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Jornal do Conto

 

 

Efer Cilas dos Santos Júnior




A Paixão

 

 

Em um dia ensolarado de primavera, no Centro do Rio de Janeiro, o Professor Augustus saltou do trem do Metrô, na Estação da Carioca, para começar, como ele mesmo cansava de contar a seus conhecidos, a sua "peregrinação".

Este périplo que o notável professor de Literatura seguia era um roteiro, elaborado por ele mesmo, com pontos de parada nos Sebos do Centro. Ele o seguia sempre quando queria encontrar algum livro que desejava muito possuir.

Sua paixão eram os livros, que colecionava e lia desde criança; de Hergé a Hegel, tudo conhecia, sobre tudo discorria. Dizia que os livros preenchiam o vazio de sua vida solitária, pois nunca encontrara uma mulher que o amasse verdadeiramente, que o compreendesse, que se encaixasse em seu mundo. Amores platônicos teve vários: de garçonetes das Cafeteries que freqüentava até alunas às quais olhava apaixonadamente; a nenhuma, porém, teve coragem de se declarar.

Augustus andou em direção ao Edifício Avenida Central, onde iria iniciar sua jornada pela Livraria Brasileira; quem sabe acharia as "Tradiciones Peruanas", de Dom Ricardo Palma, que sonhava em encontrar na edição maravilhosa da Aguilar?

Chegando ao sebo, excitado e nervoso, foi diretamente procurar o seu ansiado livro... Não o achou ali, porém o que viu deixou-o boquiaberto... Uma moça linda, alta, corpo bem desenhado, pele como um tecido mais fino, cabelos e olhos negros de uma inteligência visível, como os que encantava Neruda (também nestes estava refletida a eternidade), procurava um livro, com gestos ágeis e delicados.

O nosso insigne mestre ficou deslumbrado com a visão e pensou que esta seria talvez a mulher de sua vida, pois também parecia amar garimpar horas em sebos e tinha um "quê" inexplicável que o atraía muito.

O platônico docente saiu do sebo com a imagem daquela "musa" da ocasião na cabeça e seguiu pela Rio Branco, sonhador, até o número 185, onde, no subsolo, tentaria encontrar o livro de Palma na Berinjela, sebo recente no Centro, porém muito organizado, e com preciosidades a serem descobertas; parou para uma rápida busca na Leonardo da Vinci, havia tantos livros bons lá, e por que não este? Enquanto buscava nas intermináveis estantes da Da Vinci, pensava em como era bela a mulher que havia visto, e em como seria bom se ele fosse desinibido o suficiente para tentar aproximar-se dela e dizer algo gentil, ou quem sabe recitar-lhe um poema de Verlaine, de Lamartine, ou Baudelaire, ou "sonho dos sonhos", recitar a primeira parte do dueto de amor de Violetta e Armando do primeiro ato de La Traviata e ela soubesse completá-lo... Sim, pensava, deveria sabê-lo !

Saiu da livraria, mais sonhador e excitado do que nunca, e ao chegar ao sebo foi tomado de espanto... Lá estava ela, a sua amada, a mulher a qual gostaria tanto de se declarar e não tinha coragem... Ficou imediatamente triste por não ter o "savoir faire" tão evidente em Casanova, sem saber, ao menos, como entabular conversa. Pena que seu cabelo não estava amarrado com um laço, do contrário seria até bem fácil: era só recitar o "Laço de Fita" de Castro Alves...

Augustus, enlevado, procurava seu livro enquanto olhava, vez em quando, só de soslaio, para a deslubrante moça... Não havia ali o livro, mas ele já estava bastante feliz por ter podido vê-la de novo, por ter respirado o mesmo ar que ela. Não seria isso um sinal dos céus? A moça tinha todos os predicados que ele buscava em seus sonhos mais ousados. Parecia gostar de livros, era tão bonita, tão elegante... Era tudo que ele desejava para abdicar da solidão. Já se via como Sinatra, sensual, sedutor lhe dizendo "You´re sensational" ... Ela, porém, como em um passe de mágica, desapareceu subitamente, deixando no ar uma sensação de vazio, e o sebo, também de repente, perdeu seu encanto.

Meio sem jeito , saiu da livraria e se dirigiu à Rua do Carmo, onde tentaria encontrar seu tesouro na Livraria São José, baluarte dos sebos do Rio de Janeiro. Passeava pensativo pela México, Nilo Peçanha... Meditava em como seria bom se soubesse como abordá-la... Se não fosse aquela maldita timidez! Atravessou o Menezes Côrtes, monumento dos edifícios-garagem, e continuou a imaginar-se com ela, talvez em uma tarde ensolarada, em uma Quinta nas serras de Portugal, bem ao gosto de Eça... Riu-se do desatino, enquanto caminhava pela Primeiro de Março, olhando a Igreja de São José, o Paço Imperial e a "sacada do Fico". Em frente à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, cantarolou um trecho da Missa de Nossa Senhora do Carmo, de autoria do Padre José Maurício, lembrando-se da crônica de Machado de Assis em que este critica duramente Taunay por comparar nosso José Maurício a Haydn e Mozart, e entrou, já bem mais alegre, no Beco dos Barbeiros.

"Deus", pensou ele, "quantos acontecimentos importantes da história brasileira tiveram lugar nestes belos locais: o casamento de Pedro I, o dia em que o povo brasileiro se reuniu e gritou nas janelas do Paço a sua vontade destemidamente - fato tão raro em nossa história". Era uma terapia passear por esses lugares, sua alma se renovava. Pensou novamente em como seria bom se não passeasse por estes lugares sozinho, falando com seus botões, já tão enjoados de ouvi-lo. Se ele não fosse tão reprimido estaria agora, talvez, quem sabe, passeando com ela, discutindo Platão e Kant, Agostinho e Justino...

Ao entrar na Livraria São José, teve uma nova surpresa, que fez seu coração descompassar: lá estava a desejada moça, dessa vez com um livro nas mãos, que folheava avidamente.

O professor estava completamente batido, precisava falar algo, sabia que não podia perder mais esta chance. Aproximou-se lentamente dela fingindo procurar algo, enquanto pensava em como iniciar um diálogo. Mas, ao chegar perto recuou com horror estampado em seus olhos... Estava pálido, sem condições de respirar, sôfrego, arfante... A mulher se assustou em vê-lo assim e veio falar com ele, deixando o livro que estava prestes a comprar em cima de uma pilha de livros:

- O senhor está bem ? - perguntou, preocupada.
- É... É o calor... o calor desta cidade... um inferno, madame! - disse Augustus, esquivando-se pelas estantes que lhe já eram tão familiares e, num gesto ágil, questão de segundos, pegou o livro que a mulher deixara na pilha de livros e dirigiu-se para o caixa.
- Senhor - disse a moça, desconfiada, - Eu estava folheando este livro e ia comprá-lo, deixei-o apenas porque o vi ofegante e me preocupei.
- Senhora, procuro estas Tradiciones há anos e não o vi em sua mão, estava ali naquela pilha e, como tal não tem dono, ou melhor... agora tem - disse o Mestre virando o rosto e pagando o livro que apertou contra si.
 

A mulher, boquiaberta e confusa, ficou parada enquanto acompanhava com o olhar - com seus olhos antes considerados tão belos e negros - a figura curvada e austera do professor, que saiu rapidamente da livraria a passos largos, seguros... e felizes.