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            Enéas Athanázio 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O banco do meu compadre 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Desde cedo meu 
            compadre revelou vocação para os bares. Funcionário diligente de uma 
            empresa, era no bar que consumia as horas vagas e as noites, até a 
            madrugada. Tinha admirável resistência à 
            água-que-passarinho-não-bebe, jamais perdia a lucidez e muito menos 
            a compostura. Depois de uma noitada, o único sinal que dava 
            consistia em certa dificuldade no articular as palavras, coisa que, 
            naquelas alturas, não tinha qualquer importância porque ninguém mais 
            articulava um pensamento, quanto mais uma palavra. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ele não escondia 
            esse pendor, assumindo às claras, e até concordava que vivia mais no 
            bar que em casa. Gostava de repetir chavões do gênero, como “meu 
            lar”, “só o camelo não bebe”, “água enferruja” e outros tantos. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Sua jornada 
            pelos bares de São Simão vinha de longe e já acumulava respeitável 
            quilometragem. Começara, como todo mundo, pelo Bar do Arno, na 
            esquina da praça, onde se consumia um hediondo cafezinho requentado, 
            pinga a granel e as últimas fofocas. Depois passou para o Bar do 
            Tutu, no outro lado da praça, e daí para os mais variados bares, 
            botecos e tascas espalhados pela cidade, no centro e na periferia. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Quando se 
            apresentou na empresa, seu ponto se fixara no Bar do João-Sem-Braço, 
            nas proximidades da rodoviária, cujo proprietário dizia ter perdido 
            o braço direito em conseqüências de torturas sofridas no regime 
            autoritário. Essa versão, no entanto, estava longe de pacígrossa 
            pancadaria na disputa de uma certa Xaxim, mulher de vida airada, 
            para dizer o menos. Isso, porém, se transmitia para aos cochichos, 
            de boca em boca. Mesmo sem um braço, João não de matar com a unha. 
            Parecia que a força do braço perdido se transferira ao outro, com o 
            qual carregava copos cheios até a borda sem o menor tremor e 
            desferia porradas de empacotar algum pinguço inconveniente. No 
            geral, porém, reinava a paz nos domínios do João-Sem-Braço. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A especialidade 
            da cada era o limãozinho, bebida branquicenta, servida em cálice 
            bojundo, e que meu compadre consumia em série. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Todas as 
            madrugadas, na hora do acerto de contas, a confusão se repetia. 
            Acertar aqueles números, com os vapores na cabeça, consistia em 
            penoso desafio, ainda que o João fosse escrupuloso com os clientes. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Depois de pensar 
            um pouco, meu compadre encontrou a solução e tratou de colocá-la em 
            prática, livrando-se daquele tormento das altas madrugadas. Sempre 
            que recebia o pagamento, apanhava o bolo de notas e o repassava 
            intato ao bodegueiro, como adiantamento da consumação mensal. 
            João-Sem-Braço se transformou no banco de meu compadre, 
            administrando seu capital com absoluta correção, lançando nas 
            colunas do “deve” e “haver” os cálices ingeridos e os depósitos 
            realizados. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Livre na chatice 
            da contas, meu compadre respirou aliviado, certo de que nenhum outro 
            banco resgatava compromissos com tal liquidez, no mais estrito 
            sentido da palavra. 
  
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