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Guimarães Rosa 

Titian, Three Ages

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poesia:


Ensaio, crítica, resenha & comentário: 


Fortuna crítica: 


Alguma notícia do autor:

Material gentilmente remetido por: Renato Chaves

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ruth, by Francesco Hayez

 

Albrecht Dürer, Mãos

 

 

 

 

 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

 

 

 

 

 

Guimarães Rosa


 

Guimarães Rosa e o Magma


Dircurso proferido por Guimarães Rosa em agradecimento ao premio concedido pela Academia Brasileira de Letras, ao livro de poesia Magma.

 

O poeta não cita: canta.Não se traça programas,porque a sua estrada não tem marcos nem destino.Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto . Não se aliena, como um lunático , das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe—neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática , discreta e subterrânea.

Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influências e a quem poderá ou não influenciar.

E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado , sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito , ainda que mais nada tenha por fazer.

A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera : relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela , cega-se para ela e passa adiante. Se a surdes de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita—obra já lida---obra repudiada: trabalhar em comeias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.

Tudo isto aqui vem tão somente para exaltar a importância que reconheço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se , libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma , com quem talvez eu já não esteja muito de acordo ,mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder --- sem demasiadas ilusões, mas reverente--- levantar a voz neste recinto, como um menino que depõe o seu brinquedo na superfície translúcida de uma água , para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade.(...)


(Revista da academia brasileira de letras, anais de 1937, ano 29,vol 53, p.261 a 263)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tintoretto, Criação dos animais

 

 

 

 

 

Guimarães Rosa


 

Poemas


Pág-72
Riquesa

Veio ao meu quarto um besouro
de asas verdes e ouro,
e fez do meu quarto uma joalharia...

Distância sentimental

Mesmo ao sonhar contigo,
só consigo que me ames noutro sonho
dentro do meu sonho primitivo...

Pudor estóico

Acuado entre brasas
um escorpião volve o dardo
e faz o hara-kiri...

Encorajmento

Meu corre a ti com velas enfunadas...
Podes dar-lhe um porto, sem nenhum receio:
ele não traz âncora...


Pág-73
Medo da felicidade

Estremecemos juntos...
Que Potêcia má será a soberana
desse vento frio que passou?...

Mal-entendido

Na boda de um camarão com uma lagosta,
levantaram um brinde ao transatlântico
que passou por cima para os cumprimentar...


Pág-74
Definição

O cigarro de fumaça impalpável e brasa colorida,
que se afunda a si mesmo num cinzeiro,
será um poeta?...

Epigrama

Ó lua cheia,
ocular de um longo telescópio branco
que devassa o pais dos amores platônicos...

Madrigal gravado em laca

Quando a borboleta coroou a flor amarela
os lírios , em ângulo reto com seus caules,
fizeram uma profunda saudação...

Para os almanaques

No meu relógio, de uma para outra hora,
quando o ponteiro menor sai a levar lembranças ,
passa-lhe a frente o grande, transportando intrigas...

Falta de armas

Dois caracóis chocaram, de leve, as suas casas,
e mexeram tentáculos , um dia inteiro,
pedindo-se mil desculpas...


Pág-75
Bérgson

Uma águia continua,
ao sol do dia,
os vôos do mocho de Minerva...

Sérgio Lifar

No palco em penumbra,
como os violinos e as cigarras,
alguém canta com o corpo...


pág-76
Musica de Shubert

Sombras de amores
em bailado longínquo , num palco sem fundo
como um fundo de espelho...

Taumaturgo

Muitos bichos reunidos?: um jardin de Hagenbeck.
Ou, quem sabe, talvez , a Arca de Noé...
Mas um gênio os dirige?: um livro de Kipling...


Pág-78
Oração

O louva-deus, ereto, num caule de junquilho,
reza , de mãos postas, com punhais cruzados,
como um bandido calabrês...

Justificação

Ponham o Amazonas ao pé do Himalaia ,
e ali nascerá, depressa,
uma raça de homens pequeninos...

Paisagem

A cascavel chocalha na moita, anunciando
grátis,
um destino certo...


João Guimarães Rosa (Magma- editora Nova Fronteira)
 

 

 

Rubens_Peter_Paul_Head_and_right_hand_of_a_woman

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Rodrigo Garcia Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904)

 

 

 

 

 

Guimarães Rosa


 

A Iara


Pág-16

Bem abaixo das colinas de ondas verdes,
onde o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos mares e dos rios,
irreais e lentas , como espectros de vidro,
para os palácios de madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo, transparente e verde,
num recanto abissal, como uma taça cheia,
entre bosques e sargaços, espumosos,
e rígidos jardins geométricos de coral...


Por entre os delfins , sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas , soltas, como grandes algas,
carregando os jovens afogados:
Ondinas das praias , flexosas,
Nixes da água furtacor do Elba ,
Havefrus do Sund e Russalkas do Don ...
Loreley traz no esmalte doce dos olhos
duas gotas do Reno...
E danaides Laboriosas se desviam dos cardumes
De Nereidas,
que imergem, ondulando as caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...


Pág-18

Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da terra vermelha,
carne de peixe da água gorda do rio...

Iara de olhos verdes de muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de tucunaré...
que veio, dormindo , Purus abaixo,
filha do filho do rei dos peixes
como uma índia branca cuchinauá...

Lá bem pra trás da boca aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana , tapuia , morena,
Tão orgulhosa,
Que não quer ser desprezada pelas outras...


E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas lentas


Pág-19.

em nhheengatu :
-- Iquê , ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua quitó...”

Nem mais se esforça em seduzir
o canoeiro mura ou o seringueiro,
meio vestida com gaze das águas ,
na renda trançada dos igarapés...
E eu tenho de chorar:
-- “Enfeitiça-me ó Iara,
que eu vim aqui pra me deixar vencer...”

Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias desabrocham soltas,
posso beijá-la ,
nua ,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma vitória-régia ,
tomando o banho longo
de perfume e luar...


João Guimarães Rosa (Magma-Editora Nova Fronteira)
 

 

 

Franz Xavier Winterhalter, retrato de Roza Potocka

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Secchin

 

 

 

20.10.2005