Edna
Menezes
Manoel de Barros: O poeta
universal de Mato Grosso do Sul
“Ao fazer vadiagem com letras posso ver o quando
é branco o silêncio do orvalho.”
O Movimento Modernista de 1922 operou uma
transformação profunda na poesia brasileira, mudando-lhe a
estrutura, alterando-lhe a temática e o sentido, imprimindo-lhe um
caráter nacionalista e, acima de tudo, conferindo-lhe uma nova
linguagem. Essa renovação jamais vista na literatura se fez notar em
Mato Grosso do Sul por meio dos poetas Lobivar Mattos e Manoel de
Barros.
Dessa forma, apesar de a palavra poética de Manoel de
Barros não aceitar enquadramentos, cronologicamente ele pertence ao
grupo dos poetas modernistas. Utilizando-se de uma linguagem
inovadora, o poeta sul-mato-grossense maneja a palavra de forma tal
que o leitor mediano não está habituado: o universo do chão. Este
universo é composto por coisas, caramujos, lesmas, formigas,
trastes, jacarés, cigarras e outros seres insignificantes aos olhos
do atarefado homem social.
O poeta Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT), em
1916. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que
chegou a ser considerado corumbaense. Atualmente mora em Campo
Grande (MS). Escreveu seu primeiro poema aos 19 anos, mas sua
revelação poética ocorreu aos 13 anos de idade quando ainda estudava
no Colégio São José dos Irmãos Maristas, no Rio de Janeiro, cidade
onde residiu até terminar seu curso de Direito, em 1949. Mais tarde
tornou-se fazendeiro e assumiu de vez o Pantanal.
Seu primeiro livro foi publicado no Rio de Janeiro,
há mais de sessenta anos, e se chamou Poemas concebidos sem pecado.
Foi feito artesanalmente por 20 amigos, numa tiragem de 20
exemplares e mais um, que ficou com ele.
Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao
público, em suas colunas nas revistas Veja e Isto é e no Jornal do
Brasil, a poesia de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo: Fausto
Wolff, Antônio Houaiss, entre eles. Os intelectuais iniciaram,
através de tanta recomendação, o conhecimento dos poemas que a
Editora Civilização Brasileira publicou, em quase a sua totalidade,
sob o título de Gramática expositiva do chão.
Hoje, o poeta é reconhecido nacional e
internacionalmente como um dos poetas mais originais do século e
mais importantes do Brasil. Tal originalidade foi observada por
Guimarães Rosa, escritor mineiro que fez a maior revolução na prosa
brasileira. Segundo ele, os textos de Manoel de Barros eram como a
um "doce de coco". Foi também comparado a São Francisco de Assis
pelo filólogo Antonio Houaiss, “na humildade diante das coisas.
(...) Sob a aparência surrealista, a poesia de Manoel de Barros é de
uma enorme racionalidade.”
Segundo o escritor João Antônio, a poesia de Manoel
vai além: “Tem a força de um estampido em surdina. Carrega a alegria
do choro”. Millôr Fernandes afirmou que a obra do poeta é “'única,
inaugural, apogeu do chão”. E Geraldo Carneiro afirma: “Viva Manoel
violer d'amores violador da última flor do Lácio inculta e bela.
Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha
instabilidade semântica”. Manoel, o tímido Nequinho, se diz
encabulado com os elogios que “agradam seu Coração”(Castello,
1999:109-128)
O poeta foi agraciado com o “Prêmio Orlando Dantas”
em 1960, conferido pela Academia Brasileira de Letras ao livro
Compêndio para uso dos pássaros. Em 1969 recebeu o Prêmio da
Fundação Cultural do Distrito Federal pela obra Gramática expositiva
do chão e, em 1997, o Livro sobre nada recebeu o Prêmio Nestlé, de
âmbito nacional. Em 1998, recebeu o Prêmio Cecília Meireles
(literatura/ poesia), concedido pelo Ministério da Cultura e ainda o
título de Doutor Honoris Causa, título máximo de uma Universidade,
concedido pela Universidade Católica Dom Bosco, em 2000.. Diz que o
anonimato foi "por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca
procurei ninguém, nem freqüentei rodas, nem mandei um bilhete.Uma
vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade no Ministério da
Educação e ele anotou o meu nome. Estou esperando até hoje."
