Emanuel Medeiros Vieira
Longa vida, Capitão
“Longa vida, capitão”.
Eu me despedia do capitão. Ele era
alto e volumoso, as mãos grossas e peludas, calça de brim, camiseta
preta, alparcatas nos pés, boné surrado, capote bem antigo. Por
detrás da barba grande, revelava-se um rosto bastante desgastado.
Naquela época ele tinha cinqüenta anos que pareciam mais.
Era uma tarde cinzenta e de chuva
fina, caía um vento sul que parecia não acabar nunca, o velho vento
sul que parecia matéria constitutiva da ilha. Observei um rasgão no
capote do capitão, na altura do cotovelo. As embarcações não ficavam
sossegadas no trapiche do cais; agitados, os homens tentavam amarrar
cordas para segurarem os barcos no pobre porto. As ondas balançavam
intensamente barcos e respingavam as capas dos homens. Numa
embarcação, vi sacos de feijão, arroz, farinha e garrafões de
aguardente.
Eu era um rapaz de quinze anos. Para
onde ia desta vez o capitão?
“Este homem não fica parado, tem um
bicho carpinteiro dentro dele”, comentava o dono da quitanda. A ilha
era pequena, quase sempre ventosa e todos se conheciam.
“Ele deve ser cigano”, observava outro
ilhéu.
O capitão coçava a barba grande já
bastante branca, os cabelos caindo sobre os olhos, olhos verdes que
davam um semblante infantil para o seu rosto. Era um rosto cheio de
sulcos e crateras; nariz bastante amassado, como o de um boxeador
aposentado.
Ficava olhando para o cais; era um
suplício para os homens amarrarem e desamarrarem as embarcações com
aquele tempo ruim.
Muitas vezes — quando ele estava na
ilha — eu via o capitão contemplando o mar no trapiche, com as mãos
no bolso. À noitinha, mamãe sempre me pedia para ir na venda,
comprar pão, café, banha, óleo para o lampião, amendoim, mel. Eu
observava o capitão tomando generosas talagadas de cana, agora com
uma capa preta, enorme, rasgada.
Sentado em sacos de amendoim,
moreno-pardo, pele fortemente queimada pelo sol, ele me parecia
muito mais volumoso do que realmente era, contando histórias de
outros mares e ilhas. Em casa, escutando o vento, deitado num
beliche, ouvindo os gemidos de um bambuzal, eu pensava naqueles
mares longínquos de que o capitão falava, e ficava fascinado e
arrepiado, eu também queria partir.
Ele morava sozinho atrás de um
depósito de frutas, perto do cais.
“Seu avó foi pirata”, dizia o
boticário.
“O pai, um aventureiro”.
“A mãe, louca e dançarina”.
Só agora lembro que ele era manco da
perna esquerda.
Diziam que ele recebera um tiro na ilha de Agres, quando era bem
moço. No final de tarde, quase à noitinha os homens se reuniam na
venda.
Contavam histórias daqueles dias, eles
que iam para o mar de madrugada, do peixe que escasseava. Os
pescadores pareciam sempre mais velhos do que realmente eram.
Diziam que o capitão tentara fazer
muitas guerras, revoluções, ao norte, ao sul, a leste, a oeste e
perdera todas. Queria ganhar uma. Definitiva, mas eu era muito jovem
e não entendia quase nada.
“VIDA LONGA, CAPITÃO”
Quantas vezes pronunciei esta frase!
Quantas vezes não pronunciei, mas pensava lá dentro, andando pelo
trapiche, tapando o rosto com um cobertor, escutando o vento sul, os
ruídos da casa de madeira tão velha, mamãe rezando, mamãe lavando,
mamãe enxu¬gando, mamãe colocando achas de lenhas no fogão. Um dia o
Capitão perguntou se eu queria ir com ele.
“Não. Mamãe não tem mais ninguém. Nem
meu pai, nem outro filho, Só quando ela morrer”.
