Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Edna Menezes


 

ASPECTOS ANTROPOMÓRFICOS EM CONVERSA DE BOIS NA VIAGEM PELO LABIRINTO DE SAGARANA

 

“...Só falava artes compridas, idéia de homem, coisas que boi nunca conversou.” (Rosa,1984, p. 319).

 
 

Considerações preliminares:

 

O presente trabalho é balizado pela leitura de Conversa de bois, oitavo conto do livro Sagarana, do escritor Guimarães Rosa, e é determinada pelo aspecto antropomórfico, ou seja, pelo aspecto de animais apresentando características humanas. O aspecto antropomórfico de Conversa de bois justifica-se, não pela designação denotativa dos léxicos, os quais trazem o antropomorfismo como designação para animais com forma e aparência de homens. Neste estudo, a afirmação da presença de antropomorfismo deve-se pela semelhança na realização dos pensamentos, nos sentimentos e na noção de valores dos bois, atributos que são a realização máxima do ser humano. Nesse contexto, para chegar ao conto em enfoque, engendra-se um percurso pelo labirinto da obra, partindo do conto Burrinho Pedrês, eclodindo nossas considerações em Conversa de bois e terminando o percurso em A hora e vez de Augusto Matraga.

 

A viagem pelo labirinto:

Em sua leitura de Grande Sertão: Veredas, Marcelo Marinho afirma que, em carta enviada a seu tradutor italiano, Guimarães Rosa estabelece um paralelo entre os elementos metafísicos encontrados em seu livro e suas crenças pessoais (Marinho, 1999, p. 114). Mediante tal observação, decide-se abrir veredas por Sagarana aludindo a um percurso mítico - transcendente, com a corroboração das palavras do próprio escritor, em carta a João Condé e a Edoardo Bizzarri. Rosa escreve a Bizzarri dizendo, “E o burrinho pedrês pretendeu ser o resumo de uma concepção do universo, uma parábola. Uma anedota! Alguém disse. Gregamente concordo”[1]. E ainda afirma que Sagarana é, “...uma série de Histórias adultas da Carochinha.” (Rosa, 1984, P. 6)

Por conseguinte, observa-se que a palavra polissêmica de Guimarães Rosa reflete uma inquietude por abrir caminhos, por tentar alcançar o fio no labirinto e desmistificar, através da palavra, a cultura e os paradigmas vigentes. Outrossim, as imagens da narrativa Roseana trespassam a consciência e parece que se transformam, de forma fantástica, na própria noção de tempo e espaço.

Segundo Mary L. Daniel, é significante o título do primeiro volume de contos de Guimarães Rosa – Sagarana – como exemplo da justaposição de elementos. Segundo ela Saga é um substantivo comum, de proveniência germânica, e rana, adjetivo Tupi, que significa “tosco, rude” e que pode ser também “parecido com, mal feito” (Daniel, 1968, p. 70). Porém, o termo Saga é também compreendido como sinônimo de “destino, sina”[2]. Se o termo assim for considerado, ter-se-á Sagarana como “destino rude, tosco”, ou ainda algo “parecido com destino”.

Ora, se a justaposição de elementos do título da obra pode remeter a destino, então, torna-se possível tecer considerações por este caminho. Portanto, conforme observa Suzi Sperber, em o burrinho pedrês a estória não servirá estritamente para um causo, ou causos de uma região (Sperber, 1972, p.32). Na verdade, o conto servirá de porta de entrada no percurso da busca da palavra em Sagarana. O que será um trabalho paciente, de espera, sem lutas contra as forças sobrenaturais, pois aos poucos o homem “homem humano” vai  se mostrando fraco e à mercê do destino, da “Saga”, tanto que ao chegar em Conversa de bois, não possui o dom da palavra, o qual é transposto para os bois. Quanto ao menino, este apenas emite o som que nomeia os bois.

Nessa leitura, Sperber observa que o trabalho de arrear o burrinho para a viagem é lento e nesse tempo o narrador discorre sobre a vida do personagem, talvez dando tempo para o leitor buscar o que está implícito nos elementos da narrativa (Sperber, 1972, p.36). Assim, é possível buscar estas imagens no percurso mitológico da história e agregá-las a Sagarana, de forma tal que o animal denominado Sete-de-Ouros seria a representação icônica do fio que abriu caminho para Teseu pelo labirinto do Minotauro. Na carta de Guimarães Rosa a João Condé o escritor diz que “nem o assunto é simples, nem sei bem o que contar. [...] se tenta alcançar-lhe os fio extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus tudo é mistério.” (Rosa, 1984, p.6). O burrinho estaria, então, no sertão mineiro, abrindo o caminho pelo labirinto da palavra para o narrador de Sagarana. Narrador que se enveredou pelo labirinto, juntamente com sete moças e sete rapazes virgens, para realizar sua travessia. Nesse ponto o número sete torna-se significativo, visto que o na carta a João Condé o escritor registra “O livro foi escrito [...] em sete meses, sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos...).” (Rosa, 1984, p.7). Observam-se  aqui as crenças particulares do escritor e o verbo criador intrinsecamente ligados ao mítico e ao místico. E conforme observações de Suzi Sperber:

Não só não nos sentimos reiteradamente confirmados quanto à idéia de ligação entre o ato criador e o impulso para o divino, como também notamos que em textos espirituais onde existem dogmas refletidos nos textos de Guimarães Rosa acaba sendo o culto da literatura, do ato de escrever. O ritual  é ao mesmo tempo os exercícios estilísticos e lingüísticos...(Sperber, 1972, p.33).

