Não é sempre que um pai transmite ao filho as suas virtudes
poéticas. A herança paterna pode ser preservada, mas raras
vezes é levada adiante por mãos não menos firmes.
De Alberto da Costa e Silva pode-se dizer que
apanhou a tocha onde seu pai a deixou e não precisou erguê-la
acima da cabeça para que continuasse no alto.
Da Costa e Silva é um dos grandes nomes
desse grupo que Tasso da Silveira denominou de “sincréticos”: poetas
que se situam na confluência de várias correntes, banhando-se
em todas as águas, sem serem exatamente poetas de transição
mas permitindo a passagem do simbolismo e do parnasianismo para o modernismo.
O autor de Sangue deu-nos uma obra forte e vivida, em que se conciliaram
as exigências de uma aristocracia estética e as impregnações
de uma sensibilidade profundamente popular. Da Costa e Silva se tornou
famoso por seu soneto “Saudade”, belíssimo, embora não seja
ainda o melhor dos seus poemas.
Que pontos de contato haverá entre pai e filho na poesia?
No primeiro livro de Alberto, O Parque e Outros Poemas, aquilo que se poderia
chamar de “o tema do pai” já vinca fortemente o poeta. “O rosto
de teu pai no rosto de teu filho” irá reaparecer mais tarde. Na
admirável página que é “Aparição de
Fortaleza”, esta é a “cidade de meu pai enfermo”. A “Elegia Serena”,
conquanto não declaradamente, constitui uma ressonância
da morte do pai.
Nos poemas de “O Tecelão”,
o tema é fugitivo e dilui-se entre os sucessivos motivos da infância,
Mas em “As Cousas Simples”, que abrem o volume, o tema cobre todos os outros
e a figura do pai revive e cresce desmesuradamente. Aqui finalmente a identidade
essencial se estabelece:
Teus olhos estão nos olhos
do velho, a boca na sua,
o mesmo amor pelos trastes;
o mesmo corpo recurvo,
o mesmo queixo de quarto-
crescente, a mesma certeza
do gado a mugir no pasto.
Ah, velho! ah, menino! nasce
de um rosto a carne do outro.
No poema “Rito de Iniciação”, de uma fase posterior, há
a presença do pai mas não o tema: “meu pai dizia
as mangas que enverdeçam”, “o azul é rouco e teu meu pai
dizia”. São as “coisas simples” que dominam a frase musical, que
informam a composição.
Este rito de iniciação vinha de longe, na realidade
desde “O Parque”, mas o poeta insistia em colocar a figura do iniciante,
do mestre em primeiro plano, como depois se deixou atrair, momentaneamente
pelo próprio rito.
Em todo o livro O Tecelão
a infância passa como um vento voraz, em que tudo se confunde e redemoinha.
É uma obsessão exasperante, na qual parece no entanto comprazer-se
o poeta, em plena consciência de sua irreversibilidade: “Menino já
não sou”. (Uma irreversibilidade no simples plano temporal, anulada
interiormente quando o poeta escreve:
Vivemos nossa espera, enquanto, mudos,
fluímos para o encontro e retornamos
à infância, mansa páscoa e frágil vime.
Já não somos nós mesmos; somos mais
do que nós mesmos ou alguém mais puro,
um sonho de não ser, ah, sendo e amando.)
Em seu último poema, “Hoje: gaiola sem pássaro”, a angústia
da infância perdida recrudesce. Grito final de libertação
ou mergulho ainda mais profundo?
Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino. Por
isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça
o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos
sem rumo. Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo
a beber água no riacho! Como se importasse à causa humana
ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar
sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer
o mundo, para saber que estou vivo. Se não se têm esses olhos
de infantil verdade, todas as cousas nos enganam, tornam-se as palavras
sem carne com que construímos a árida abstração
que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas,
por exemplo.
Esse manifesto contra o fim da infância, contra a entrada no “curral
dos adultos”, é desde sua prosa polêmica um abandono das notas
com que Alberto da Costa e Silva escreve as suas invenções
e variações. No poema “As Cousas Simples”, por exemplo, ao
lado das evocações ostensivamente melódicas de canções
de roda, há um intermezzo casimiriano:
Com ele colhias mangas,
ias ver os trens e as aves.
De súbito o céu crescia
e inundava os olhos
e as tardes.
Batiam contra os telhados
as ondas de um céu
selvagem.
Os dois volumes, O Tecelão e Carda, Fia, Doba e Tece, permitem ver
como se alarga cada vez mais o ângulo de tratamento do verso em Alberto
da Costa e Silva. De uma poesia presa de um lado a certos esquemas métricos
e do outro a uma liberdade rítmica puramente intuitiva, o poeta
evoluiu para a predominância do tempo sobre o ritmo e em seguida
para uma duração interior. Só enquanto fenômeno
gráfico o verso está limitado no tempo e no espaço:
como fenômeno poético, desenvolve-se em profundidade, em sucessivos
alvéolos de eco:
sabor só soturno soterrado
dá a manga o trotar o alaúde
meu pai dizia o sol é sal e o solo
nada cultiva em nós nem a descalça
morte rastro leve na farinha.
O poeta Mário Chamie não pode deixar de ver em trechos como
esse uma aproximação da poesia-praxis, embora eu tema que
tudo se reduza a aparências. Também aparências hão
de ser algumas aberturas concretas de que Alberto da Costa e Silva lança
mão no poema “Um Artesão”. A imitação gráfica
do salto, do trotar do cavalo do meio-dia no relógio ou do balanço
dos chifres dos zebus, parece-me pleonástica em relação
ao texto (se não correr também o risco da gratuidade caligramática).
A infância, quero dizer por fim, não é em Alberto uma
atitude de autocomiseração, uma contemplação
estéril do próprio umbigo. O que valoriza sobremaneira sua
evocação ? ou, mais exatamente, sua retomada do tempo anterior
? é que ela estabelece um contacto direto com a terra e com o homem.
Alberto intitulou seu livro de O Tecelão. Fora melhor, talvez,
dizer O Oleiro. A bilha é uma de suas principais constantes. O barro.
Em sua dicção nobre, os objetos consuetudinários adquirem,
readquirem, a nobreza original da matéria :
memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.
A infância está igualmente no âmago de alegorias inesperadas
e dinâmicas:
Jaguar de lua e mel, feroz, vigia
a infância que de relho e grito avança
contra os corcéis que pastam seu crepúsculo.
Ou:
novamente
sinto em mim o odor de esterco e leite
dos currais onde a infância tange as reses.
Nos dois exemplos temos uma amostra do comportamento do poeta em relação
às coisas cotidianas: relho, esterco, jumentos, caçarolas,
chevrolés, etc. Dentro do verso são elas que dão a
marca de realidade e que se investem de nobreza literária. Mundificam
o poema, situam-no em relação a. Não direi que seja
um fato novo na poesia brasileira (temo-lo desde Gonzaga), mas em nossa
poesia atual, sobretudo entre os mais novos, contam-se pelos dedos os poetas
cujos versos querem significar alguma coisa e significam. Não quero
dizer com isso que o poeta deva ter um assunto. Deve ter é um conteúdo.
Um conteúdo e não um pretexto. Um conteúdo e
não um rótulo. Deve ser um poema e não a redação
de uma tarefa.
O Tecelão é um momento, um longo momento, de verdadeira e
admirável poesia.
[A Leitura Aberta,
Rio de Janeiro, Editora Cátedra,
1978]
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