Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Eleuda de Carvalho


 

O estilete, a tabuinha e o clássico

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

Estudiosa e pesquisadora da literatura clássica, a professora Zélia de Almeida Cardoso, da USP, autora de A Literatura Latina, conversou com o Vida & Arte a respeito da obra prima de Virgílio, Eneida

 

Na década de 70, um grupo de professores da Universidade de São Paulo - USP começa a desenvolver o núcleo de pós-graduação no estudo dos clássicos. Entre eles, a doutora Zélia de Almeida Cardoso, autora de A Literatura Latina (Martins Fontes), professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Zélia também é conselheira da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, que edita a revista Clássica, e faz parte do Instituto de Estudos Avançados, também dedicado a destrinçar o cabedal de arte e cultura que a Antiguidade nos legou.

Ao leitor contemporâneo, uma boa chave para a compreensão da poesia épica está no endereço www.paideuma.hpg.ig.com.br , que contém muitos artigos escritos por Zélia de Almeida Cardoso. Lá, por exemplo, pode-se conferir uma conceituação de poesia épica: ''Gênero a que se filiam narrativas em verso que têm por assunto fatos heróicos vividos por personagens humanas excepcionais, manipuladas, de certa maneira, pelo poder dos deuses. A tradição grega é responsável por essa conceituação, que se desenvolve com o tempo, fixando-se as características formais do gênero''. Pode-se conhecer também a origem do étimo ''épica'', derivação do grego épos: ''palavra, discurso, voz; palavra proferida; palavra inaugural, criadora, matriz''. No site, Zélia de Almeida também apresenta uma síntese dos doze livros que compõem a Eneida, fala sobre o caráter sagrado da epopéia, a épica e as diferentes culturas. Nesta conversa por e-mail com o Vida & Arte, a professora trata da influência de Virgílio em autores como Dante Alighieri e Luís Vaz de Camões, aborda as personagens femininas do poema e diz que Virgílio construiu todo um mundo, riscando os versos do poema com um estilete numa tabuinha encerada. (Eleuda de Carvalho)


O POVO - De que forma o poema de Virgílio vai influenciar a literatura ocidental, em especial ao poeta Dante, depois, a Camões?

Zélia de Almeida Cardoso - Dante, ao compor a Divina Comédia, trabalhou com o tema da visita ao mundo dos mortos. Esse tema já havia sido explorado, na Antigüidade, por Homero e Virgílio, entre outros. O mundo das sombras de Virgílio, entretanto, é incomparavelmente mais complexo que o dos demais escritores. Embora se costume dizer que Dante se baseou numa concepção cristã, dividindo as regiões das almas em Paraíso, Purgatório e Inferno, enquanto Virgílio é um escritor pagão, apegado a velhas concepções, esses três ''departamentos'' focalizados por Dante já se encontravam presentes no ''inferno virgiliano'', retratado na Eneida. Ao dirigir-se às profundezas da morada dos mortos, guiado pela Sibila de Cumas, Enéias passa por todos os setores que a compõem. Virgílio não esqueceu nem mesmo o Limbo, onde estão as almas das crianças mortas que não chegaram a gozar das doces alegrias da vida. A descrição do Tártaro, com o fogo, as correntes, os gritos e os criminosos que cometeram delitos hediondos e foram condenados a penas eternas poderia confundir-se com a do inferno cristão, descrito por autores da Antigüidade tardia e da Idade Média; os Campos Elísios, onde residem aqueles que foram premiados por terem sido justos e bons, é uma imagem - meio edênica, é certo - de um paraíso almejado por todos; e nem o Purgatório poderia faltar - lá estão as almas daqueles que cometeram faltas mais leves e aguardam a purificação. O tema de Dante, portanto, está intimamente ligado à Eneida. E o próprio fato de o visitante da Divina Comédia ser ciceroneado por Virgílio em seu ''passeio'' dá testemunho da ascendência do poeta latino sobre Dante. Quanto aos Lusíadas de Camões, a influência da Eneida é sensível a todo momento: na proposição do assunto, na invocação às divindades, no relato que se inicia in medias res, na descrição da tempestade, nas referências ao gigante marinho etc. São inúmeros os pontos de contato.


OP - O que a senhora pode falar sobre o estudo dos clássicos? Com o fim do ensino do latim nas escolas, a poesia de Ênio, de Virgílio, ficou ainda mais distante de novos leitores.

Zélia - Os clássicos estão aí, para todos. Se o latim deixou de ser ministrado nos cursos de primeiro e segundo graus, de forma universal - o que foi sempre bastante problemático, na universidade e nos cursos de pós-graduação, aqueles que o desejarem poderão aproximar-se da vasta e bela literatura que o mundo antigo nos legou. As editoras têm publicado muita coisa relacionada com o mundo antigo. A Internet tem inúmeros sites que podem ser visitados. O cinema, de uma forma ou de outra, tem proporcionado às massas o encontro com as coisas do passado. O teatro ainda se vale amiúde do fértil filão que a Antigüidade produziu em matéria de tragédias e comédias. Até em livros infanto-juvenis, histórias em quadrinhos, os temas clássicos continuam a ser explorados. Não há por que lamentar a distância ou a ausência.


OP - Como interessar novas gerações na leitura de um clássico como a Eneida?

Zélia - É preciso fazer com que as crianças e os jovens saibam que existiu, em tempos idos, uma cultura extremamente rica, que deixou sua herança. Tem havido muitas experiências pedagógicas, em diferentes locais, que têm por objetivo essa aproximação. Não é difícil interessar as novas gerações, fazendo-as aproximar-se dos clássicos.