Nessa perspectiva, a viagem pelo labirinto torna-se uma viagem pelo labirinto do léxico, iniciada logo que o narrador-Teseu se apropria do novelo de ouro (Sete-de-Ouros), e que vai sendo desvendada até  desaguar na morada do Minotauro, isto é, o conto Conversa de bois, no qual os personagens, os bois, assemelham-se ao homem. Segundo Stegano Picchio, os animais em Sagarana são descritos quase realisticamente, mas com transfert afetivos antropomórficos (Picchio, 1997, p.609). A referida semelhança ou aspecto antropomórfico, parece acontecer pelo rompimento da tênue linha entre o homem e o animal, através da espiritualização e racionalização dos bois. Assim, em Conversa de bois o animal humaniza-se pelas ações, pensamentos e sentimentos.

Em sua leitura da obra roseana Martha Rodrigues assevera que, “O boi vira estória, que oculta outra estória, a interdita, estória de infidelidade ou de morte” (Rodrigues, 1998, p.511). Em Conversa de bois  o carro de boi realizava uma viagem de “infidelidade e morte”. Sobre a carga ia o defunto, pai do  menino Tiãozinho, o guia. Segundo o narrador, Tiãozinho “vinha triste, mas batia as alpercatinhas, porque a dois palmos da sua cabeça, avançavam os belfos babosos dos bois de guia.” (Rosa, p. 305).

Walnice Galvão observa que, em Grande Sertão: Veredas, os bois que os personagens encontram são indícios do que devem esperar das redondezas (Galvão, 1978, p.125). No entanto, em Conversa de bois, o boi não é apenas ícone da natureza, ele torn-se personagem ativo. E passa nesse momento, a formar com o menino Tiãozinho um só personagem, metade humano metade animal, o Minotauro. A parte homem do ser antropomórfico e hibrido, o menino “humano”, não possui o dom da palavra. A palavra surge na consciência dos bois. Ao menino, cabe apenas o desejo de vingança e a vergonha imposta pela atitude pecaminosa da mãe. 

 André Peyrone afirma que o Minotauro (também chamado de Astérion ou Astérios), cuja parte superior do corpo é de touro e a inferior de homem, no labirinto, esperava  que todos os anos (um grande ano, correspondente a nove anos) lhe fossem dados em pasto, as moças e os rapazes virgens (Peyrone, 1997, p.645). Aqui, é possível ousar dizer que mais uma vez a questão numerológica do mito do Minotauro entrelaça a obra roseana. Logo, se existia um ano que continha em si nove outros anos e Sagarana é um livro que contém em si nove outros livros, pode-se dizer que nessa obra há um livro para cada ano de espera do Minotauro. A espera que, segundo Peyrone, tornou-se suficientemente autônoma para simbolizar a conquista da própria consciência do ser.

Em Metamorfoses, Ovídio, relata que o Minotauro causa estranheza pela sua dupla forma, e descobre aos olhos de todos o adultério de sua mãe, e ainda na Arte de Amar, evoca esse “fruto dos amores de uma mãe criminosa” e não satisfeito dá a conhecer em verso o parentesco inato entre o boi e o homem “semibovemque virum semivirumque bovem” (homem metade touro, touro metade homem) (Ovídio,1983, VIII,155,156/ II, 23/  II,24).  Tem-se, portanto, em Conversa de bois, a mãe que profana o laço conjugal, permitindo com esse ato que haja a necessidade da fusão homem-animal para emergir a palavra e os questionamentos sobre o bem e o mal. Nesse contexto, Tiãozinho procura libertar-se do mal, da angústia causada pelo desejo de vingança, porém não possui a capacidade da palavra para verbalizá-los. Anda quase em transe e começa a balbuciar o nome dos animais e assim, como se em comunhão de pensamentos, desperta a consciência dos bois e eles passam a tecer considerações a respeito de suas vidas, do menino e sua desgraça, e a respeito dos homens “humanos”, representado pelo carreiro Soronho, que no conceito dos bois é a emanação do mal, a verdadeira  encarnação do demônio.

