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Eduardo White
Uma língua
é o lugar
donde se vê
o mundo
Vergílio Ferreira
Vozes 
Poéticas da 
Lusofonia
Na minha língua...
cada verso é uma
outra geografia.
Manuel Alegre

 

VOZES POÉTICAS DA LUSOFONIA 
Edição: Câmara Municipal de Sintra
                     Presidente: Dra. Edite Estrela
Organização: Instituto Camões 
Coordenação: Alice Brás 
                     Armandina Maia 
Seleção de textos: Luís Carlos Patraquim 
Capa: LPM — Idéias e Acções 
Realização gráfica: Gráfica Europam, Ltda. 
Mem Martins – Portugal 
Depósito legal: 138134/99 
Maio, 1999
Patrocinada pela
CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS
 

 
 
Eduardo White


 JANELA PARA ORIENTE

(excerto)
 
 

Por exemplo, como o que podia dizer:

Nas Filipinas uma lava destila o açúcar e eu bebo, em Manila, uma mestiça que me seduz, vulcânica na sua orientalidade, desde a raiz que lhe vem dos igorots, a falar de amor em tagalo, até à lembrança de Fernando Magalhães curvado sobre Mindanao, mais obscuro ainda nel corazon de su glória, orbital na azul fugacidade dos mares porque em Quezon se incandesce o canhâmo que ali chegou anelante e líquido pelas portas do sexo, o fulgor da copra amendoada e concava, viscosa para sangrar o sabão que o há-de lavar.  E tudo isto eu digo a caminho da fertilidade tropical de Terai, no Nepal, e do frio altíssimo dos Himalaias onde um bovino se ri auto-móvel pelo gelo, a pensar, quem sabe, nas tranças de tabaco que seria bem melhor transportar pelas ruas diurnas de Kat-mandu, ou de Biratuagar, ou Lalipur, ou em amarrar-se, mais longe, ao puro sizal da utopia de Corazon Aquino num comício eleitoral nos subúrbios de Devao, meu oriente de quem este chão foi a ponte com o Ocidente e que ainda a vejo e atravesso do quarto da escrita, tu que eu olho sem que ninguém saiba e oiço como o bantu idioma do meu povo no Suriname a roubar ao mar a terra com a força punjante de um negro a gritar em takl-takl todas as mães que deixou, todos os filhos que não amou, tu denso e vegetal no barbudo caçador de tigres da Malásla, esbelto e escuro na flecha adunca do seu nariz, nos longos e azevichados cabelos a voarem de paixão por uma branca a passear-se em Johor Baru, tu mãe do bumuputra Sandokan na solidão do seu sabre, costureira, por ironia, da alta moda de Paris e a passear-se, com loiras e paneleiros trajados de caqui, no dorso medieval de um elefante e a despir-se ao ritmo dos tambores taoístas e das mil e tais posições do Kamasutra, meu Oriente dos belos e impagáveis travestis em pleno Laos, a beber Coca-Cola da boca amarga dos marinheiros, a dar o cú mais feminino de Venciane, duro e redondo como não existe em Las Vegas, virginal ainda do pouco uso ou da idade recente no negócio, meu Oriente nos haréns de Bandar Seri Bangwar, na dança do ventre do próprio sultão a rir-se de tudo e a coçar os pés altivo e imperial no lustríssimo turbante, nas opalas gigantes dos dedos, ou ainda do velho obeso e cansado Vasco da Gama, em Molucas, português de fé como minha mãe, deixa que cheguem a esta janela, pelas tuas canoas com balancias e velas, os melões vermelhos da Malásia, a borracha de Sumatra, o amendoim da Birmânla, o cacau de Luzon nas Filipinas, deixa aqui fumar um cigarro enrolado a dedo em Java e uma dançarina de Bangkok para que durma.
Mas antes, deixo o Saigão numa jangada, com docinhos de arroz, a banana frita e um pouco de peixe salgado na cozedura para a viagem, deixo o Salgão com alguma tristeza e o meu mulato, lá, gonorreico a chorar num reclame da Cruz Vermelha, vou para Boston sem uma perna, pedrado da vida, perdi-a a matar em nome do velho branco de fraque e cartola e a ler Ginsberg fodido por lhe terem tirado tudo sem nunca ter recebido nada.  Saigão venérico de Napalm nas canções de Lenon, a pôr bombas na casa real inglesa e a dizer-se maior que Cristo e a masturbar-se de óculos com o Japão em Yoko, meu Saigão inderrotável até nas papaeiras da Marilyn Monroe, vermelha de dormir com a América toda ou de cheirá-la por um tubo branco a redimir-se sozinha do velho sangue preto de Martin Luther King, Saigão da vergonha, terrorista, da malária a gingar no mosquítico mindinho comunista de Ho Chi Min, invisível, maquiavélica por Maquiavel não ter culpa disso, Maoísta até ver quando, Saigão das bananas a descascar o mundo e a vomitá-lo todo na Broadway, a dançar sapateado com o conformado Fred Astair, nas loiras adolescentes de Nova Iorque brilhantinosamente estéricas com a pilinha de ouro do Frank Sinatra ou na volumosa mandioca do Jimmy Hendrix a tocar com os dentes o hino nacional americano, Saigão doente e triste, mas de pé em Phnom Penh e nas rotas botas do cidadão Giap, oriental em tudo e místico e forte, vejo-te daqui e não sabes, com um barco pronto a meio do peito e as malas por arrumar na consciência.
 

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