Enéas Athanázio
Visita de médico
O velho Dr.
Bento era boa criatura, benquisto por todos na pequena cidade. Meio
desocupado, gozava de modesto ócio com dignidade, e só tinha um
defeito: a mania de fazer visitas. Desde que levantava, bem cedo
para ter mais tempo de não fazer nada, dedicava-se à ocupação
favorita. Eram visitas rápidas, dessas de médico (quando ainda
faziam), entrando por uma porta e saindo por outra. Numa casa
engolia o cafezinho, na outra sugava a bomba do mate, na terceira
enrolava um cigarrinho. Assim, no correr do dia, eram muitas as
visitas feitas, nos lugares mais diferentes e inesperados da
cidadezinha.
Tinha, é claro,
as casas preferidas, onde aparecia todos os dias. “Ia assinar o
ponto”, dizia bem humorado. Uma de suas vítimas era o Orly Tabelião,
onde comparecia diariamente, sem falta, nos momentos mais
impróprios.
Cansado daquilo,
Orly arquitetou um plano e, numa manhã ensolarada, antes que o velho
charlatão fosse para a rua, bateu à porta do casarão onde morava.
Surpreso, o Dr. Bento recebeu o visitante com cara cheia de
curiosidade, o sorriso forçado aflorando nos lábios. Orly foi
entrando, pediu licença para tirar o casaco e colocou sobre a mesa o
pacotinho que trazia. Refestelou-se na poltrona mais próxima,
esticou as pernas e principiou uma conversa que prometia ser longa.
E assim foi.
Orly Tabelião
esmerou-se em descobrir assuntos. Diante do anfitrião desconcertado,
fez as perguntas de praxe sobre a saúde e a família, comentou as
safras e os preços, rezingou contra a carestia, lembrou os mortos
mais recentes e os negócios mais falados. Depois - sem deixar o
outro dizer ‘a’ – resvalou para a política municipal, com incursões
pela história, desde a República Velha, a campanha pelo voto
secreto, os golpes e contragolpes, até a eleição do atual prefeito.
Desconfiado e
incrédulo, Dr. Bento não sabia bem o que fazer. Com olhares
ressabiados ao pacotinho largado sobre a mesa, servia chimarrão e
escutava, escutava.
Chegada a hora
do almoço, o dono da casa não teve jeito e convidou a visita para
passar à sala de refeições. Sempre falante, ágil como nunca, Orly
não se fez de rogado. Comeu, repetiu, elogiou. Como amigo da casa,
até reclamou do cafezinho.
Voltaram às
poltronas.
Orly falava, o
tempo se arrastava, Dr. Bento cochilava. E ouvia.
A tarde
avançava, pesada, quente. Inquieto, o dono da casa mandou servir
mais café e reiniciou o mate. Alguns sons estranhos invadiam a sala,
enquanto o monólogo prosseguia. Desiludido de participar da
conversa, Bento se conformou, enterrado na poltrona.
Orly agora
abordava a situação internacional, revelando sua preocupação com os
conflitos do Oriente Médio.
Até que veio o
jantar e depois mais café e mais chimarrão.
Orly Tabelião
falava.
Quando a noite
se fechou, a sala foi tomada pelo silêncio, os movimentos cessaram
nas dependências da casa. A visita reclamou alguma bebida e Bento
mandou servir cerveja.
Reanimado, o
tabelião achou novos assuntos.
Nenhum deles
agüentava mais. O chimarrão foi encostado, copos e xícaras ficaram
largados na mesinha. Tardava a noite, a cidade dormia.
Orly Tabelião
fez afinal uma pausa. Levantou e deu alguns passos pela sala.
Ansioso, Bento esperava que ele se despedisse.
A visita olhou o
relógio.
— É tarde,
Bento, muito tarde. Está na hora de dormir.
Em seguida,
apanhando o pacotinho da mesa, completou:
— Mande arrumar
a cama que eu já trouxe aqui meu pijama... Nunca mais Orly Tabelião
recebeu a visita do Dr. Bento. Quando se encontram na rua o velho
charlatão se limita a rápido aceno de saudação.
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