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Jornal do Conto

 

 

Efer Cilas dos Santos Júnior


 


Algo por que viver


 

Chovia sem parar. Lucius, fascinado, não conseguia desgrudar seu rosto da janela. O espetáculo das "comportas do céu" abertas sempre o hipnotizou.

Não adiantava sua mãe o chamar, ele nunca respondia. Ficava ali observando a água cair e pensando como era agradável o vê-lo. Tinha tão poucas alegrias em sua vida de menino, massacrado pela solidão que ele próprio se impunha.

O que fazer se as pessoas lhe eram tão desagradáveis? Talvez isso o atraísse tanto em olhar a chuva da janela: ver as pessoas correndo e sendo encharcadas por um poder superior que ele gostaria tanto de ter. Não é à toa que seu episódio favorito de "X-Files" era o do menino que comandava os raios...

A chuva foi diminuindo e assim o interesse dele pela janela; baixou sua persiana e deixou seu quarto bem escuro, com somente uma lâmpada de abajur acesa, apesar de o relógio marcar treze horas.

Lucius também odiava a luz do sol e pela fraca claridade dava para visualizar as paredes de seu quarto, recobertas de cartazes de cinema : Christopher Lee e Bela Lugosi dividiam o espaço com Mojica Marins e Lon Chaney. Livros e filmes de mistério e terror ocupavam a maior parte de sua estante: desde Carmilla e Drácula até revistas com as mais recentes pesquisas sobre a vida da Condessa Vermelha.

Na escola, quase não tinha amigos. Apenas um para ser exato: Roderick.

Este era o único que conseguia até hoje resistir a seu mau humor constante. Tinham, a bem da verdade, interesses em comum, pois compartilhava seu gosto por histórias de vampiros e livros de terror, passando a tarde, após a escola, juntos, assistindo filmes, ou lendo histórias arrepiantes.

Lucius começou a se interessar por livros de horror desde os dez anos, quando leu a série do Pequeno Vampiro, sonhando em ter um amigo como o Rüdiger. Coincidentemente, estas histórias preenchiam o vazio da ausência de seu pai, morto quando ele tinha nove anos.

Adorava a certeza da imortalidade colocada nestes livros, a zombaria com a morte e a idéia de poder e sedução que estes seres tinham.

Estava absorto em qual filme ele e Roderick veriam hoje, quando a campainha soou.

Ouviu os passos indecisos de sua mãe até a porta e então em direção ao seu quarto:

- Lucius, é o seu amigo maluco.

E foi-se para a cozinha.

Há anos que ele, agora com 16, não tinha diálogo com sua mãe, que se reduzia para ele, a uma governanta como a do Viajante do Tempo, de Wells.

No quarto entrou um menino moreno, alto, com andar desajeitado e olhos profundos e tristes, vestido de preto e segurando um pacote, que parecia ser um livro.

-Oi, Lucius", disse com uma voz alegre, se é possível chamar alegre o grasnar de um corvo.

-Que é isso aí ?, perguntou o outro afoito.

-Encontrei este livro em um sebo, adorei as ilustrações e o prefácio me intrigou.

-"Como assim?"

-Achei interessante não ser em inglês como o resto do livro, mas em alemão- disse Roderick.

-Vai ver foi editado na Alemanha.

-Não sou tão estúpido!" "Já olhei que foi editado na Inglaterra, no início do século XX- disse visivelmente alterado o já impaciente Roderick.

Ao desembrulharem o pacote, os olhos ávidos de Lucius viram um exemplar antiqüíssimo do "Dracula" de Bram Stoker, com ilustrações magníficas e todo impresso em letras vermelhas.
Lucius olhou o prefácio e começou a lê-lo...

-Roderick, você me emprestaria isto para tentar traduzir?

-Claro, pode ficar. Que filmes veremos?

-Estou meio gripado por causa da chuva, podemos deixar isso para amanhã?

-Bem, se é assim acho que estou sobrando, pois não há lugar aqui para quatro!

-Quatro?

-Eu, você, seu mau humor e sua curiosidade. Adeus.

Roderick saiu a passos largos do quarto, enquanto Lucius fechava a porta à chave.

Ele achou que este prefácio, na verdade, era algum tipo de prece, ou, quem sabe, um ritual?

Pegou seu Langscheidt e pôs mãos à obra de traduzir as sete páginas do prefácio.

O texto se iniciava com uma prece pela alma de um inocente que acabava de ser morto pelas mãos do autor. Era esse o poema que Lucius vira.

Logo depois, narrava a história de como o livro de Stoker e as velhas lendas européias de vampiros encheram a vida vida vazia do escritor e agora lhe deram um sentido... Ele havia montado uma Casa Editora especializada em livros de horror e indicava nas cinco páginas restantes a técnica que elaborara de impressão.
O livro era impresso com sangue humano !!!!!

Ele atraía uma pessoa até sua gráfica e a assassinava com uma adaga, coletando seu sangue em vasilhames que criara (havia ilustrações...), usando um método inovador da utilização do sangue para imprimir o livro.

Explicava como conservar o sangue até que pudesse ser aproveitado em sua macabra tarefa.

Terminava exaltando a qualidade de seu trabalho e a originalidade de sua idéia. Lucius estava fascinado.

Finalmente sua vida vazia também tinha um ideal!!!
Cheio de alegria, como nunca antes havia sentido, pegou o telefone e ligou para seu amigo.

-Oi? Roderick? Sou eu, o Lucius. Desculpa, cara, mas a chuva me deixou num daqueles dias de amargura. Não quis lhe chatear.

-Ok.- repondeu a voz rouca de seu colega- E o livro, gostou? É um presente, cara!

O coração (se é que o tinha...) de Lucius disparou.

-Adorei; pena que o texto seja em um dialeto alemão intraduzível!

-Sabia que você ia gostar! É a sua cara!

-Bem, Roderick, que tal, pela milésima vez, Luxúria de Vampiros" amanhã?

-Estarei aí! Abraço!

Perfeito!- pensou Lucius ao desligar o telefone--Vou dedicar minha vida a continuar a obra deste gênio!

Guardou cuidadosamente o precioso e macabro presente em seu esconderijo secreto, apesar de saber que sua mãe jamais seria capaz de ler o livro no original, quanto mais o prefácio.

Abriu cautelosamente a porta de seu quarto e foi em busca de sua sua mãe-governanta para quem disse sorrindo:

-Sabe, mãe, quero ser editor e não vampiro!

-Você está bem?-replicou ela - É a primeira frase normal e sensata que ouço de sua boca há anos; minhas preces silenciosas estão sendo ouvidas.

Voltou para a cozinha com um leve esboço de um sorriso, ou melhor, a esperança de um. Lucius voltou para seu quarto e começou a pesquisar o que precisava para montar uma gráfica como a do livro.

Juntar dinheiro por anos a fio e aturar o ser humano seriam necessários para atingir seu ideal, mas estava decidido: ele o faria!
Estaria pronto quando chegasse a hora e, até lá, tinha seus livros, seus vídeos e sua janela.