Eliane Accioly Fonseca
A clínica, a arte, a vida e a criação
de conceitos
Após milênios de cisões entre
diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte,
sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós
ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando
instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias
paralisantes, sem eliminar as contradições.
Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em
outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se
preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando
o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos
recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto
que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi
afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que
brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras
palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso
cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou
sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações
que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é
para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta,
temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que
agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por
outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando
isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que
possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero
dizer, experimentado, vivido.
Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos
para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me
sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me
apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à
minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim
como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não
dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as
garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive
teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me
serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam.
Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou
encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com
ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão
se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a
posição da estrelas são criadas a cada instante. Ou não. Não há
garantias.
Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível,
usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas
até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras
injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de
minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é
criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que
não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para
satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha
de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)
A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre
artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que
exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia
Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído,
sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em
estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de
transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os
paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os
espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e
o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias,
porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a
censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes
horríveis para nós mesmos.
Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o
livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima
mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias
sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação
e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele,
mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um
ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais -
como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.
Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço
transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e
objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada
estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural,
pelo siples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das
perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da
simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar
o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos
feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim
o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas
referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos
conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos
vivos. Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a
regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos
e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o
surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo,
nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós:
a micro-política de Deleuze e Guattari.
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