Álvaro de Campos
ODE TRIUNFAL
6-1914
À dolorosa luz das
grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes,
fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente
desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó
engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido
dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora
e dentro de mim,
Por todos os meus nervos
dissecados fora,
Por todas as papilas
fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios
secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente
de perto,
E arde-me a cabeça
de vos querer cantar com um excesso
De expressão de
todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo
de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os
motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos
humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente,
e também o passado e o futuro,
Porque o presente é
todo o passado e todo o futuro
E há Platão
e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve
outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre
Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de
ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias
de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando,
estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso
de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
Ah, poder exprimir-me
todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma
máquina!
Poder ir na vida triunfante
como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de
óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda,
negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas
as dinâmicas!
Promíscua fúria
de ser parte-agente
Do rodar férreo
e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas
dos navios,
Do giro lúbrico
e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado
das fábricas,
E do quase-silêncio
ciciante e monótono das correias de transmissão!
Horas europeias, produtoras,
entaladas
Entre maquinismos e afazeres
úteis!
Grandes cidades paradas
nos cafés,
Nos cafés - oásis
de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e
se precipitam
Os rumores e os gestos
do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas
e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma
dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de
estatura do Momento!
Quilhas de chapas de
ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas,
nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional,
transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas
de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos
Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues
de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
Hé-lá as
ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô
la foule!
Tudo o que passa, tudo
o que pára às montras!
Comerciantes; vários;
escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de
clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras
dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até
na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo
o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente
acentuada das cocotes
Banalidade interessante
(e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe
e filha geralmente,
Que andam na rua com
um fim qualquer;
A graça feminil
e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente
elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá
dentro!
(Ah, como eu desejaria
ser o souteneur disto tudo!)
A maravilhosa beleza das
corrupções políticas,
Deliciosos escândalos
financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas
nas ruas,
E de vez em quando o
cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio
e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos
da Civilização quotidiana!
Notícias desmentidas
dos jornais,
Artigos políticos
insinceramente sinceros,
Notícias passez
à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando
para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta
de tipografia!
Os cartazes postos há
pouco, molhados!
Vients-de-paraître
amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos,
a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas
as maneiras,
Com os olhos e com os
ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que
palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência
como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus
sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a
vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola,
e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários
dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes,
cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos
das fábricas e dos calmos escritórios!
Ó fazendas nas
montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis
que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns
com várias secções!
Olá anúncios
eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que
hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton
de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos
gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões,
metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo,
como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando
a minha vista
Em vós, ó
coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas
modernas,
Ó minhas contemporâneas,
forma actual e próxima
Do sistema imediato do
Universo!
Nova Revelação
metálica e dinâmica de Deus!
Ó fábricas,
ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados,
ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta
e encandescida
Possuo-vos como a uma
mulher bela,
Completamente vos possuo
como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente
e se acha interessantíssima.
Eh-lá-hô
fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô
elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô
recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas,
relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento
é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão
belo como uma borboleta).
Eh-lá o interesse
por tudo na vida,
Porque tudo é
a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite
ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene,
lavando as costas
E sendo misericordiosamente
o mesmo
Que era quando Platão
era realmente Platão
Na sua presença
real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles,
que havia de não ser discípulo dele.
Eu podia morrer triturado
por um motor
Com o sentimento de deliciosa
entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro
das fornalhas!
Metam-me debaixo dos
comboios!
Espanquem-me a bordo
de navios!
Masoquismo através
de maquinismos!
Sadismo de não
sei quê moderno e eu e barulho!
Up-lá hô
jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o
teu cap de duas cores!
(Ser tão alto que
não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em
mim uma perversão sexual!)
Eh-lá, eh-lá,
eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça
de encontro às vossas esquinas.
E ser levado da rua cheio
de sangue
Sem ninguém saber
quem eu sou!
Ó tramways, funiculares,
metropolitanos,
Roçai-vos por
mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em
plena cara,
Ó automóveis
apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões
quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo
e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas,
que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas
a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões
domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada
um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando
ninguém pode ver!
Não saber tudo
isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como
uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro
o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações
absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
Ah, e a gente ordinária
e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões
como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às
portas das mercearias
E cujas filhas aos oito
anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto
decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos
andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais
de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente
humana que vive como os cães
Que está abaixo
de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião
foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política
destinada para eles!
Como eu vos amo a todos,
porque sois assim,
Nem imorais de tão
baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por
todos os progressos,
Fauna maravilhosa do
fundo do mar da vida!
(Na nora do quintal da
minha casa
O burro anda à
roda, anda à roda,
E o mistério do
mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço,
trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o
silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios
ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha
infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
Mas, ah outra vez a raiva
mecânica constante!
Outra vez a obsessão
movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria
de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do
mundo,
De estar dizendo adeus
de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão
levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó
aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó
portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
Eh-lá grandes desastres
de comboios!
Eh-lá desabamentos
de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios
deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô
revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações
de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças,
violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão
dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto,
mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro
ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel
e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo,
salvo o Momento,
O Momento de tronco nu
e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente
ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico
passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze
e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes,
eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas
as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão,
aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas
rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos
doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios,
simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia
canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro
do presente!
Eia todo o futuro já
dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil
da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para
dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os
comboios.
Içam-me em todos
os cais.
Giro dentro das hélices
de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico
e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas
de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo
e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
Galgar com tudo por cima
de tudo! Hup-lá!
Hup-lá, hup-lá,
hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô!
H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
Ah não ser eu toda
a gente e toda a parte!
Londres, 1914 - Junho.
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