedrálvares trazendo os seus, disseram Terra de Santa Cruz, de Vera Cruz, dos Papagaios. Tudo era mata, céu e solidão. "Na solidão os fortes são mais fortes:/ começa a terra onde se acaba o mar/para lá das estrelas só os deuses''. E as entradas ao desconhecido, as bandeiras que partiam da beira do Tietê, a bandeira do Rei e do Cristo abrindo caminhos ``entre onças, cascavéis e crocodilos'': ``O cascalho e a poeira dos caminhos/ manchavam desmanchavam tordesilhas/ e empurravam fronteiras de papel".

Final do Canto Terceiro: ``Destas heranças lavro um inventário/ e guardo um mar que é meu e a minha terra/ e a língua bela em que as estrelas cantam''. E onde se canta heróis destes 500 anos, até o velho Prestes, o ``bandeirante da última bandeira''. Junto com ele vão as sombras de Diogo Cão, do matador de quilombolas e tapuias Domingos Jorge Velho, o assombro da Casa da Torre, do sesmeiro e chefe de clã Garcia D'Ávila, a partir da qual se tomou de assalto o sertão, alumiado por um batedor de fogo, as coivaras. ``E os engenhos que moeram a cana caiana agora moem/ lembranças e saudades''.

Fala-invocação do aedo: "Eu poeta vim para cantar/ a bravura dos machos e a graça das mulheres/ na madrugada do país''. ``E não tenho mais nada - rico de nada, nada mais/ que essas memórias e escrituras/ senhor do cabedal dos tempos -eu Poeta,/ pastor de águas e de caravelas".

Invenção do Mar é também um memorial da raça. Lutas de confederados nordestinos, de padres que seguravam na mão um crucifixo, na outra um arcabuz, a valentia das mulheres de Tejucopapo. "Cada palmo de terra era um palmo de sangue". E, no canto final, a repartição: "Deixo à raça de Caim a herança de Caim. /... a cada varão da raça de Abel uma viola uma vela e uma caravela". "E era uma vez e era uma vez e era uma vez...". E fim.


Gerardo segundo Walmir
 

Gerardo Mello Mourão, aclamado poeta do século 20 pela Guilda Órfica (instituição espanhola que resiste há 600 anos), pode até nem ser conhecido ou reconhecido como deveria em seu próprio País, o que não é uma surpresa. O comerciante Walmir Farias, 57, "chegando em 58 já, já", está todo santo dia no balcão da Cantina do Gui, ali na esquina da Tenente Benévolo com Monsenhor Bruno. Entre queijos, melões, tomates, macarrão instantâneo, refrigerantes e fregueses, sobra tempo para conversar sobre seu poeta predileto ou para ler mais uma vez Os Peãs.

"Chegamos a ter uma origem comum, um parentesco remoto. Ele é um poeta sofisticado, profundo. Não é muito conhecido no Ceará, muito divulgado. Ele é um poeta mais elaborado, não é de fácil acesso. Muito embora uma parte da obra dele seja comum, uma parte por sinal muito gostosa, a história das famílias, a luta dos Mourões, Feitosas... Faz parte desse épico dele, uma poesia muito marcada pela valentia dos antepassados, de lutas e vinganças. Porque os Mourões foram perseguidos aqui, no tempo do Alencar (pai do escritor José de Alencar. Governou o Ceará a partir de 1834)''.

"Nesse poema (O País dos Mourões, reunido a outros dois livros em Os Peãs) ele se refere ao padre endemoninhado, como é que ele diz? - 'Nessa época, governava o Ceará um padre adúltero e endemoninhado, invejoso da raça dos Mourões'. Ele faz o elogio do macho, dos Mourões, 'fortes e belos'. Depois ele parte pra reflexão, os costumes, a tradição, onde ele realça o valor, a coragem, a lealdade".

"Eu li Os Peãs, que reúne três ou quatro livros (três: No País dos Mourões, Peripécia de Gerardo e Rastro de Apolo). A parte dos romances nunca me interessou. De tanto eu emprestar está remendado. Agora mesmo está emprestado. O Gerardo Mello Mourão é muito afirmativo e muito delicado. Quando ele fala do tempo do seminário, dos professores, se refere a cada um, como uns sábios, citava até os nomes. E essa maneira de ele fazer poemas, a partir do fato histórico, essa chamada para uma reflexão, é muito bacana isso".

"Era no tempo da ditadura e o Magalhães Pinto se propôs ser candidato contra os militares. Era um dos líderes civis mais importantes da revolução. E Gerardo Mello Mourão trouxe ele pra cá. Na portaria do hotel, a moça deu uma ficha pro Magalhães Pinto, senador da república, preencher. O Gerardo se danou: - Que porcaria, negócio mais atrasado, um senador da república preenchendo ficha na portaria do hotel! Ele é assim, exaltado".
 

 

Gerardo Mello Mourão

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03.08.2005