Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Augusto Estellita Lins


 

Esta não é minha mulher

 

“Tem certeza?”

- Claro, delegado. Acha que não sou capaz de reconhecer minha própria senhora? Esta não é ela.

“Podia estar enganado. Afinal de contas não se distinguem bem as feições, o nariz está partido, os seios foram arrancados, uma perna quebrada e faltam os dois braços.”

- Não é ela, tenho certeza.

“Bem, neste caso só me resta registrar o seu depoimento. O marido Antenor Caldas de etc. etc. Sousa declarou não identificar sua companheira.”

O detetive Aldálio Dantas, que acompanhava o caso, sorriu hermeticamente quando leu o relatório. “Adelaide é um nome bonito”, pensou. “Mamãe tinha uma prima chamada Rosa. Quando passava uns dias hospedada lá em casa, eu tinha de ceder minha cama. Era uma cama nova, mais baixa que as de meus irmãos. Eu tinha amor por aquela cama. Quando dona Rosa ia embora, deixava na cama um cheiro estranho. Mudavam os lençóis, é claro, punham o colchão para tomar sol, porém o cheiro renitente permanecia algum tempo, até que eu o esquecesse. Era preciso que eu a perdoasse por ter usado minha cama, para sumir o cheiro dela.”

- Em que pensa, doutor?

“Numa coisa curiosa. Alguém pode confundir-se com as feições, a voz, os gestos. Pode dormir com duas gêmeas sem saber qual delas é quem. Mas o cheiro é inconfundível.”

Mandou que furtassem do apartamento do rapaz um conjunto de lingerie da esposa. Se fosse preto ou vermelho, melhor ainda. E se possível, na cesta de roupa suja, usado. Esses sabões em pó tiram o cheiro. Mas não havia preto nem vermelho, só limpo. Usado, com cheiro do corpo dela, encontraram um todo de rendinhas, numa absurda cor verde-alface com debrum violeta. Vestiram-no nela. O sutiã ficou murcho nos seios mutilados. A calcinha sobrou um pouco nas nádegas sem coxas.

“Agora olhe bem. Examine bem. Veja se não é sua mulher.”

Tinha certeza de que era a amante de Cartollet, o escultor encontrado morto com seis tiros e capado à faca. Uma vingança passional ou, como dizia a anedota, o mal cortado pela raiz.

- Não é minha mulher, tenho certeza.

“Cheire.”

O rapaz olhou aturdido para o delegado, enquanto algo em suas pupilas negras confessava que havia compreendido confusamente que a coisa chegava a uma conclusão final. Fingiu desentendido:

- Cheirar?

Dantas o agarrou pelos cabelos longos e o empurrou pela nuca até quase encostar a boca na calcinha cor-de-alface.

“Cheire.”

Obrigou-o a encostar a boca na lingerie.

“Cheire mais. Agora diga se não é sua mulher.”

Então, em vez de falar ou balbuciar, o rapaz soltou um longo sofrido grito animal mais longo que seus fios de cabelo, um guincho de lobo ferido, logo seguido de soluços convulsos.

Confessou tudo.

Ele havia matado e trucidado o artista. Depois tinha mutilado a estátua de mármore, os seios, as pernas, o nariz, os braços, com o mesmo martelo que havia esculpido sua mulher. Se pudesse a teria matado também, mas ela estava fugida. Estava e está, no fim do mundo deve ter encontrado outro refúgio, agora anônimo.
 

 

 

 

 

13.07.2005