O poeta costuma passar dois meses por ano no Rio de
Janeiro, ocasião em que vai ao cinema, revê amigos, lê e escreve
livros. Não perdeu o orgulho, mas a timidez parece cada vez mais
diluída.Ri de si mesmo e das glórias que não teve. "Aliás, não tenho
mais nada, dei tudo para os filhos. Não sei guiar carro, vivo de
mesada, sou um dependente", fala "Os rios começam a dormir pela
orla, vaga-lumes driblam a treva. Meu olho ganhou dejetos, vou
nascendo do meu vazio, só narro meus nascimentos...”(fragmentos de
jornais) [2]
Considerado hoje, como um dos mais importantes poetas
brasileiros em atividade. Sua poesia, extremamente pessoal, tem como
ambiente, ou pano de fundo – o Pantanal – não sua exuberância
ecológica e turística, mas sim seus pequenos seres. Suas obras,
cujos títulos são verdadeiros versos são: Poemas concebidos sem
pecado; Face imóvel, Poesias, Compêndio para uso de pássaros;
Gramática expositiva do chão; Matéria de poesia; Arranjos para
assobio; Livro de pré-coisas; O guardador de águas; Poesia quase
toda; Concerto a céu aberto pra solo de aves; O livro das ignorãças;
Livro sobre nada; Retrato do artista quando coisa; Ensaios
fotográficos, Exercício de ser criança, Fazedor de amanhecer.
No que se refere ao estilo, a poética de Manoel de
Barros distancia-se do padrão estético e estilístico da literatura
moderna e contemporânea de maneira que o universo é transfigurado
por intermédio de uma linguagem que se desvela em imagens
inusitadas. Nesse contexto, a idealização dos elementos banais
retirados do cotidiano mediante o uso da temática
telúrico-pantaneira, permite que o poeta reinvente o mundo por ele
contemplado através da palavra criadora. O estilo de Manoel de
Barros sustenta-se na combinação dos vocábulos de maneira inédita,
fato que acarreta numa linguagem inovadora com expressões insólitas
e distantes ao lugar comum. Essa linguagem, muitas vezes aproveitada
do dialeto pantaneiro, se junta a uma temática que ultrapassa o
regionalismo e vai a busca da palavra em sua essência profunda e
primitiva. Assim, a obra barreana caracteriza-se como um verdadeiro
artesanato da palavra, ou, às vezes, como um grande laboratório
vocabular em que o artista opera cada significado verbal e continua
“re-buscando” novas dimensões lingüísticas. Com efeito, o leitor
depara-se com uma realidade fragmentada e marcada pela utilização de
neologismos (invenção da linguagem). Conhecer a obra de Manoel de
Barros é se deixar levar pela magia de um mundo novo, um mundo no
qual as coisas possuem um sentido inusitado e deixam emanar a
essência vital do universo. Em um de seus poemas o bardo do pantanal
escreve: “No remexer do cisco adquire experiência de restolho”
(AA:35) [3].
Esse verso traz em si o ideal de rastreamento da
realidade do chão da poética barreana, a qual busca as insondáveis
nobrezas no ínfimo. Utilizando-se de uma linguagem inovadora, Manoel
de Barros maneja a palavra de forma tal que o leitor mediano não
está habituado: o universo do chão. Este universo é composto por
elementos basicamente telúricos, tais como caramujos, lesmas,
formigas, trastes, jacarés, pedras e outros seres insignificantes
aos olhos do atarefado homem social.
Com o intuito de encontrar o verbo criador, em sua
dimensão pura e livre das contaminações sociais, é que o poeta busca
redimensionar o universo das Letras através do uso “não acostumado”
das novas palavras. Por conseqüencia, procura e descobre no caos
moderno, a raiz da fala que está no recomeçar da palavra, que está
no primeiro anseio de dizer alguma coisa.
É possível vislumbrar essa busca da palavra “...antesmente
verbal” nas próprias palavras do poeta em entrevistas concedidas,
como por exemplo, em dezembro de 1997, na editoria Mais da Folha de
São Paulo, o poeta disse: “Noventa por cento do que escrevo é
invenção. Só dez por cento é mentira” e acrescenta, “Eu não tenho
inspiração. Não sei o que é isso e não espero por ela para escrever.