 Assim sendo, tem-se a palavra, manifestação do ser, gerando-se no bojo do inusitado, pois em Sagarana o narrador-Teseu desce ao fundo do labirinto, encontra o Minotauro,  mas não o mata, o que remete às afirmações de Peyrone. Segundo ele, o ser duo torna-se com o passar dos séculos e com advento do cristianismo, a imagem do próprio ser em travessia, do ser que busca a remissão de suas fraquezas, de seus múltiplos egoísmos (Peyrone, 1997, p.  647). E ainda, segundo Martha Rodrigues “o boi substitui a morte, a denúncia da infidelidade...” (Rodrigues, 1998, p. 551). Nesse percurso interpretativo, deduz-se que o narrador, consciente do profano, adentrou ao labirinto em busca de subsídios para elaborar sua “concepção-do-mundo” (Rosa, 1984, p.6).

 Assim, chega-se em A hora e vez de Augusto Matraga, sobre o qual dizemos ser  a síntese do percurso de Sagarana. Os oito bois de carro, poderiam ser compreendidos como os oito contos anteriores a essa história. Com efeito, A hora e vez de Augusto Matraga representaria o boi Rodapião, o nono boi que, assim como Matraga, não se deixou cangar e caiu no abismo. Esse parece ser o percurso de Sagarana, o narrador-Teseu desceu ao labirinto e encontrou o profano em Conversa de bois, assim também matraga desceu a pirambeira[3] para sofrer e sentir o que é o fogo do inferno, e a partir da dor buscar a remissão pela fé e religiosidade. Segundo Sperber, em A hora e a vez de Augusto Matraga há uma iniciação mística: morte e ressurreição simplesmente carnal, de existência passa a existência espiritual. E acrescenta que o mistério é a própria existência e ela só é na medida em que ultrapassa o profano (Sperber, 1972, p.37). É assim que, no vaticínio do padre, Matraga deixa para trás o pecado e os vícios, “... você, em toda sua vida, não tem feito senão pecados graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para o pecador poder ter a idéia do que o fogo do inferno é!” (Rosa,1984, p, 631).

 

Considerações finais:

 

Tem-se, portanto, em  Sagarana, o que parece ser um percurso labiríntico, em busca da palavra como realização do Ser. O narrador-Teseu “esteve” no labirinto, em Conversa de bois, mas eleva-se em A hora e vez de Augusto Matraga em um processo de passagem – passagem do profundo labirinto do eu humano, para a existência espiritual, plena de redenção. Assim, juntamente com Nhô Augusto Esteves, ressurge como uma alegoria mística, montado em um jumento e é remido pelas mãos de Joãozinho Bem-Bem. 

 

Referências Bibliográficas:        

 

Edição utilizada:

ROSA, João Guimarães. Sagarana.  31ª  ed.,  Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, 386 p.

  

Bibliografia de suporte:

 

DANIEL, Mary Lou. João Guimarães: Travessia Literária. Prefacio de Wilson Martins, Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, XXXIII –186 p.

 

GALVÃO, Walnice, Nogueira. As formas do falso: Um estudo sobre a ambigüidade no Grande Sertão:Veredas. São Paulo, Perspectiva, 1972, 13 p.

 

MACHADO, Ana Maria. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz de seus personagens. Rio de Janeiro, Imago, 1976, 200 p. (São Paulo, Martins Fontes, 1991, 43 p.).

 

MARINHO, Marcelo. Grande Sertão: Veredas: Leituras  críticas e abordagem estilística. Tese de Doutorado.Sorbone, França, Université de la Sorbone Nouvelle, 1999, 561 p.

 

OVÍDIO. Públio Ovídio Nasão. As Metamorfoses. (Título original Metamorphoseon). Trad. Editora Tecnoprint S.A., São Paulo, 1983, 297  p.

 

 

PEYRONE, André. O minotauro na literatura. In. Dicionário de Mitos Literários. Sob a direção do Profº Pierre Brunel; trad. Carlos Sussekind..[et. al.]; prefacio a edição brasileira, Nicolau Sevcenko, Rio de Janeiro, José Olympio, 1997.

 

RODRIGUES, Martha Lages. Boi. In Veredas de Rosa, Seminário Internacional Guimarães Rosa, Belo Horizonte, PUC-Minas, CESPUC,  2000.

 

 

SPERBER, Suzi Franke. Signo e sentimento: estudo de algumas leituras espirituais de João Guimarães Rosa. São Paulo, Editora Ática, 1982.

 

 STEGAGNO PICCHIO, Luciana.  História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1997, 744 p.


 

[1] VER GUIMARÃES ROSA, João. Correspondências com seu Tradutor Italiano (Edoardo Bizzarri)., São Paulo, Instituto Cultural ìtalo-Brasileiro, 1972.

[2] O termo Saga é utilizado como sinônimo de “destino,” “sina”  “fado”,  tanto no sul de Minas Gerais como em algumas regiões de Mato Grosso do Sul.

[3] O termo pirambeira é usado em algumas regiões de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul  como sinônimo de abismo, precipício.

 

 

Guimarães Rosa

Leia Guimarães Rosa

 

 

 

 

 

20.10.2005