Felipe Fortuna
Thiago de Mello: os enganos da
utopia
"Certos vícios parecem
renitentes: acreditem ou não, mas nesse livro Thiago de
Mello escreveu
tenho uma canoa que
se chama Liberdade
— embarcando a poesia numa
canoa furada. Pois nenhuma liberdade justifica a má
poesia"
[Felipe Fortuna] |
Há mais de trinta anos a poesia de
Thiago de Mello vem anunciando a aurora. Marcada pelo engajamento
político, ela atravessa um momento crucial de nossa História: a
expectativa das reformas sociais e, por fim, o golpe militar de
1964. Naquele mesmo ano, poemas como "Os Estatutos do Homem" e
"Madrugada Camponesa" estavam sendo escritos, confirmando o talento
do poeta na prática da esperança. Considerado como escritor de plena
maturidade - principalmente com a publicação de Faz Escuro Mas Eu
Canto (1966) -, era de se esperar que Num Campo de Margaridas (Rio
de Janeiro: Philobiblion, 1986) trouxesse ao menos o florescimento
de um poeta em alta estação. Mas não é o que ocorre: à parte o mau
gosto do título, trata-se de um livro ingênuo, de poemas que atestam
um otimismo a que falta, no plano da criação poética, bastante
convicção. Como quem não domina seus recursos formais, Thiago de
Mello se deixa embalar por composições que são, a um só tempo,
cantigas melodiosas e anotações pessoais - mas, em nenhum dos dois
casos, se trata de grande poesia. Houve muita pressa em lançar esse
livro - o que é marcante na quantidade de erros de revisão. Mas a
pressa foi ainda mais terrível com o poeta: tendo coligido poemas do
período 85-86, e publicando-os ao final deste último ano, o
resultado é decepcionante.
Quero ser capaz de amar,
mas não sonho galardão
que não seja o da alegria
do amor ao meu coração.
("Sagrada Alegria")
Ninguém é capaz de associar tais
versos à maturidade de algum escritor. No seu caso, entretanto, não
se trata apenas de um mau momento, mas sim de um equívoco constante
que se estende por toda sua obra, e que está na raiz do seu
engajamento político.
A meditação filosófica jamais foi
marcante na poesia de Thiago de Mello: mesmo um poema como "Narciso
Cego", repleto de sugestões, acaba sendo um instante de reflexões
previsíveis. A sua estréia, com Silêncio e Palavra (1951), foi de
fato salutar: ali estava, escapando aos cacoetes formais e à febre
de sonetos da Geração de 45, um poeta que se aventurava em sinceras
cogitações sobre o tempo e a morte. Sem qualquer ironia, o livro
representa um ponto alto de sua obra, e ao mesmo tempo revela
algumas qualidades que apenas se definiriam mais adiante. Thiago de
Mello levou a sério a anotação que escrevera em sentido mais amplo:
Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.
("Silêncio e Palavra")
Consta também desse livro a
inauguração de um tema obsessivo, o da aurora que vence a escuridão
- pedra fundamental de sua poesia:
Mas o homem noturno espera
a aurora de nossa boca.
Balizando sua atitude filosófica com
os termos de uma oposição tão simplista, a sua dicção poética se
abalou: maniqueísta, ela não respondia mais pela própria
complexidade de seu objeto primordial, o ser humano. Com um mínimo
de cuidado, percebe-se que a poesia de Thiago de Mello é feita de
poucas idéias: pretendendo ser cosmopolita, não ultrapassa o esboço
de uma luta entre o Bem e o Mal, de oprimidos e opressores, o que
exprime, para além da metáfora fácil, a dimensão menor de sua
poesia.
A sua ambição filosófica é, por isso,
de um primarismo constrangedor. Valendo-se de formulações
desastradas, escreveu:
não tenho jeito, a não ser
o jeito de ser sem jeito,
em Toadas de Cambaio (1959); ou então,
em Mormaço na Floresta (1981):
sei que sou porque já fui
quando for no que serei.
Outro exemplo, o livro Horóscopo Para
os Que Estão Vivos (1966), em que dedica poemas para os doze signos
zodiacais, é ainda mais escandaloso. Os versos
Mas é desgraça demasiada
para tão pouco horóscopo
soam como necessária autocrítica.
É preciso recordar que a literatura
engajada, àquela época, procurava soluções "populares", que dessem
finalidade aos diversos textos, com base tanto na realidade
nordestina quanto nas apostilas de Gramsci. Ferreira Gullar escrevia
romances de cordel; Moacyr Félix compunha longos cantos e editava
cadernos de poesia que registravam o inconformismo com a ditadura
militar e o imperialismo norte-americano. Morte e Vida Severina
(1955), de João Cabral, conhecia fama cada vez maior - e é, ao que
conste, o melhor resultado de literatura engajada que se fez no
Brasil.