Escrevo religiosamente todo dia das 7 h às 12 h. Fecho-me no meu
escritório e não saio de lá para nada. Não atendo telefone, não ouço
música.” E sobre as palavras ele afirma que: “Pesquiso muitas
palavras que perderam seu uso, sofreram mutações morfológicas ou
morreram no tempo. Utilizo esse dicionário para que as pessoas
pensem que sou um sujeito culto”.
Nesse contexto, a professora Goiandira Camargo, em
sua leitura da obra barreana, afirma que Manoel de Barros expõe a
sua poética se escrevendo, se reescrevendo e se inscrevendo na busca
de uma linguagem que recupere a relação original do homem com a
natureza. Conjugando, assim, no mesmo espaço, o arcaico e as imagens
remotas, com a reflexão em torno da poesia, que é a condição
fundante da modernidade na literatura (Camargo, 1997:240).
Ao dizer que o poeta reflete em torno de sua poesia
alcança-se uma das características fundantes da poética de Manoel de
Barros: a metalinguagem, traço que assinala a modernidade de um
texto, é o desvelamento do mistério, colocando em cena o esforço do
emissor na sua luta com o código. Assim, o que o poeta quer é
subtrair a linguagem à força do seu uso cotidiano. Na poesia de
Manoel de Barros a palavra retorna à fonte original para recuperar a
linguagem perdida. No entanto, para chegar à linguagem perdida ou
primordial, o poeta necessita proceder a demolição ou fragmentação
do universo do qual faz parte. Nesse ato de subtração da linguagem
ao lugar comum o poeta diz que, também ele, “Será arrancado de
dentro dele pelas palavras a torquês” (rac, 17) ]
Neste verso, as palavras refletem sobre si mesmas e
sobre sua relação com o poeta, pois, ao dizer que as “palavras” vão
arrancar o “poeta de dentro dele”, o verso manifesta o poeta na lida
de tirar as palavras quotidianas de seu estado de inércia. E para
tal, por vezes se faz necessário ser “arrancado” de dentro de si
mesmo de forma violenta. Ao analisarmos a palavra “torquês” e o
verbo “arrancar”, que são noções que remetem à violência, podemos
perceber a veemência de ser extraído pelas palavras. Assim, o termo
“torquês” que é um instrumento de ferro à maneira de alicate, e o
verbo “arrancar”, ou seja, tirar ou fazer sair com força, remetem a
algo conseguido à força e com grande sacrifício. Portanto, no ato de
se arrancar algo com violência, o senso empírico nos leva à imagem
de destruição ou demolição, visto que, normalmente, a “torquês” é
usada para fragmentar materiais. Se, conforme o poeta, as palavras
têm o poder de “arrancar” alguém de dentro dele, com certeza, é
através da manipulação destas palavras que o poeta instaura a
fragmentação do universo, e inclinado sobre o seu labor ele nos diz
que: “Bom é corromper o silêncio das palavras”(rac,2)
O verso traz em si um diálogo reflexivo entre as
palavras, induzindo a fragmentação do universo pela fragmentação da
palavra, da linguagem, pois, “corromper” é induzir algo ou alguém a
realizar atos contrários, perverter, decompor. Com isto podemos
dizer que as palavras, após serem arrancadas do lugar comum, passam
a ser induzidas pelo poeta a realizar atos contrários, ou seja,
dizer o que normalmente não dizem. E assim, corrompidas pelo poeta,
as palavras conseguem “corromper o silêncio”, ou seja, elas rompem o
sigilo e, refletindo sobre si mesmas, trazem à tona a obstinação do
poeta diante do poema. Por conseguinte, no seu percurso de
fragmentação do universo, a palavra, segundo o poeta:
“...Tem que chegar enferma de suas dores, de seus limites, de suas
derrotas.”
