Flávio R. Kothe
A vara da família
Família tem vara. Serve para dar uma
surra no homem como se fosse um neguinho fugido: a vara da família é
um pelourinho secreto, em pleno funcionamento. É o local onde se
capa o varão, enfiando-lhe o tarugo no traseiro, sem perguntar se
ele queria ou não. Era isso que eu estava tendo de aprender, com a
bunda no tribunal da Vara da Família, tudo em maiúsculas para
assinalar o poderio vestindo o manto de santidade das letras
maiores, como mais alto estava assentado o travesti que era o juiz
que me julgava como se eu não pudesse julgá-lo. Chamava-se Ávila e
Souza, um Carlos qualquer coisa, ou algo parecido, mas me bastava
aquele senhor togado que havia me expulso da minha vila sem sequer
me escutar: ele não só me bastava, como já me era até demais. Não
cabíamos os dois na mesma vila, e tínhamos de caber na mesma sala.
Eu estava diante do juiz como um
idiota diante da cruz. Atrás do juiz estava a cruz, para consagrar a
crucificação que de mim, pobre varão, estava sendo feita nessa vara.
A pretexto de crucificar um deus, a humanidade se vira crucificada
por dois mil anos sem conseguir se enxergar e, por isso, também sem
condições de apear da cruz. Mas eu também não podia apear da dupla
vara em que me via atravessado: afinal, com dois filhos fora do
casamento, eu era comprovadamente um “adúltero”. Eu havia sido
acusado por minha esposa quando tentara alterar isso, ao descobrir
que o adultério era melhor que o casamento.
De fato, quem antes havia se
adulterado era a minha esposa. Não que ela tivesse dormido com outro
homem: ela simplesmente tinha deixado de dormir comigo há sete anos.
Ela me comunicara essa decisão, eu não tinha entendido nada e ficado
fulo da vida: talvez fosse a menopausa, talvez o distúrbio da
tireóide, talvez o meu ronco, talvez a laqueadura: perdido em tanto
talvez, eu não chegara à certeza de que ela não me amava.
Continuamos morando na mesma casa, tínhamos filhos para criar e eu
havia me jurado, em crise anterior, que eu iria criá-los.
Como eu não estava morto, acabei
encontrando quem me quisesse e me amasse. Longe de quaisquer planos,
nasceram dois filhos em três anos. Eu os reconheci em cartório e
dei-lhes ajuda. Disso eu estava sendo acusado. Era o meu crime: não
ter matado, mas ter gerado duas vidas. Nos autos do processo, eu era
“o réu”. Na virada do ano, eu havia dito à minha esposa que eu
queria ter o direito de visitar esses filhos menores, que ela sabia
que existiam. Ela disse que ia pensar. Enquanto eu lhe dava tempo
para pensar, ela fez denúncias contra mim na polícia e entrou na
Justiça com uma ação de separação e outra de separação de corpos.
Eu, como marido, tinha sido o último a saber. Só comecei a
desconfiar quando fui chamado à Delegação para depor como altamente
suspeito.
Esse juiz à minha frente não havia me
escutado. Antes de escrever um despacho apressado, ele poderia ter
me chamado: em meia hora eu estaria com ele para explicar o que
ocorria na “intimidade do lar”. Não, ele não havia me escutado.
Apenas havia ordenado, num despacho de duas linhas, que eu fosse
“citado e afastado do lar”. Esse lar era uma lareira. Ele tinha me
tocado para fora da casa que eu construíra com o meu dinheiro e com
o meu esforço, a casa que era o local não só onde eu dormia e comia,
mas em que estava o meu escritório, a minha biblioteca, o meu local
de trabalho. Ele me impedira de trabalhar, sem se dar ao serviço de
me escutar.