Mas ela era uma mulher duradoura e eu
não queria que ela morresse. Nem ela, nem o capitão.
Mas eu também queria ser marinheiro.
Não imaginava o capitão como general
cheio de medalhas e uniformes lustrados e galões na lapela. Para
mim, ele seria sempre capitão muito grande e alto, um capitão muito
amigo.
“O capitão nunca mais foi o mesmo
depois que a mulher o deixou” garantia a mulher do dono da venda.
“Ele é um louco”, esbravejava o
coletor de impostos; é verdade que o coletor Luvanar não gostava
muito dele.
“ADEUS, MARISCHIN”.
“ADEUS, MEU CAPITÃO”.
Quando me despedi do Capitão no
trapiche, ele parecia mais cansado e velho do que era, a barba mais
branca, tudo nele estava mais pesado e doído. Mancava mais. O
Capitão tinha ficado um velho.
Tirou do bolso do envelhecido capote
uma pistola muito antiga, parecia uma daquelas pistolas que eu via
em velhas revistas tira¬das de baús corsários. Ou uma pistola
roubada de um museu. Sim, uma arma muito antiga, usada pelos nossos
ancestrais ilhéus.
Ele se foi numa madrugada de julho,
chuvosa e fria, estava muito barrigudo.
Hoje, tanto tempo depois, eu chego a
pensar — quem sabe apenas fraturas da memória — que o Capitão
mantinha um olhar sempre distante, ausente, uma contemplação que
quase ninguém notava.
Trocara o boné por uma boina, a capa
era a mesma, preta, rasgada e muito larga. Camiseta preta, deixara a
alparcata “Roda” que não o protegia do frio, usava mesmo um sapato,
o cabo da pistola aparecia no bolso, a barba mais branca ainda e ele
já ofegava para falar. Só faltava o tapa-olho para assemelhar-se
ainda mais a um pirata. Anos depois, eu fiquei com remorsos pela
vontade de rir que sentira naquele momento, além da emoção. Eu, na
época não sabia explicar, mas o capitão com aquela vestimenta
heróica, quixotesca, me parecia um tanto ridículo, um tanto “fora de
moda”. Ou não? Ou ele seria uma “coisa” mais atemporal. E havia algo
de sublime ou imponderável no seu ar, generoso e sofrido. Eu o amava
muito.
“Adeus, Marischin”.
“Adeus, meu Capitão”.
Nunca fiquei sabendo de sua última
guerra ou revolução. Só conseguiu fazer seu exército particular. Não
ganhou qualquer batalha.
Mas de vez em quando ele me escrevia,
letra muito grande mas não muito legível, feita naqueles papéis de
carta que vendem em papelarias. Não dizia o local, data, nada.
Perguntava quando eu partiria. As cartas vinham naqueles barcos
movidos a querosene e o seu Humberto, agente dos Correios, me
entregava. Trechos de uma carta:
“Marischin, agora estou indo para o
norte. Há um tesouro escondido. Quero achá-lo. Contratarei homens
bravos para a empreitada. Creio que desta vez vai dar certo”.
Ninguém acreditaria. Mas eu acreditava.
Contratara homens fortes, adquirira
armas de um traficante chinês e dizia que, em remotas regiões, ainda
haviam piratas com tapa-olho e tatuagens, que bebiam muito e
blasfemavam. Ele vivia as histórias? Inventava?
O Capitão dava sonoras gargalhadas e o
dono da venda dizia, “há crentes para tudo.” Um dia, à noitinha na
venda, apareceu um forasteiro vindo do sul. Dizia ter visto um homem
que dissera ter nascido na nossa ilha. Pela sua descrição, era o
Capitão. Estava muito bêbado, perto de um grande porto nacional,
contemplando bandeiras de várias partes do mundo — trêmulo e
delirante — abor¬dando marinheiros de muitas terras, convidando-os
para grandes aventuras e revoluções redentoras.
“É um louco velho”, diziam muitos.
