Carlos Augusto Viana
15.11.2006 - Caderno Cultura
MANOEL DE BARROS: a poética da
reinvenção
O motivo central dessa edição é uma investigação
acerca de determinados recursos estilísticos e
explorações semânticas que se comportam como elementos
recorrentes na escritura do poeta Manuel de Barros,
(natural de Corumbá, Mato Grosso - 1916) cuja projeção
nacional se deu a partir dos anos 1980, mas que, de há
muito, já vinha chamando a atenção dos críticos e dos
analistas acadêmicos, especialmente por conta de uma
dicção própria, concentrada, de modo mais intenso, na
captação das coisas simples do dia-a-dia, mesmo que
estas nem sempre comportem a atmosfera do que a tradição
acostumou-se a identificar como inerente ao material
poético.
Carlos Augusto
Viana Editor
O trabalho de Manoel de Barros, trata-se, portanto,
de uma poesia intrigante, desafiadora e, sobretudo,
inaugural. Seus livros já antecipam a estranheza poética
nos próprios títulos, tais como: ´Poemas concebidos sem
pecados´ (1937), ´Face imóvel´ (1942), ´Compêndio
para uso dos
pássaros´ (1961), ´Gramática explosiva do chão´ (1969),
´Arranjos para assobio´ (1983), ´livro de pré-coisas´
(1986), ´O guardador de águas´ (1989), ´O livro das
ignorãças´ (1993), ´Livro sobre o nada´; (1996),
´Retrato do artista quando coisa´ (1998), dentre outros.
Percorrermos, assim, um dos múltiplos caminhos desse
poeta lavrador que colhe do chão as palavras.
Se,
em João Cabral de Melo Neto, havemos a identificação da
palavra com a pedra, isto é, a idéia de uma aprendizagem
do poeta no sentido de tirar lições da pedra: com esta
podendo aprender a exatidão da forma, a impassibilidade,
a resistência à porosidade, sendo, portanto, impermeável
a sentimentalismo, sob a severidade das rimas toantes;
em Manoel de Barros, se sedimenta a concepção da palavra
como um organismo vivo: a palavra-vegetal, a
palavra-animal:
Para entrar em estado de
árvore é preciso partir de um torpor animal de
lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em
dois anos a inércia e o mato vão crescer em nossa
boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o
mato sair na voz.
ou, quando não, a
palavra-mineral - mas esta, ao contrário da
palavra-pedra em João Cabral, extática e impassível,
anuncia-se portadora de anima:
Adoecer de nós
a Natureza: - botar a aflição nas
pedras.
Como se vê, a palavra, enquanto
morada do poético, imprime-se como a marca fundamental
da criação literária de Manoel de Barros. É daí que
resulta a sua poesia, ou seja, do seu próprio
cotidiano com as palavras, estabelecendo entre elas
novas relações, produzindo efeitos novos, para, assim,
poder extrair a forma oculta que se toda forma abriga.
Tudo nele é preocupação com a linguagem, ´uma vontade de
recuperar a virgindade das palavras. A sua atitude de
casar uma palavra já gasta com outra também gasta parece
produzir a primeira vez de uma palavra´. (Barbosa, 2003,
p.17) Nesse sentido, o poeta busca não apenas simples
relações semânticas, pois, mais que isso, aspira às
ressonâncias, aos ritmos inefáveis, às inumeráveis
sensações:
Mas eram coisas desnobres como
intestinos de moscas que se mexiam por dentro de suas
palavras. Gostava de desnomear: para falar
barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra. Rede
era vasilha de dormir. Traços de letras que um dia
encontrou nas pedras de uma gruta, chamou: desenhos
de uma voz. Penso que fosse um escorço de
poeta.
A poética de Manoel de Barros se
enquadra na categoria daquelas coisas que, segundo Santo
Agostinho, existiam para ser desfrutadas, isto é, prazer
em si mesmo. Nesse sentido, o discurso é elaborado a
partir de um entrelaçamento de palavras para que
desemboquem sempre num jogo de pensamento, do qual se
depreende o inesperado ou a
estranheza:
Desinventar objetos. O pente,
por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até
que ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda
não tenham idioma.