Thiago de Mello, por sua vez, procurou
dar um sentido político às tentativas de solidariedade que marcavam
sua poesia, proclamando a igualdade das classes. Assim, escreveu:
Camponês, plantas o grão
no escuro - e nasce um clarão.
Quero chamar-te de irmão.
("Cantiga de Claridão")
um tanto à maneira de Moacyr Félix,
que escreveu com a mesma
fraternidade manual em "A Mão Que Estendo":
Estendo a mão ao soldado
e pergunto por que não.
Ele é um homem como eu,
posso chamá-lo de irmão. (1)
Essa poesia de mãos dadas é um
testemunho de época, certamente, mas é também, no caso de Thiago de
Mello, um sinal a mais: o da crença na comunhão cristã.
O encontro do engajamento e do
cristianismo, em sua poesia, é marcado pela crença no valor
missionário da literatura. Sua dicção cristã é confusa, e em Num
Campo de Margaridas ele expõe a plenitude de sua ambigüidade
teológica:
Se de Deus me despedir,
Jesus foi quem me ficou.
("Jesus Comigo")
Sem estar jamais livre da formação
religiosa que recebeu, Thiago de Mello supõe ter perdido a
metafísica cristã, resgatando tão-somente as idéias libertárias de
seu maior ideólogo. Isso, é claro, não se afasta das insistentes
oposições que têm lugar em sua poesia - mas atestam também uma falsa
questão. Pelo menos é o que se conclui de poemas em que se refere ao
erotismo. Para Thiago de Mello, o encontro erótico é uma experiência
teológica. Em seu livro mais recente, o terceto
Te amar (estremeço)
me leva perto de Deus.
De repente O Mereço.
é o arremate perfeito dessa visão. À diferença de Moacyr Félix,
companheiro de geração e de lutas, que preferia o erotismo no plano
das relações humanas, Thiago de Mello demonstra uma evidente falta
de vigor: seu devaneio místico é até mesmo inesperado - mas só não
surpreende porque, ao mesmo tempo, é tedioso.
No Brasil, a sua poesia é uma das que
mais se aproximou do texto discursivo, e é lícito afirmar que,
desejando ser poeta, ele é quase sempre um prosador. A distinção é
necessária por vários motivos. Inicialmente, porque retrata a mania
quase obrigatória dos poemas políticos, que é a grande extensão. A
musicalidade também se compromete, e por fim a expressão poética se
reduz ao quase nada. O que confirma uma fecunda distinção de
Jean-Paul Sartre acerca da natureza do poeta e do prosador: em Qu'Est-ce
Que la Littérature? (1948), o escritor francês filia a poesia mais
propriamente à pintura, à escultura e à música, definindo o poeta
como um ser que se recusa a utilizar a linguagem, já que ela é uma
estrutura do mundo exterior(2). A tentativa de Thiago de Mello de
harmonizar suas intenções com a matéria da poesia abriu, como é
evidente, a via de um fracasso.
Considere-se, por exemplo, os versos
de abertura de "É Preciso Fazer Alguma Coisa", do livro Poesia
Comprometida com a Minha e a Tua Vida (1975):
Escrevo esta canção porque é preciso.
Se não a escrevo, falho com o pacto
que tenho abertamente com a vida.
A abertura é quase comovente, mas
acusa um procedimento típico de sua poesia: a ansiedade em escrever,
mesmo quando o que está em jogo não é o texto literário. O resultado
é a "coisa": versos que tentam sensibilizar mais pela justeza da
causa do que pela natureza da matéria poética.
Sem prever qualquer convulsão social
para o Brasil de nossos dias, Num Campo de Margaridas é a prova de
uma desilusão política e, ao que parece, de um engajamento
individual e solitário. É um livro que destrói o sujeito plural que
Thiago de Mello tanto proclamava. É um caminho: mesmo porque ninguém
sabe em que medida a poesia engajada (já que esta é a sua função
declarada) serviu de fato ao País. Certos vícios parecem renitentes:
acreditem ou não, mas nesse livro Thiago de Mello escreveu
tenho uma canoa que se chama Liberdade
- embarcando a poesia numa canoa
furada. Pois nenhuma liberdade justifica a má poesia. Se, com o
recente livro, ele estiver mesmo decidido a transferir o engajamento
para a sua real solidão, é certo que, aí sim, será possível alguma
alvorada. Apesar do próprio Thiago de Mello, ainda é tempo.
Notas:
(*) Suplemento Idéias, Jornal do Brasil, 27.12.1986
(1) Encontros com a Civilização Brasileira, no1, p.125.
(2) O desenvolvimento dessas idéias se encontra no primeiro
capítulo, "Qu'est-ce qu'écrire?"
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