OP - No poema, um dos momentos mais belos é quando Dido implora pelo amor de Enéias. O que você pode refletir sobre esta personagem e também sobre Lavínia?

Zélia - Dido e Lavínia são figuras completamente diferentes. Dido é uma rainha, uma mulher bela, forte, apaixonada, capaz de agir, de construir, de amar, de amaldiçoar, de matar-se; Lavínia é um nome, uma referência, um pretexto, uma menina prometida pelo pai, politicamente, primeiro ao rútulo Turno, depois a Enéias. Mal chega a ter a tessitura de uma personagem: vemo-la diante do altar, com os cabelos incendiados, num prenúncio de glória e guerra no canto VII, da Eneida; mais adiante encaminhando-se ao templo, em companhia da mãe, com os olhos no chão, aflita com as desgraças que provocará; ou chorando por ser a causa da guerra; ou desesperando-se com a morte da mãe. Não pode ser comparada a Dido.


OP - Poderíamos pensar, neste épico, no papel trágico ocupado pelas mulheres. Desde Creúsa, que morreu na última noite de Tróia, passando por Dido, Lavínia e a bélica virgem Camila.

Zélia - Virgílio constrói tipos femininos interessantes, entre os quais Lavínia seja, talvez, o mais pálido. Creúsa é a esposa troiana de Enéias que morre na guerra e que, depois de morta, aparece ao esposo para animá-lo e incentivá-lo; é uma espécie de matrona romana ideal, corajosa, desprendida, forte. Dido é, por excelência, a figura trágica dentro da épica, a mulher que sacrifica poder, riquezas e honra em nome do amor e que acaba por sacrificar-lhe a própria vida. Camila é a moça guerreira, furiosa em sua coragem quase masculina, mas ao mesmo tempo suficientemente feminina para cobiçar uma bela armadura de ouro e, imprudente, deixar-se matar em conseqüência de tal ambição. São figuras trágicas, sem dúvida, ainda que sob certos aspectos.


OP - O poema, transposto para a prosa, facilitaria o interesse dos leitores de agora? O assunto é vibrante, com todos os seus combates, com a intervenção dos deuses e deusas belicosos...

Zélia - Existem traduções da Eneida em prosa e em verso. A preferência pela forma cabe ao leitor.


OP - Enéias ir-se embora da Tróia desmantelada, relegar o amor de Dido, tudo em função de realizar o papel que lhe fora destinado neste mundo: fundar uma nova cidade e um novo império. O que este personagem pode nos dizer sobre a função do homem no mundo de hoje? Sobre cumprir desígnios?

Zélia - A principal virtude de Enéias, na primeira metade do poema, é a pietas, o sentimento que se identifica com o cumprimento do dever. Em nome do dever, da reconstrução da cidade destruída em outro lugar, ele se salva, foge de Tróia, comanda os troianos, enfrenta os perigos do mar, abandona a mulher que o ama e se atira às guerras. Na segunda metade, Enéias assume sua posição de líder e chefe e deixa de ser aquele que apenas se deixa conduzir por uma força superior. Há homens como ele no mundo de hoje? Certamente. Alguns poderiam ser nomeados; outros se perdem no anonimato das massas. Mas vivem em função de um dever.


OP - Sobre o motivo da nova guerra vivida por Enéias, o que podemos refletir sobre as razões para a beligerância? Continuamos a terçar armas por motivos vãos. Esta poderia ser uma ligação entre o passado e o presente?

Zélia - É complicado falar em motivos vãos. As pessoas são diferentes. O que é tolo para alguns é razão de vida para outros. A guerra no Lácio não foi apenas uma disputa vazia pela mão de Lavínia. Havia toda uma rede de valores em jogo. A personalidade de Turno, o noivo repudiado pelo sogro que lhe prometera a mão da filha, é complexa, compreensível... E, afinal, o que seria um motivo não tolo? Não fútil? Não válido? Uma questão filosófica? Ideológica? Religiosa? Qual foi a guerra, até hoje, que partiu de uma motivação nobre? E os homens continuam guerreando. Nos campos de batalha, nas ruas, nos bares, nas lojas, nas casas. Guerrear é próprio do homem. Discorda-se, inveja-se, perdem-se as estribeiras e, pronto! Está armada a guerra! Qualquer que seja. Sempre nociva e má.


OP - Qual a mensagem mais importante da Eneida, em sua opinião?

Zélia - A Eneida pode ser vista de ângulos diferentes. De um lado, é um monumento artístico, um poema composto para responder ao sentido da poesia, para provocar no contemplador o sentimento estético, a emoção decorrente da contemplação do Belo. De outro, é uma obra arquitetônica, construída com uma técnica e um esmero só compreendidos por iniciados. De outro, ainda, é um repositório de saberes, um arquivo de conhecimentos, muitos dos quais passam despercebidos a quem enfrenta o texto pela primeira vez. E pela segunda, pela terceira... E é, sem dúvida, o documento de uma época, a exaltação de uma cidade - Roma, a celebração de um povo - o romano, a comprovação de que é possível erigir um mundo tendo-se nas mãos uma tábua encerada e um estilo de metal. Construir um mundo fictício que retrata, em todos os aspectos, o mundo real e que tem condições de perdurar pelo tempo por força da magia da palavra. É difícil dizer qual a mensagem mais importante. Deixemos essa escolha por conta do leitor.
 

 

Publius Virgilius Maro

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03.08.2005