Edson Guedes de Morais
Vinte anos outra vez e a virgindade
do mundo
O sol a prumo, tininte, as sombras por
debaixo das coisas, as sombras das árvores à roda dos troncos,
geometricamente, sobre os dormidos da grande sesta. O céu ardendo,
campanulado de prata, sobre a casa, o lago, a vastidão perdida nos
confins vislumbrados, sobre o caminho, o que chamavam de caminho,
passagem de ventos, remoinho, sem vegetação, terra crestada, pedra,
pó, quase esquecida lembrança de gente passando, chegando. Silêncio.
Imobilidade.
Uns nas redes rotas, outros nos
batentes das portas ou sobre troncos e pedras sombreados,
tosquenejando, baba escorrendo, cheiro forte de sumim, de tabaco, de
urina velha pelos cantos. Velhas paredes, velho teto esburacado,
velha mesa, um copo, um livro, uma faca.
De repente, um grito. Sobressalto,
cunha no sono, no entorpecimento de depois do sumim. Confundidos,
sem entenderem, ainda, aquele grito, a própria surpresa de haver um
grito, um silêncio maior, depois, expectante, e o burburinho, ruído
de passos, novos gritos: “No Caminho!” Alguns deixando a casa, suas
ruínas, as sombras das árvores, subindo ao mirante, confirmando o
grito: “No Caminho!”.
Impulsionados por uma força nova ou
muito antiga – fermento ou lia de muitas noites de esperança ou
desesperação, sempre um deles subindo e no alto do mirante o olhar
no longe – tentam correr. Alguns se sentaram, sem forças para mais,
no desconforto, torpor depois dos sonhos, lembranças perdidas,
lugares, nomes, rostos – nevoeiro, imagens morrendo – papel
amarelado, tinta esmaecida, o livro, a revista, onde as mulheres
viam um rosto sem rugas, cabelos escuros, palavras como família,
filhos, juventude, amor, coisas antigas, quase esquecidas, como os
nomes dos que se perderam pelas montanhas, dos que se afogaram por
um excesso de sumim, como os nomes esquecidos daqueles que, loucos
ou conscientes, saíram em dias nebulentos, contornaram a casa para o
lado do abismo e se precipitaram. Muitos ainda conseguiram, no
entanto, levantar e caminhar, chegar ao pátio, e puderam ver,
aproximando-se, o inacreditável, o visitante cercado pelos outros,
caminhando depressa, à frente dos outros, como se fosse ele a guiar
aqueles que, em trepolia, tentavam alcançá-lo, tocá-lo, abrindo
espaço maior junto da casa, quando os que saíam levantavam os braços
em susto e cumprimento, dando as boas vindas, indicando a sombra, o
banco de pedra.
E o visitante sentou-se, tirou o
chapéu, aliviou os pés, despiu o casaco, aceitou a água, perguntou
quem eram, se disse perdido, desencaminhado naqueles ermos, vindo de
outras terras. E eles ouviram aquela voz clara, precisa – mais que
as palavras, o som, a música; e olhavam aquela pele lisa, rosada,
aqueles cabelos negros esvoaçantes; bastavam-se naquela
contemplação: o movimento das mãos, os gestos leves, desprendidos, o
nada esforço das pernas a se alarem por sobre o banco, aquele fruir
de energia, aquela radiação que lhes acendia no peito tumescido de
sombras o esquecido calor, afogando cansaços e desesperanças. E,
quando ele riu, todos riram com ele: suas bocas se abriram,
gengivais, em risos, coisa nova ali, que eles gozaram sem poupança,
em suspensão, como crianças excitadas no jardim zoológico, como
crentes em adoração aos pés do altar, como velhos que se lembravam
da alegria.
O suor a lhe descer do rosto, ao longo
do pescoço – inútil a sombra e os repetidos goles de água fresca – a
roupa aderente ao corpo: ele sentiu-se cansado; aquelas criaturas o
incomodavam, aqueles olhos chamejantes o perturbavam. Ele esticou as
pernas, recostou-se no banco e fechou os olhos por um momento.
Estaria sonhando? Que língua falava aquela gente? Nenhuma resposta
lhe deram às suas perguntas: sorriam, pareciam dementes, mas,
estranhamente, sentia-se aturdido com a força que parecia vir
daqueles olhos e amedrontado por continuar a senti-la mesmo com os
olhos fechados. Afastando o calafrio, olhou à volta, sorriu um
sorriso largo, ostensivo – e todas as bocas se abriram à sua volta,
sorrindo. Levantou-se e caminhou, saindo da sombra. Sentiu que o
conduziam para o lago, por entre as árvores.
No lago, algumas mulheres entraram na
água e se sentaram no raso, entre as pedras; outros molharam os pés,
as mãos e o rosto e se contentaram; os demais fizeram um círculo, o
visitante era o centro, e eles o olhavam e ele se sentiu envolto,
flutuante, desligado, leve e, ao mesmo tempo, presa, coisa ancorada,
peixe na rede; maior, então, o desprazimento de ver aquela gente
como zumbis de olhos acesos, em desvairança, ossos muxibentos sob os
farrapos, peitos e sexos descobertos.
A superfície do lago uma chapa de aço,
um grande espelho ao declive do sol; os que estavam na água pareciam
a gosto e ele, o visitante, quis, também, aquele refrigério. “Sim,
eu quero”, disse alto, como se o tivessem convidado. Despiu a
camisa, tirou os calções, a malha e, desnudo também de qualquer
cuidado, caminhou para dentro do lago, sob a luz intensa que caía
oblíqua, reverberava e se espargia, envolvendo seu corpo,
convergindo para ele e, simultaneamente, como se irradiada dele, de
seu corpo branco-dourado-nacarado, mirificamente, segundo o viam
aqueles olhos ansiosos enquanto ele corria para o meio do lago.
Elasticidade, ritmo solto, espelho
quebrado se refazendo, calicromia, esferas douradas, opalescentes,
os respingos brilhantes salpicados, rolando na pele vibrante.
Abraço, grito partido, instante suspenso. Ele pulou, mergulhou;
completou-se o grito. Mas logo, de novo, o corpo surgindo, recriando
o mundo.
Alguns caíram apagados, dormidos para
sonhos mais leves; outros correram, revigorados, para o meio do
lago, contaminados, possuídos, soprados de novo, transfigurados,
pois se viam, reviam-se, naquele corpo jovem, tinham vinte anos,
outra vez, e a virgindade do mundo. Não podiam deixar, novamente,
lhes escapasse a Primavera: correram para ela, lutaram por ela,
prenderam-na nos braços, aos gritos, desesperados, garras fincadas,
espadanando sangue e a areia do fundo, amontoado de corpos
derrengados, mas, naquele momento, possuídos da febre, como no
tresvario de mil frutos de sumim.
Depois, um corpo rijo amolentado –
postura de ave após o tiro, braços abertos, inúteis asas sobre a
água, sopro desfeito – mancha crescendo rubra, ocaso do sol por
sobre o lago.
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