“É um bêbado”.
O Capitão enlouquecera no final?
“Agarrava transeuntes, ofe¬recendo recompensas em ouro para quem o
acompanhasse”, relatava o forasteiro. “Muitos, amedrontados,
desvencilhavam-se do homem com safanões e ele soluçava, resmungava.”
O forasteiro come um amendoim e diz: “Dizia frases desconexas, mas
uma eu ouvi: “Agora nada mais tem importância. A aventura acabou no
mundo”.
Num dos seus bilhetes cheios de
garranchos ele me dizia: “Marischin, estou formando um grande
exército. Um exército vitorioso”.
Eu colecionava suas cartas de terras
longínquas (pelo menos, ele dizia que era) e ficava lendo sentado no
trapiche já estragado e cheio de limo do nosso envelhecido cais. Já
não chegavam navios. Nas embarcações humildes chegavam apenas
mantimentos. (Lembro-me, tantos anos depois, daquelas noites cheias
de presságios quando ele me contava histórias de outros mares,
peixes enormes que pareciam bichos de outras eras, dragões, sereias,
ilhotas mágicas, corsários de uma perna só, beberrões, blasfemos,
canhões enferrujados, seres misteriosos e homens que viviam mais de
cem anos, vidas encantadas).
Hoje, velho, muito velho e ainda aqui
nesta pequena ilha de onde nunca saí, esperando navios que não
chegam, cartas que não vêm mais, cogito que o Capitão não suportou
viver num mundo que não suportava aventuras (como o próprio
forasteiro escutara de sua boca), um mundo cínico em relação ao
sagrado e ao mito, um mundo cinzento, desencantado.
O forasteiro foi embora mas, tempos
depois, chegou uma carta de um homem que contratava marinheiros num
grande porto, funcionário de uma empresa de fretes marítimos que
selecionava marinheiros para uma longa viagem para a Ásia. Parece
que este homem descobrira o Capitão. Alguém tentava, ofegante, subir
umas escadas de madeira de um prédio velho, numa das partes mais
infectas de um grande porto brasileiro. O Capitão buscava uma saleta
(cheiro de sa¬litre, sujeira e urina) de uma firma que fazia fretes
marítimos. Ele não conseguiu chegar ao cume da escada. Tropeçou,
cai, ainda ofe¬gante. Era um homem febril. Apalparam o bolso de uma
surrada calça de brim. Dentro, um cartão que nunca foi enviado e
incompleto. “Marischin, que não quis ser marinheiro. Estou longe.
Muito longe. Reuni homens. Desta vez vou ganhar a guerra,
finalmente. Cansei de perder. Não quero mais explicar porque perdi.
Quero ganhar.”.
Eu não o via há muitos anos, desde a
nossa despedida. Naquela época ele já estava gasto e velho. Hoje, eu
também estou muito velho, olho todos os dias o mar, de manhã à
noite, nesta cadeira, uma bengala que me apoia, sentindo depois de
tantos anos um arrepio de emoção, ele não precisava inventar nada,
eu o amava muito, gostaria dele de qualquer maneira, ele poderia até
ter perdido todas as guerras ou não ter feito nenhuma. Ele era o
Capitão.
“Ele faleceu às seis horas da tarde e
como não tinha nenhum documento resolvemos enterra-lo nesta cidade”,
conforme relato do homem que enviara a carta (a cidade era a do
grande porto).
“LONGA VIDA, CAPITÃO”
Quantas vezes eu disse isso. De onde
vinha essa alcunha, designação, epíteto de Capitão? Ninguém sabia.
Desde cedo, acho que desde sempre, o chamaram assim. De certo, fora
sempre Capitão.
Ele me contava histórias de terras
distantes, vidas aventurosas, piratas da perna de pau, arcas com
moedas de todas as partes.
Nunca soube a causa de sua morte. Não
tem importância. Em alguma época, de um navio qualquer, quem sabe,
apareça um outro Capitão.
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