Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Edna Carlos de A. Holanda


 


Gabriela, cravo e canela

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil


 

Com a morte de Jorge Amado no dia 6 de agosto do corrente ano, a Literatura Brasileira ficou órfã. A obra do escritor baiano é o retrato do Brasil, do povo humilde, do negro, da mulher sensual e feliz.

Nascido a 10 de agosto de 1912 , na fazenda Auricídia, no arraial de Ferradas, distrito do município de Itabuna, Jorge Amado era o primogênito de João Amado de Faria e Eulália Leal Amado de Faria.

Jorge Amado esteve em Fortaleza em l995 para o lançamento d'A Descoberta da América pelos Turcos, no Centro de Convenções. Filas enormes de leitores se formaram para conseguir a dedicatória do autor. O público sentia que a saúde dele não era a mesma, apesar da grande lucidez e consciência do seu papel de escritor e da firmeza do seu "socialismo" utópico, acrescido de um otimismo com o futuro do Brasil, que deixou transparecer nas suas entrevistas. Jorge sempre acreditou no Brasil e no escritor brasileiro. A sua obra é o retrato de um país que se diz moderno, mas de uma diversidade cultural enorme. Faço coro às palavras de Fábio Lucas "Na visão crítica do Brasil, Jorge Amado trabalha com a contraposição histórica do branco perante o negro e oferece, como resposta positiva o imenso estuário da miscigenação". Nesse aspecto o escritor baiano sempre afirmou com humildade que apenas observava as pessoas e não tinha pretensão de explicar a sociedade.

Quando se fala na vasta obra do autor, logo se cria uma imagem de magnitude das personagens femininas, a problemática da mulher bonita, sensual, transgressora e irrequieta que se estabelece no imaginário do grande público leitor, principalmente, a partir de Gabriela, Cravo e Canela (1958). País do Carnaval (1931) é a estréia literária do escritor que caminhou para o romance de ideologia política com a publicação de Cacau (1933). A grande guinada da vida e da obra amadiana se dá com o abandono do partido comunista e do romance de engajamento político. A obra de Jorge Amado parte para um casamento com a arte, propriamente dita. Esse encontro é feito com base nas personagens femininas. A mulher passou a ser o epicentro da narrativa, a partir da criação de Gabriela, que posteriormente o levaria a criar, Dona Flor, Teresa Batista e Tieta.Dentro da problemática do romance moderno brasileiro, Gabriela toma assento no mundo ficcional ao lado de Iracema, Senhora, A Escrava Isaura, Capitu, Conceição e muitos outros mitos que a ficção brasileira criou ao longo dos tempos. Os aspectos líricos, o autor muito bem ensaiara em Mar Morto (1936) quando criou Lívia, mas é somente a partir de Gabriela que o dimensionamento do feminino se fixa no romance amadiano. É através dessa obra que os postulados políticos são postos de lado para dar lugar a uma estrutura narrativa mais elaborada.

Gabriela, no dizer do crítico Paulo Paes, não deixa de ser "lírica pastorela" , porém de uma lírica moderna desromantizada, principalmente no que diz respeito ao aspecto social, ao humor e à sátira. Comparar a protagonista a uma pastora é sem dúvida pela candidez que vislumbra do aparecimento da personagem com seu pueril deslumbramento féerico do circo (muito comum no mundo da cultura popular). Vejamos como aparece Gabriela pela primeira vez diante de Nacib:

" (...) vestida de trapos miseráveis, coberta de tamanha sujeiraque era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade, os cabelos desgrenhados, imundos de pó, os pés descalços" .

 

No decorrer da narrativa, a protagonista é comparada a uma flor, " rosa rubra com cheiro de cravo, perfume de Gabriela." Como se constata o convincente realismo, em circunstância diversa do lirismo pastorela, se evidenciará com o desenvolvimento da narrativa e servirá de contraste entre o lírico e o sensual que a "cabrita do sertão", é fruto do agreste e povo. Não só o amor de Nacib por Gabriela tenta transformá-la em uma dama da sociedade, sem resultados, mas acima de tudo a narrativa conta a história da liberdade da criatura humana como ser único e indecifrável.

Já dizia o crítico Tristão de Athayde "a história da evolução social de Ilhéus não está dissociada da história da evolução social de Gabriela". Enquanto Ilhéus segue na sua briga pelo poder através do confronto dos coronéis e políticos que representam o passado e o futuro, Gabriela segue livremente como moça sem família e filha do nada, que deseja apenas o status de amante, amada e cortejada sem que isso castre a sua sede de liberdade como única força sintetizadora do seu ideal de vida.

O tratamento dado ao amor em Gabriela, Cravo e Canela serve, sem dúvida, para justificar o humor e o erotismo presentes na obra. O progresso de Ilhéus significa o progresso do tratamento dado pelo homem à mulher e ao amor. No romance, os casos amorosos são tratados de modo especial. Começando por Ofenísia, apaixonada pelo imperador, passando pelo romance passional de Sinhazinha e Osmundo, evoluindo com a traição de Glória e o perdão. Sem dúvida, esse quadro de galeria de mulheres vistas em relação ao amor se completará com Malvina, filha de coronel que renega o destino de moça casadoira, desafiando os preconceitos e tornando-se a única personagem que elabora uma visão crítica dessa sociedade ilheense dos anos 20.

Voltando a Gabriela, a protagonista permanece como uma personagem telúrica de imenso vigor sensual na narrativa, que não se submete a ninguém nem se enquadra na velha ou na nova Ilhéus, apesar dos esforços de Nacib em querer transformá-la. A natureza de Gabriela é a mais autêntica de todas as personagens do romance e a tentativa de mudança torna-a uma moça tristonha e ensimesmada. O "status" social adquirido pelo casamento não tem o mesmo valor elaborado pela moral burguesa, o que leva o texto amadiano a um final feliz quando a personagem deixa de ser dama da sociedade e volta a ser simples símbolo sexual.


Edna Carlos de A. Holanda
Professora. da Universidade Estadual do Ceará

 

 

Jorge Amado

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30.08.2005