Ele terá que envesgar seu idioma ao ponto de
Enxergar no olho de uma garça os perfumes do
Sol. (rac, 53)
As “dores” são imagens metonímicas da fragmentação,
logo, a palavra fragmenta-se, decompõe-se, quer romper-se para ir
além de seus limites, e assim além de seus limites chegar pura para
conseguir o retrato das imagens do poeta. Portanto, ele assevera
que: “As palavras têm que adoecer de mim para que tornem mais
saudáveis.” (rac, 17)
Neste verso, o poeta completa as imagens metonímicas
da fragmentação, pois a palavra que já trazia em si os sintomas de
alteração, que são “as dores”, agora necessita “adoecer”, e só
assim, impregnada do poeta, desdobrar-se em palavras que, refletindo
sobre si mesmas, buscam dizer o indizível. Seguindo o caminho até a
raiz da palavra na busca do absoluto o poeta diz: “...Palavra de um
artista tem que escorrer substantivo escuro dele”. (rac, 17)
Aqui, de forma consciente, o poeta continua na
elaboração do discurso auto-reflexivo, o qual traz o artista visto
como um filtro, e o filtro tem a função de desagregar, separar
elementos invisíveis, fragmentar. No poema, o poeta é o filtro que
desagrega e fragmenta o universo. Assim, em seu trajeto de
fragmentação do universo pela palavra, o poeta quer retroceder até
ao início, a uma época que ele diz que é:
“O antesmente verbal: a despalavra mesmo”. (rac, 53)
”Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
Para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.”
Portanto, o poeta pretende retornar ao antes do
verbo, ou seja, voltar ao estado anterior àquele descrito pelo verbo
cotidiano. E o retorno torna-se possível pelo rompimento da palavra
habitual, como indica o prefixo “des”, cujo sentido é negação.
Assim, “despalavra” é a palavra primitiva, o murmúrio, o gungunar
(som emitido pelos recém-nascidos), é o som puro, livre das
contaminações do vocabulário. Assim, o verso, ao sugerir seu
processo de retorno a um tempo anterior ao princípio, revela-se como
linguagem. E tal fato remete à idéia de que o objeto do poema é a
palavra, aqui, voltada sobre si mesma, da qual permanece inseparável
o processo de fragmentação do universo, pois para alcançar o
“antesmente verbal” o poeta vai causando a fragmentação da estrutura
da linguagem.
Visto que, a palavra em seu decurso de fragmentação
vai emergindo o ato poético, podemos dizer que através de um
processo metalingüístico a poética nos guia até à fragmentação total
no verso em que o poeta refere-se a si dizendo que: “...Tenho que
laspear verbo por verbo até alcançar o meu aspro.”( rac, 21)
Neste verso, somos conduzidos ao ápice do processo de
fragmentação, pois, se partirmos do preceito que “laspear” é um
verbo que significa “conquistar” e que o termo “aspro’ é apenas a
corruptela de áspero, conforme afirma o professor Marcelo Marinho,
em sua leitura de Guimarães Rosa, o qual também faz uso do termo “aspro”.
E ainda em entrevista, o próprio poeta Manoel de Barros esclareceu
ao referido professor que, quando diz “aspro”, é áspero que quer
dizer. Então, podemos deduzir que o poeta tem que conquistar com
violência, “verbo por verbo”, até atingir o rígido, o duro, e o
exato da linguagem (Marinho, 1999 –Tese).
Todavia, se considerarmos que “aspro”, pode ser a
corruptela do termo “asporo”, (do grego asporos), que quer dizer, em
botânica, “sem semente”, ou seja, sem a parte central do fruto ou da
flor. E se é na parte central que deveria estar a semente, parte
reprodutiva que permite a renovação da vida, então podemos dizer que
o termo “asporo” remete à parte central, ao núcleo. Ora, se é do
núcleo que se origina a vida, logo, em Manoel de Barros “aspro” é a
afirmação de que a fragmentação do universo deve visar ao núcleo das
coisas, para a partir daí atingir e reiniciar o movimento de
recriação.
A arte literária de Manoel de Barros é intrigante,
suas definições não são limitadoras nem únicas. A ambigüidade com
que o poeta reveste o signo instiga e provoca inúmeros modos e
tentativas de apreensão de sua essência. Conhecer a obra de Manoel
de Barros é, então, deixar-se levar pela magia de um mundo novo, um
mundo no qual as coisas possuem sentido e deixam emanar a essência
vital do universo. Em um de seus poemas Manoel de Barros escreve:
“No remexer do cisco adquire experiência de restolho” (AA, p. 35)
[4]. Esse verso traz em si o ideal de rastreamento da realidade do
chão da poética barreana, que se pode dizer que é buscar as
insondáveis nobrezas no ínfimo.
[1] As informações aqui, além de Castello, são
fragmentos de jornais anteriores a 1990.
[2] Idem – fragmentos de jornais.
[3] Obs: O livro Arranjos para Assobio é aqui designado AA.
[4] Obs.: O livro Arranjos para Assobio é aqui designado AA.
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