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            Enéas Athanázio 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A pintada do Taimbé 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A “Primavera”, 
            maior fazenda daquelas bandas, principiava no Portão do Alto, rente 
            à estrada geral, e descambava na vereda do rio Canoas, num perau que 
            até fazia medo e compunha uma divisa natural impenetrável. Seus 
            terrenos variavam dos campos mais limpos e bonitos, cercando a sede, 
            até carrascais sombrios e inçados, passando por grandes capões de 
            mato e extensa mataria inceira onde despontava um pinhal de três 
            toras, conservado como reserva. Para cruzá-la de divisa a divisa, 
            saia lhêfo: requeria horas a trote de burro. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Seu dono, 
            oriundo das campinas do Serro Pelado, tinha comprado a propriedade 
            fazia um eito de tempo. Descendente de uns fumeiros apatacados, 
            arribou com as guaiacas estufadas de contos de réis e, depois de 
            comprada a antiga fazenda, foi abraçando as lindeiras e estendendo 
            as cercas de seu domínio. Ficou um fazendão de encher o olho, com 
            recursos que faziam dela um mundo à parte, quase independente. O 
            nome foi dado pela dona, escolhido porque chegaram no final de 
            setembro e pelo seu gosto especial pela primavera, florzinha lilás e 
            delicada que enchia canteiros no jardim da casa, onde ela gastava 
            boas horas cuidando das plantas, com os cabelos cor-de-milho 
            brilhando ao sol. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Mas o fazendeiro 
            Elísio Leite Preto, de apelido Nhô Pré, era boa pessoa. Tratava bem 
            a peonada e os agregados, tinha uma récua de compadres e afilhados, 
            sinal de benquerença e consideração. Pegava parelho no serviço e seu 
            capricho aparecia em tudo, desde a conserva das cercas, casas, 
            galpões e arreames até a qualidade das criações. Não perdia as 
            festas da vizinhança e nelas não refugava um leilão, quando a prenda 
            o interessava, e até dançava alguma moda bem marcada com a patroa 
            loira. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Numa tarde 
            abafada, com os coriscos pinicando no céu, lá longe, e prometendo 
            trovoada, Nhõ Pré ensaiava o gado no rodeio. Enquanto o capataz, 
            Aristides, chamava a criação num grito curto e que reboava nas 
            canhadas — Ôu, ôu, ôu... — o fazendeiro contava as cabeças que 
            chegavam, com os lábios se movendo num murmúrio, e sem o menor erro. 
            Ao mesmo tempo em que espalhava o sal grosso nos cochos, cavados a 
            enxó em troncos inteiriços, caminhava no meio do gado sem qualquer 
            receio, observando numa olhada ligeira algum ferimento ou bicheira 
            que carecesse de curativo. Também não lhe escapava a ausência de 
            alguma cabeça daquela invernada — boi, vaca, novilha, terneiro 
            desmamado. Terminado o rodeio, resumia o número das presentes, o 
            pelo das ausentes e as providências a tomar. Nessa lida Nhô Pré tudo 
            sabia. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Concluído o 
            serviço, montou no seu cavalo do custeio e contemplou com satisfação 
            o gadaredo gordo entretido em lamber o sal. Os coriscos, cada vez 
            mais seguidos, riscavam o horizonte, e quando ele pôs reparo notou 
            alguma coisa estranha para os fundos da Fazenda. Colocou a mão 
            morena em aba sobre os olhos e não tardou a identificar o problema. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            — Hai de haver 
            carniça pros lados do Taimbé — falou ao capataz. — Tem corvo voando 
            baixo por lá, uns par deles. Carece verificá isso, amanhã bem cedo. 
            — Fez uma pausa e convidou: a montaria. — E agora toca pra casa que 
            a trevoada vem chegando... 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Deu de rédeas e 
            saiu no galopito no rumo da casa azul cujos vidros reluziam no alto 
            da coxilha. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            No outro dia, o 
            capataz levantou com as galinhas. Nem o sol tivera tempo de secar o 
            orvalho e já varejava o Taimbé, de olhar aceso, procurando a causa 
            de atração daqueles corvos. Não tardou a encontrar vestígios 
            catinguentos de um boizinho garraio, meio comido, cujos restos se 
            espalhavam num descampado e ossos roídos que branqueavam no capim 
            verde. Verificando melhor, descobriu carniças mais antigas, de 
            outras criações, e não teve dúvida: uma pintada das grandes estava 
            atacando o gado naquele ermo e com o melhor resultado. Havia de 
            estar pelichando de gorda, a caipora! 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Marcou bem o 
            lugar e voltou à casa, contando ao patrão a descoberta. Naquela 
            mesma tarde, recolutado por um próprio, chegava o Arigó, negro velho 
            que morava de agregado na boca do mato. Antigo turmeiro da estrada 
            de ferro, nos tempos de dantes, quando ela foi construída, tinha 
            matado muita onça feroz, algumas delas enfrentadas só no facão ou no 
            cacete. Os homens confabularam na cozinha-de-chão, enquanto o mate 
            corria a roda, e traçaram o plano. Nhõ Pré só recebia na sala ou na 
            área as visitas de cerimônia, gente grada; os peleprés do vizindário 
            ficavam por ali mesmo, quentando fogo, com as crias da casa 
            troteando por perto. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Sem alarme, no 
            seu jeitão seco, o Arigó andou depois pelo Taimbé. Deu por lá uma 
            bispada, cortou dois pés de cambuim, novos e retos, enforquilhados 
            nas pontas, e fincou no chão firme, coisa de uns quatro metros um do 
            outro. Carregou da sede três boas tábuas de pinho e colocou nas 
            forquilhas, atando-as à moda de cocho. Estava armado o jirau seguro 
            e forte, erguido a uns quinze palmos do chão. E tudo no maior 
            silêncio, sem marteladas e batidas. Nada que espantasse a onça, 
            bicho por demais ressabiado. Em seguida se afastou para casa, 
            recomendando que ninguém perturbasse o descanso do jirau. A pintada 
            tinha que se acostumar com ele no seu ponto de sesteio. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Passados uns 
            quantos dias, Nhô Pré avisou o agregado que haveria carneação. A rês 
            foi desmanchada no piquete, na sombra dos umbus, e as sobras 
            entregues ao Arigó num balaio de palha trançada. Na boca-da-noite, 
            sem qualquer bulha, o negro velho espalhou aquilo em baixo do jirau 
            e trepou pela árvore vizinha. Aboletou-se naquele cocho como pôde, 
            verificou a Winchester e a munição, preparando-se para a espera. 