Como minha querida esposa havia já
trancado os portões e trocada as fechaduras dez dias antes de o juiz
tomar qualquer decisão, eu me vira no olho da rua, sem residência
fixa e sem local de trabalho, sendo procurado por um oficial da
justiça como se eu fosse um criminoso. O desgraçado daquele juiz
jamais me indenizaria pelos prejuízos morais e matérias que estava
me causando. Sentado em cima de um pedaço de papel, achava que fazer
justiça era aplicar a lei. Ora, a lei existe para que justiça não
seja feita. Afinal, a lei representa os interesses dos mais fortes e
mais ricos, para que eles possam continuar explorando a massa da
população, não apenas lhe roubando uma parte diária do trabalho, sem
pagar por isso, como lhe cobrando mais pelas mercadorias do que elas
realmente valem.
O juiz estava, porém, sentado num
patamar superior, e eu estava obrigado a ficar sentado num plano
inferior, como se ele fosse um deus e eu apenas um verme. O solene
carrasco era tudo; eu era nada. Pior que nada, eu era um “réu”:
sentia que estava levando na ré. Assim constava, assim ficaria
registrado. Fiquei olhando para o juiz, com vontade de dizer o que
pensava, mas sabia que juiz não quer se deixar julgar. Se fosse, ele
logo seria meu réu. Eu era, porém, covarde demais para dizer o que
pensava; eu era, aliás, covarde demais até para pensar. Estava aí
como um palerma, dopado com calmantes para agüentar a tortura.
Eu não estava aí discutindo se algum
juiz era corrupto, ou, conforme se dizia, a maioria dos juízes já
estava sendo formada por corruptos, sendo o juiz honesto uma espécie
em extinção, uma minoria cada vez menor. Eu não estava discutindo
propinas e privilégios. Nem mesmo eu discutia o seu salário de
quinze ou vinte mil, muitas vezes mais do que deveriam na ativa e na
aposentadoria. Não, o meu problema básico não era esse. O juiz
honesto era o pior, pois acreditava na lei. Não questionava a origem
da lei, as forças e os interesses que haviam ditado seu texto. Era
um burro togado. Mas quem se ferraria se falasse seria eu. Eu era o
burro maior. Estava aí para levar a marca da ferradura na bunda.
O juiz Ávila, ou Villa ou Pancho Villa,
havia apenas escutado um lado, a esposa da qual eu decidira me
separar porque não conseguia mais agüentar os ataques que ela vinha
me fazendo há anos. No último ano a situação havia piorado: os
ataques haviam se tornado diários e cada vez mais violentos. Ela
havia ido duas vezes à polícia me denunciar por maus tratos.
Doutrinada por um esperto rábula, havia usado uma colher para bater,
com a parte côncava, no próprio rosto: não doía muito dar dezenas de
batidinhas nas maçãs do rosto: no dia seguinte, elas estavam cheias
de hematomas rubros e roxos. Ela havia ido à Delegacia da Mulher e
me denunciado como agressor. Poderia ter sido pior: um amigo
psicanalista tinha uma cliente que havia quebrado três dentes e
outra que havia se furado com faca. A minha até que havia sido
condescendente comigo enquanto eu dormia.
Eu não havia batido na minha querida
esposa. Apenas havia comunicado que não queria mais continuar aquele
casamento ruim e que pretendia cuidar mais da criação dos filhos que
tivera fora. Não estava sequer certo que eu iria morar com a mãe
deles. Eu queria primeiro sair daquela prisão e tortura que havia se
tornado o casamento. Minha querida esposa, embora tivesse feito tudo
o que podia para me convencer de que merecia levar uma surra, não
havia sido surrada por mim. E, pela surra que eu não havia dado, eu
havia sido denunciado na Delegacia e expulso da minha casa.
Eu até merecia uma surra por não ter
surrado. Mas isso, hoje, homem que é homem não faz. Não se fazem
mais homens como antigamente. O movimento feminista havia conseguido
duas coisas: masculinizar a mulher e efeminar o homem. Eu era um
veadinho e não sabia. Achava que era homem, e não era. E nem podia
ser na frente de um juiz que podia me mandar por desacato à
autoridade assim que eu lhe dissesse o que pensava da prepotência
legalizada que ele havia exercido sobre mim.
