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            Enéas Athanázio 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O guardamento do último Viganó 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A notícia 
            estourou na bodega do Zé Maria e não se sabe como se espalhou com o 
            vento: morreu o temporão do velho Viganó. Num instante estava 
            cruzando as cercas, levada pela língua das comadres. Circulava pelos 
            botecos e rodas de jogo, invadia as casas de família e corria livre 
            pelas ruas poeirentas. Num repente, até os guapecas pressentiam que 
            o moço estava morto e esturricado, lavado e estirado num caixão de 
            imbuia preta. E morto de morte matada, quem diria, ele que foi o 
            cuéra da Coxilha Chata, o touro do rodeio, índio que não enjeitava 
            parada. Furado de bala, quem diria, logo no povoado dos Fritz, , 
            vila de gente pacata. Quem diria. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Não tardou e o 
            povo, em grupo de três e quatro, pegou a se movimentar devagar para 
            o guardamento. Bem devagar, saboreando no caminho a falação, o 
            diz-que-diz-que, a tramelagem de um e outro. Sem pressa de chegar na 
            casa achatada e larga da Rua da Saída, onde o quebra descansava na 
            sala, num caixão cercado de coroas e castiçais altos, com o rosto 
            macilento representando na morte a calmaria que nunca teve em vida. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Em pouco tempo a 
            grande sala foi se enchendo, cada visitante procurando os parentes 
            do falecido para os pêsames, num toque de pontas de dedos com 
            murmúrio de palavras inaudíveis. Depois ficavam uns instantes 
            observando as feições do falecido, recordando talvez alguma de suas 
            tropelias, persignando-se num gesto ligeiro e automático. 
            Sentavam-se por ali, tentando se pôr a cômodo para a comprida noite 
            que mal principiava. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Muito abombados, 
            trajando luto fechado, alinhavado às pressas, os pais do vítimo 
            sentavam-se num canto. Dona Arvíria, gordona e baixota, chorava 
            alto, as lágrimas rolando pelas bochechas que ela enxugava num 
            lenção carijó. Suas lamúrias e clamações, recortadas de soluços 
            doídos, fugiam pela janela sem vidraça para a noite. Ao lado, seu 
            Maneco, com olhos enxutos e estanhados, curtia em silêncio a perda 
            do único filho homem, nascido temporão depois de uma récua de 
            meninas – o derradeiro Viganó. Seu olhar esgazeado, fixe num ponto 
            do teto, refletia perplexidade diante da desgraça daquele próximo 
            meio aloprado e injiquento, sempre metido em escaramuças 
            desnecessárias, mas temido pela valentia. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Homem velho e 
            vivido, avaliava as conseqüências de chefiar dali por diante uma 
            familiagem só de mulheres. Qualquer pelepré ressentido, sem tê nem 
            porquê, iria agora se provalecer, pois em família de pouco macho 
            ninguém põe respeito. No entanto, o coitado morreu sem saber como, 
            baleado na nuca por um caipóra que, pela frente, havéra de aprontar 
            carreira com uma simples careta do falecido. De vingança, porém, não 
            excogitava, deixando o causo nas mãos da Justiça, embora disposto a 
            se empenhar na condenação do traiçoeiro. A lembrança do filho morto, 
            como lhe entregaram, encolhido e embarrado que nem porco mal 
            carneado, numa tarimba de pau, não lhe saía da cabeça e machucava 
            fundo o seu coração de velho orgulhoso e cheio de si. Mas vingança, 
            isso não. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Com a sala se 
            enchendo, foi o povo se espraiando pela área, a cozinha, os quartos 
            e os corredores. O silêncio respeitoso do começo era violado pelo 
            arrastar de botas nas tábuas do chão, tosses e espirros, e até 
            algumas risadas disfarçada. Um murmúrio indistinto se espalhava, 
            aumentando aos poucos de volume. Lá fora, atados na cerca, os 
            cavalos encilhados se alinhavam e, mais adiante, os carros, 
            caminhões e caminhonetes atopetavam a rua de costume vazia. Eram as 
            conduções da parentalha e dos amigos chegados de longe. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Pelas tantas, 
            começou a correr o chimarrão. Uma cuia trabalhada, com bomba de 
            bocal dourado, e a chaleira requeimada do fogo-de-chão. Circulava de 
            mão em mão, enquanto um piazote esperto vigiava para não faltar água 
            bem quente, substituindo a chaleira sempre que esvaziava. Pouco 
            depois aparecia a cachaça, legítima cana do Uruguai, numa bandeja 
            cheia de copos, oferecida por uma moça muito séria. A pinga branca e 
            forte animou os espíritos e a bulha aumentou. Em alguns cantos 
            proseavam e riam como se o morto não existisse. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Aos poucos o 
            povo minguava. Uns saíam de mansinho, outros faziam questã da 
            despedida. Dona Arvíria, muito entregue, foi recolhida ao quarto, 
            depois de uns chás para dormir. Na sala iluminada, passava a última 
            noite do falecido na face da terra, e ele quase solito, esquecido 
            antes do tempo. Só alguns gatos pingados lhe faziam companhia. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Na cozinha, 
            porém, o mulherio se movimentava. Galinhas crioulas e lingüiça 
            fresca frigiam na graxa e o cheiro forte inundava a casa. Depois de 
            tudo pronto, os persistentes iam sendo convidados, de quatro em 
            quatro, para jantar na grande mesa de pinho arrumada no canto da 
            varanda. Voltavam palitando e chupando os dentes, reforçados para a 
            travessia noturna. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            A noite 
            implacável seguia seu rumo, aproximando a hora trágica da despedida 
            definitiva. Os primeiros clarões do dia se esboçavam no horizonte e 
            os rostos tresnoitados revelavam cansaço, com as barbas se mostrando 
            nos queixos. Os galos cantavam e algum quero-quero já gritava nas 
            canhadas e nos banhados. 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            No seu canto, 
            quase no mesmo lugar, Maneco Viganó nem parecia ter se mexido. 
            Esmagado pela desgraceira, mudo e teso, tinha os olhos vermelhos 
            estanhados e presos num ponto do teto. Mas estavam secos, porque 
            homem-macho não chora. 
  
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