            Ficou observando a noite que se fechava e imaginando quando a 
            pintada sentiria o cheiro da isca. Botou atenção nos barulhos 
            noturnos, tentando identificar cada um. O tempo escorria lento, o 
            orvalho umidecia e um friozinho suave invadia a noite clara. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Rugidos, 
            estralos, gritos e pios cortavam de vez em quando o silêncio pesado. 
            Numa galhada seca um corujão gritava de jeito sinistro. Nas extremas 
            do descampado uma ponta de gado passava a noite, ruminando e 
            bufando. Algumas estrelas pestanejavam no céu. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Pelas tantas, 
            meio descrente da caçada, o Arigó percebeu um barulhinho por baixo 
            do jirau. O ouvido afinado notou logo que era muito ligeiro e 
            leviano; não havéra de ser a onça. Mirou por cima da tábua e avistou 
            o vulto de um cachorro-do-mato brasino que tentava pegar alguma 
            carne. “Vai esculhambar tudo, esse caiporento!” — excogitou o 
            caçador. Atirar não podia, que o estrondo espantaria a pintada. 
            Antes que o guará abocanhasse a isca, Arigó esticou-se e falou, meio 
            gritando para dentro: “Cisca daí, jaguara!” Pegado no susto, o bicho 
            deu um grito agudo — cain! ..., — eriçou o pelo que nem arame e em 
            dois pulos garrou a direção do banhadal, sumindo no mato. O homem se 
            recostou e recomeçou a espera, livre daquele impostor. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Não demorou e 
            outra bulha começou, agora uns passinhos descuidados e suaves de 
            quem passeia. Bombeando lá de cima, o Arigó reconheceu logo o 
            tamanduá de rabo embandeirado. Ele fuçou por ali, muito tranquilo, 
            desprezando as carnes, e desapareceu. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Passou um tempão 
            e nada aconteceu. Até os bichos da noite pareciam acomodados quando 
            o Arigó ouviu estralar algum matinho, sinal de pisada forte. Barulho 
            só percebido por ouvldos muito treinados. Passos macios e pesados se 
            aproximavam com cautela. Era ela, com certeza! O coração do velho 
            caçador se apertou e ele segurou com força a carabina. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Com extremo 
            cuidado olhou para baixo e deu com a bichona bem perto. A pintada, 
            enorme e roliça de gorda, avançava precavida, vigiando ambos os 
            lados e, às vezes, lançando rápidas olhadas para trás. Só de cima 
            não parecia esperar ataque. Chegou nas carnes e começou a comer, 
            atenta, sem descuidar da vigilância. Seguro de si, o Arigó encontrou 
            a posição de tiro no exato momento em que a onça o viu em cima do 
            jirau. A fera o fulminou com uns olhos que pareciam tochas varando a 
            noite. Arreganhou os dentes e fez um jeito de saltar, mas foi tarde. 
            O tiro reboou e foi ecoando para longe, a bala atingiu o animal 
            entre os olhos, para não estragar o couro. Deu um rugido medonho e 
            estatelou-se no chão. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Todo o mato 
            silenciou de repente. O Arigó sentiu a alegria de ver que não 
            perdera o sangue-frio e conservava a mão firme como uma rocha. 
            Estirou-se a gosto no jirau, cobriu o rosto com o chapéu de feltro e 
            dormitou até o dia clarear. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Muitos anos 
            virados na curva do tempo, o Arigó me conta o causo com riqueza de 
            pormenores e uma ponta de saudade na voz. Tem os cabelos nevados, o 
            corpo mais ossudo e enxuto, mas os olhos mantém o mesmo brilho e as 
            mãos não tremem. Estamos sentados na nova sede da “Primavera”, onde 
            as modernagens eliminaram a cozinha-de-chão. Aos meus pés, estendido 
            no soalho rebrilhante da varanda, está o couro da pintada, a maior 
            de quantas apareceram naqueles ínvios. 
  
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