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Felipe Fortuna


 


Parques, Praças e Jardins

(Jornal do Brasil, sábado, 06.05.2006)

 

 

Por aqui a primavera tem sido falada com muito entusiasmo. A primavera é como um alívio para o atleta, um copo d’água para o sedento e – para todos – uma luz na escuridão. Garanto que, até a sua chegada, foram mais de quatro meses de frio e de vento. Cada um de nós lia as ameaças sobre o aquecimento global com uma pitada de inveja, ávidos para que a catástrofe também nos atingisse logo. A senhora Talbott, minha vizinha, tentou consultar-me no elevador sobre o significado do efeito estufa, como se se tratasse de um produto a ser importado. Dei-lhe uma resposta incompleta não só porque saí no segundo andar, mas também porque vinha da rua e me apressava para entrar em casa, onde a temperatura é ambiente e o ambiente é tropical. “O efeito estufa, minha senhora, está adiado para os próximos Jogos Olímpicos” – foi a minha última frase, e a porta se fechou.

Agora as flores se abrem, ouve-se muito o maravilhoso verbo to bloom (florescer) ser conjugado de várias maneiras, especialmente no present continuous, como se fosse uma longa explosão de cores e de aromas. Que maravilha se os tempos desse verbo, com sua gorda sonoridade, continuassem todo o tempo! E agora também surge aquilo que Londres tem de melhor – seus parques, suas praças, seus recantos e seus jardins. Aqui ao lado o Hyde Park oferece novas folhas e novas paletas, à procura de um artista que deseje reinventar o fauvismo. Ao norte avisto o Regent’s Park com o seu pequeno lago, agora a exibir os pequenos patos e os pequenos cisnes que fazem o anúncio vital do mês de abril. Tudo parece nascer. E nasce pequeno, insisto, porque a vida não se impõe com força de uma hora para outra, mas com delicadeza. Cruzo uma ponte sobre o Tâmisa e chego a Battersea, outro parque, outras descobertas. Estou agora no sul, mas sei que no leste encontrarei Victoria Park, e em cada ponto cardeal haverá um parque nessa cidade à espera das pessoas que, em atitude humilde, querem apenas tirar os sapatos, sentar ou deitar na grama e olhar.

Falo dos prazeres públicos desses parques abertos a todos, dia e noite. Mas há também prazeres reclusos e reservados como o das praças londrinas que servem somente aos seus moradores. Cercadas por grades altas, bem tratadas por jardineiros fiéis, tão centenárias quanto tudo o mais na cidade, essas praças são chamadas de communal gardens – jardins comunitários nos quais só entram os moradores munidos de uma chave. Comunitários, sim, mas um tanto exclusivos: fazem parte da paisagem ambiental e – sobretudo – da paisagem social de Londres, com sua obsessão pela divisão de classes. Criam no cidadão desprovido do direito de entrar a sensação de que o paraíso está bem ali, bastando saltar para dentro. Muitos dos que viram Notting Hill hão de lembrar quando Julia Roberts e Hugh Grant, na calada da noite, conseguiram transpor os altos limites de uma praça do bairro. A atriz americana (no papel de atriz americana) foi quem teve a idéia de partir para a pequena infração, atraindo o namorado e convencendo-o a também pular. Já o ator inglês (no papel de namorado inglês) relutou antes de cometer desajeitadamente a mesma falta, talvez acossado por fantasmas vitorianos e por um senso de educação intransferível. Uma vez lá dentro, porém, sugere-se que viveram em idílio – confirmado na cena final do filme, quando a atriz americana está grávida e sua cabeça repousa no colo do marido que lê na mesma praça, talvez, onde cometeram o pecado original.

Como a de muitas pessoas, a minha vida em Londres está marcada pelos jardins comunitários. Aqui do meu lado esquerdo, enquanto escrevo, vejo o gramado e as árvores altíssimas de Bryanston Square. “São plátanos”, me disse outro dia a mesma senhora Talbott, especialista em botânica, como de praxe entre os que nascem aqui. E a palavra inglesa para plátano – plane – rapidamente me transmite uma confusão lingüística, quando começo a pensar na plaina do carpinteiro e em avião. A primavera é assim mesmo, muito numerosa. E dentro da praça instalaram bancos de madeiras que ostentam placas de metal com os nomes daqueles que já se foram, mas amavam passar o tempo nela. Para os britânicos, a primavera é delightful, deliciosa e desfrutável.

Há dez anos, eu morei na praça ao lado, Montagu Square, mais estreita, onde em algum momento foi possível colher cogumelos. Se o turista estiver interessado em conhecer por onde estiveram os Beatles nessa cidade, terá de ir aos sábados à mesma praça, e um guia apontará a casa que, numa noite de 1968, foi invadida pela polícia, que prendeu John Lennon e sua mulher por porte de drogas. A praça, no entanto, está mais associada ao ambiente primaveril: guardo comigo um livro que conta a história da sua construção e traz uma lista dos jardineiros que lá trabalharam, desde 1850!

Covent Garden é principalmente uma praça, antes de ser lugar da ópera. Mas Leicester Square é mesmo uma praça para os cinéfilos e para a perambulação mais relaxada, um pouco à maneira da Cinelândia de décadas atrás. Na maioria dos parques, contudo, se encontra aquele sonho – um jardim florido – do qual Nelson Rodrigues havia sido destituído, como lemos, por causa da preferência de Burle Marx por plantas e folhas. Londres, e não a Aldeia Campista, seria o verdadeiro paraíso do cronista.

Mas nem tudo são flores: o poeta já havia escrito que “abril é o mais cruel dos meses”, e eu confirmei o seu diagnóstico quando li nos jornais que haviam encontrado no país o primeiro cisne morto pela gripe aviária. A primavera mal começou, ainda sentimos frio, e desde já nos atinge a notícia mais invernal. Maio será melhor.

 

 

 


 

11/05/2006