Eis o universo de
Manoel de Barros: a invenção. Ou reinvenção. Há, em toda
a sua construção poética, o gosto pelo desvio ou o gozo
de palmilhar o não-sabido. Persegue, sobretudo, o nada,
pois é daí que espera extrair a essência do que
desconhece. Trata-se, a rigor, de uma aprendizagem às
avessas: desaprender para, assim, ter condições de que
apalpar o invisível; desse modo, ignorando as coisas
pode, enfim, reencontrá-las.
A primeira parte do
Livro das Ignorãças tem como título ´Uma didática da
invenção´, e a epígrafe bem sintetiza os poemas: ´As
coisas que não existem são mais bonitas´, isto é, a
poesia habita o gênesis, daí a reiteração dos exercícios
de metalinguagem, uma vez que a poesia quer conhecer a
si mesma, anseia deparar o que havia na imagem antes que
esta se revelasse. Memória e aprendizagem se
inter-relacionam. Em Manoel de Barros ocorre,
exatamente, aquela epifania drummoniana do ´esquecer
para lembrar´:
Então se a criança muda a
função de um verbo, ele delira. E pois. Em
poesia que é voz de poeta, que [ é voz de poeta, que
é a voz de fazer nascimentos - o verbo tem que
pegar delírio.
Nesse excerto, - como em
tantos outros - observa-se que as palavras gravitam as
altas zonas da linguagem, à semelhança dos pontos
privilegiados que a magia discerne e une misteriosamente
no mundo: a ´criança´, ao mudar ´a função de um /
verbo´, não delira, mas, sim, o próprio ´verbo´, tocado,
agora, pela transformação; por isso, o poético reside em
´fazer nascimentos´, em entregar as palavras ao
delírio.
Insetos que se arrastam, árvores que
voam, arbustos que cantam - tudo isso implica, na
poética de Manoel de Barros, o desdobramento de imagens
que comunicam a revelação. As palavras se movem no
poema, e o leitor nunca se cansa de se surpreender; a
poesia concretiza, pela força da imaginação, o
pensamento especulativo no próprio âmago do
espírito:
Para entender nós temos dois
caminhos: [o da sensibilidade que é o
entendimento do corpo; e o da inteligência que é o
entendimento do espírito. Eu escrevo com o
corpo. Poesia não é para compreender, [mas para
incorporar. Entender é parede; procure ser
árvore.
Nesse exercício de metalinguagem, o
poeta aborda, com extrema agudeza, a problemática do que
a poesia comunica, cuja natureza, como se vê, é,
essencialmente, inefável. O estado poético, portanto,
comporta a desintegração das coisas, a decomposição da
crosta que as envolve: ´Desaprender oito horas por dia
ensina os princípios´. Em outras palavras, o estado
poético consiste em mergulhar no avesso das coisas, em
descascar o que há muito já se encontra cristalizado
pela cultura. Ser poeta é inverter. Ser poeta é
transgredir:
No Tratado das Grandezas do
Ínfimo estava escrito: poesia é quando a tarde
está competente para dálias. É quando ao lado
de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz
sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a
noite e um sapo engole as auroras.
Das
imagens do ´dia (que) dorme antes´; da ´tarde (que) está
competente para / dálias´; do ´sapo (que) engole as
auroras´, brota o estado poético que o autor inscreve em
cada um de nós - os leitores. Todos nos tornamos, então,
cúmplices dessa música, do encantamento que suscita. Os
seres, as coisas, os sentimentos saem, subitamente, de
sua existência ordinária em direção ao indefinível - e o
que conhecemos muda, magicamente, de valor. Tudo se
converte em música. Não uma música qualquer, mas uma
outra que percorre todos os nossos sentidos e nos
solicita por inteiro:
Insetos cegam meu
sol. Há um azul em abuso de beleza. Lagarto
curimpãpã se agarrou no meu remo. Os bichos tremem na
popa. Aqui até a cobra eremisa, usa touca, urina na
fralda. Na frente do perigo bugio bebe
gemada. Periquitos conversam baixo.
Eis,
em síntese, o discurso literário de Manoel de Barros, de
que se evola um universo singularmente harmonioso, uma
vez que tal harmonia advém da própria poesia, que nos
torna ressonantes e consoantes com ela. Um universo que
permanece em nós, exatamente porque não nos é imposto,
mas tão-somente sugerido. É o sonho que emana de uma
percepção.
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