Agora
tu, Calíope, me ensina
o
que contou ao Rei o ilustre Gama;
Senão
direi que tens algum receio
que
se escureça o teu querido orpheio
(Camões,
Lusíadas, Canto Terceiro, 1 e 2)
Vem, Calíope,
venham também as outras oito,
Ereupokal, Kliumterthal, quero todas,
e sob Apolo,
a lira.
O que tinha de ver, já vi,
que tinha de escutar, escutei,
agora é a guerra,
o trato de Menelau,
a palavra empenhada aos príncipes gregos,
contra Páris, o ladrão;
engenho e muita força, de todas as armas —
onde tiver, mando buscar.
Acudam-me os cantadores:
Ignácio da Catingueira,
negro e escravo;
Romano da Mãe d’Água;
vocês também fundaram
o galope, a cantoria.
Pinto, do Monteiro,
Otacílio, dos Batistas,
a batistada toda
venham todos,
venham também.
Venha a negra
Barrósa
que desafiou,
e era mulher,
nem se acreditava e desafiou,
mulher fosse gente,
especialmente se negra fosse, desafiou
hoje Benedita, dona Benedita, senhora e senadora,
desafiou e ganhou,
também a dona Barrósa, a senhora dona Barrósa,
de seu Neco dos Martins, o desafio,
que também me acuda,
eram poetas,
ganhou, ganharam,
fundaram este país!
Quero também Aderaldo,
cego,
e outro cego, Dantas, de Nova Russas,
de quando de mim, menino,
a feira, a estação do trem e Osvaldo
que era médico,
médico-doutor e as raízes,
de todos os chãos,
“fundou” a ecologia,
era doido, diziam,
não gostava de farmácia, nem de remédios;
gostava do chão !
Venham também os trovadores,
chegue-me César Coelho,
acuda-me Adaucto Gondim,
valei-me mestre Sinésio Cabral,
vocês todos, um pessoal tão sensível
um cantar tão miúdo,
gigantes porém:
pois como conseguem
encaixotar o início,
passear pelo meio
botar presilha no fim
de tudo qu’é sentimento,
em somente quatro versos
de tudo qu’é bem-querer,
de tudo qu'é universo!?
gigantes são,
pois gigantes venham!
Venha-me também mestre Oldegar,
feiticeiro do hai-kai,
pioneiro nestas terras,
de conseguir enfiar,
dentro de três versinhos
cinco-sete-cinco (tivesse):
a cerejeira,
o monte Fuji,
o Sol Nascente.
Convoco
para brigar nesta guerra,
peço ajuda e proteção,
ninguém nunca deles se lembrou:
Zé Cavalcanti, da Paraíba,
Leota, Ceará, Leonardo Mota,
meu compadre Heldenir, de Monsenhor,
outros gigantes e muitos outros
prosa leve e muito solta,
os causeiros, os memorieiros,
os botadores de bonecos, os cantadores de reisado,
das presepadas, presepeiros,
fazedores de sentinela, guias de cego e aleijado,
sabem todas as histórias
verdadeiras e inventadas:
Cobras imensas do Amazonas paroara
(donde
voltamos quando chove aqui)
onças
matadas de murro,
ferradas n’azagaia,
onça que veio-na-fumaça,
o escalpo do imprudente,
causos do boi-mandigueiro,
astúcias do maracajá,
histórias de muié-gaieira,
marido-brabo, marido-manso
mula-sem-cabeça, lobisomem, encantamento,
de botijas cheias de ouro, prata e cobre;
d’outros feitos e valentia,
histórias de cegos, coronéis, cangaceiros;
adivinhões, profetas da chuva,
rezadores, benzedeiras,
dona Maria do Gildo
e seu raminho de arruda,
capadores e curadores (no rastro!).
Venham, venham,
vocês sabem,
sabem tudo,
eu sei algumas.
Sem as musas,
sem o Olimpo,
sem as fontes,
meu cantar é muito fraco,
inspiração muito curta;
urgem-me aquelas vergônteas
de pau-de-jucá, que nos brotam do coração,
correm pelos tutanos,
mergulham fundo no chão,
e buscam,
profunda que seja,
a água-vida,
esteja onde estiver,
para melhor dizer:
Raízes de céu!
Raízes de chão!
Sem os amarradios do caroá, do agave, do tucum,
sem essas embiras todas,
perenes do bronze, fortes do aço,
os entrançados da casa da aranha,
nunca cai, nem que chova,
nem que rache o sol,
nunca cai, melhor dizendo,
família,
qund’é família !
Ai do
cantador que se atrever,
ai daquele que não possa dizer:
eu sou,
eu venho;
eis a essência,
a chave-mestra,
a gota primeira:
nós!
Pois de que jeito, meu capitão?
Tétis,
minha mãe, compareceu aos rios,
para cumprir o oráculo,
mas os rios estavam secos,
janeiro,
ainda não chovera,
o único que tinha água fugira para o Piauí,
Poti.
O banho
então se fez
no tacho de mel das rapaduras quentes,
engenhos do pé da serra,
aos paredões da Ibiapaba,
à sombra das palmeiras gigantes,
ao som dos besouros azuis,
sorondongos,
torrados,
na pimenta e (farinha)
do reino.
A gente comia
a gente come, os besouros,
as tanajuras.
Comemos também.
João comia gafanhotos e mel.
O Cristo sofreu.
E foi tentado.
Para fustigar as formigas
fui levado às fornalhas das farinhadas de mandioca,
onde
bebi da manipueira, quando
o cântaro furou e curti sede grande,
à inclemência do Astro,
mais um reforço,
jamais poderei dizer padecimento,
fazia parte da têmpera!
Guiei-me pelo barbante,
do equador eu venho
e trago,
debaixo de toda a poeira,
daquela terra benta que nunca foi fria, trago
as alpercatas e um calcanhar eu trago;
trago também
o afoito costume
de pisar uma pisada resoluta,
e das forjas daquele chão sagrado trago,
para pisar em qualquer sítio,
um pé.
Vou logo avisando,
é o direito:
com ele tomo a frente,
com ele sei pisar,
cantando galope na beira do mar.
Venho
das alpercatas,
do calcanhar eu venho,
contra a tirania e a empáfia venho;
vistam-se, por favor, todos os reis profanos,
do meu pisar ninguém se ria,
passo-lhes a faca,
é amolado o meu quicé;
ai do rei que profanar de nudez
o verso, o poema, a cantoria!
É daqui mesmo, seu coroné:
é de logar bem de perto,
é de logar bem distante, cheguei,
um pé à frente, o outro atrás, agora;
estou para qualquer parada, aqui;
diga logo, por seu favor, sem demora,
se prefere brigar,
se quer fugir:
piso em qualquer chão!
Apenas,
eis a ressalva,
a única,
razoável e salutar,
prudente e honesto prevenir:
Ela,
com certeza, o calcanhar e os espinhos,
d’Ela,
eu sei,
sempre foram,
sempre serão, desconfio,
mas, por favor,
Achilles,
diga logo como é mesmo que senhor quer qu’eu
cante!?