Elaine Pauvolid
Fortuna crítica: Gerardo
Mello Mourão
Ponto e Contraponto de Elaine
É uma velha e fútil discussão, esta de perguntar se
há uma poesia dos homens e outra das mulheres. É até possível que
haja, na escritura, uma tonalidade feminina, distinta da tonalidade
masculina, como no mistério da escala das cordas vocais. Mas a
poesia, que é uma linguagem do ser, como queria Heidegger, ao falar
de Hördelin, é a mesma entre os homens e as mulheres, desde que
nossa pobre e maravilhosa raça planetária inaugurou sua atormentada
e jubilosa aventura de inventar a expressão da beleza mera que se
incorpora nas coisas, nos lugares e nas pessoas que nos cercam.
Ao entender que a poesia é uma linguagem do ser, o
filósofo ia mais longe, e a situava como “uma categoria do ser”. Mas
é preciso ir mais longe ainda: a poesia não é apenas uma categoria,
mas a categoria do ser. Elaine Pauvolid sabe disto, como se pode ver
nos breves poemas reunidos em sob o título sugestivo de Trago
[inédito até dezembro de 2000], título que acena desde logo como o
twilight de sua ambigüidade, numa abertura poética, que tanto pode
ser o substantivo trago, como a primeira pessoa do verbo tragar, ou
do verbo trazer - o convite ao vinho, à embriaguez, ou a alegria do
gesto de beber. Ou ainda o anúncio da portadora de mensagens e
oferendas que nos chegam de repente. “Trago aqui minha rosa e minha
voz” - digamos.
Não importa que a poeta não tenha sequer pensado no
desdobramento dessas hipóteses. É até bom que não, pois a
intencionalidade sempre mata ou aleija a obra de arte - opera aperta
por si mesma, no sortilégio e nas indagações de seu lusco-fusco, e
não pela autora, como na observação de que “o poema sabe mais do que
o poeta”. Eu mesmo cheguei a esta descoberta, inventada por
Coloredge quando leu a Ode a Uma Grega, de Keats, e aprendi a
encontrá-la ao mergulhar na recente e prodigiosa Poesia Reunida de
Dora Ferreira da Silva, que não hesito em situar como uma obra
fundamental e fundadora de nossa pobre literatura, ao lado do canto
órfico de Jorge de Lima. E ao lembrar os mitologemas de Dora, poeta
maior de nossa língua e de nosso tempo , não posso elidir a
coincidência de encontrar também esse poder virtual do poema sobre o
poeta, na poesia auroral de Safo e das outras musas gregas que a
cercaram ou sucederam, nos originais da tradução que acabo de leri,
ainda inédita, no texto bilingüe, Restos Geregos, de Gonçalo Mello
Morão, com surpeendentes anotações lingüistas e críticas. Mas isso é
outra história.
É e não é. Pois não deixa de ser significativo que
esta verificação da força do poema se faça tão viva exatamente nas
cordas vocais das mulheres, de Safo a Dora. E, de certo modo, nos
cantos deste Trago de Elaine Pauvolid, isto sem qualquer veleidade
tola de comparações que não cabem, na lonjura das eras que separam
as cantoras gregas de nossa admirável Dora Ferreira da Silva, aliás
grega também ela pelas origens étnicas e pelo tempo mítico onde se
gera seu cano. Maiores hão de ser ainda as distâncias em que se
situa no tempo a jovem poeta Elaine. O que importa é verificar que
todas pisam no mesmo chão sagrado da poesia pura.
Talvez a primeira marca poética da poesia de Elaine é
a suspeita de que ela se funda no território ctônico da memória. É
bom lembrar que as Musas da mitologia apolínea são todas filhas da
memória. A sugestão dessa fonte - a memória - como origem e vigência
seminal da poesia, parece estar já no primeiro poema desta
antologia:
“trago a luz
que escolhe confusa
a dor-memória desconhecida”.
E não por acaso é para a memória que se volta também
o segundo poema da antologia, quando a poeta evoca sua descrença em
Deus:
“faz tempo que desacreditei em Deus”.
“Faz tempo” - quer dizer: houve um tempo em que
acreditava nele. E aí vai a primeira advertência ontológica do
conhecimento inventada por Platão: a gente só se lembra daquilo que
um dia se lembrava. E só se lembra daquilo que a memória guarda como
um ser vivo, no espaço ou no tempo de nosso próprio ser. Parece
impossível a lembrança de um não-ser. Deus costuma, assim, aparecer
como a primeira memória do ser humano, mesmo que seja como uma
saudade de sim mesmo, uma saudade ontológica, como queira Unamuno,
que dizia: “ele é mais do que eu mesmo”.
A poesia de Elaine pode ser percorrida com uma senha
permanente: a busca da memória, não apenas e não tanto no passado,
mas no quotidiano, onde ela vai construindo, dia a dia, sob o signo
misterioso da saudade de hoje a saudade do futuro, em que o presente
constrói a saudade do passado. Pelos caminhos de seus versos passam
todas as derelições do mundo, as gatas de cios clamorosos nos
telhados, as crianças perdidas, azuladas de fome e de frio, as
prostitutas, os caçadores de dinheiro, a bacanal dos presantificados
e a presença perturbadora de sempre: aquele Deus que insiste em
aparecer e ser invocado.
Enquanto não o encontra, a poeta vai mastigando
grampos na aventura de sua travessia do mundo, o quotidiano sempre
inesperado e sempre o mesmo. Sucumbirá aqui e ali, invocando
impostores de circunstância, contrafrações grotescas do Deus que vai
buscando, como ocorre na depressão do último poema. Mas um dia ela
poderá dizer a cada um desses desencontros, como no epílogo de seu
canto atormentado:
“trago-o”.
Estes poemas de Elaine, como a Ode de Keats, podem
mais do que ela. São um momento importante, um momento vivo, da
inquietação da nova geração de poetas deste país, doloroso e lírico
caminho aberto para a beleza pura e duradoura que anunciam, em sua
linguagem tersa de pontos e contrapontos.
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