Não, não era uma balança a Justiça que
esse juiz representava. Não era nem mesmo uma balança moderna,
digital. A antiga balança da Justiça tinha dois braços e dois
pratos: sempre quisera dizer que pesava mais quem podia colocar mais
moedas nela, mas deveria significar que os dois lados seriam
ouvidos, os argumentos dos dois lados seriam sopesados. Só que eu
não havia sido escutado. Eu não era uma exceção, mas a regra: os
juízes sempre expulsavam o homem da casa assim como nunca davam a
guarda dos filhos ao pai. Pensavam ser os garanhões das pobres
mulheres desamparadas.
Eles acreditavam estar fazendo justiça
assim. Davam uma porretada na pinha do homem, e diziam estar
exercendo a justiça. Os homens têm fama de ser violentos — e há
alguns remanescentes de uma raça extinta que ainda são —, mas a
grande maldade é feita mais pelas mulheres. Elas não são as pobres
submissas, humildes, a sofrer as truculências dos machões maldosos:
elas planejam a maldade, de um modo sutil e sistemático, fingem ser
perseguidas enquanto mais perseguem, fingem estar sendo massacradas
enquanto torturam com requintes ditos chineses mas que são
patrimônio de toda a humanidade. E pior: são auxiliadas por homens
para fazer isso. Pior ainda: esses homens acreditam estar defendendo
a parte mais fraca.
Se eu a tivesse feito morrer, minha
querida esposa teria sido uma simples aplicação da lei de Talião, já
que ela, sabendo que eu sofria de pressão alta, ficava me
azucrinando a paciência, dia e noite, alternando isso com horas
ainda mais cruéis de simpatia e ternura, para depois poder me atacar
melhor: quando a pressão estava lá em cima, ela vinha contra mim com
mais ataques. Parecia um exército inimigo, e era apenas uma saia
recheada. Eu não era uma fortaleza sitiada, com buracos nas
muralhas: eu era apenas um fraco. Não dormia com a inimiga, mas só
porque a inimiga não dormia comigo. A crueldade dela era uma forma
de piedade, que eu não entendia: em vez de me alegrar, ficara
infeliz. Eu era um idiota, mas havia quem me considerasse
inteligente. Quanto mais idiota eu estava sendo, mais esperto me
achava. Não me considerar esperto não me tornava mais inteligente.
O sonho da minha esposa era se tornar
minha viúva. Isso resolveria de uma só vez todos os seus problemas:
ficaria com tudo e não precisaria repartir nada. Isso teria
resolvido também os meus problemas e eu nem sequer teria precisado
passar por nenhuma dessas humilhações, perdas e desonras que estava
passando. Como perfeito idiota e marido que é o último a saber, eu
não havia conseguido entender equação tão simples: demorara demais a
deixar cair a ficha em minha mente. Eu era cego porque não queria
ver o que não gostaria.
A minha desinteligência mentia demais
para mim: há vinte anos viera me mentindo que aquela doce vampira me
amava, só porque ficava sugando o sangue do meu pescoço. Ela era
casada com o meu contracheque. Fingia trabalhar para melhor ficar
longe de mim: e eu acreditava que ela era uma profissional esforçada
e competente. A única paixão dela por mim era a minha conta
bancária. O amor dela era do tamanho das cifras nos cheques e nas
contas dos cartões. Por ambas razões, era pouco. Mas repartíamos
meio a meio todas as contas da casa: ela pagava as pequenas, eu
pagava as grandes. Ela divulgava o que pagava; eu calava. Ela se
dizia vítima do tirano; eu não era tirano e não tinha valentia.
Eu, o idiota, merecia o idiota que
tinha pela frente como juiz: nós dois tínhamos sido passados para
trás por uma pobre mulher, que só queria sair daí menos pobre e
usava nós dois para isso: eu permitira ser usado; mas ele me
obrigava a ser usado, quando eu não queria mais me deixar usar. Nós
dois nos merecíamos, só que ele era pago para me punir, enquanto eu
pagava por ter confiado em quem não podia ter confiado. Eu era
culpado do que não fizera. Minha culpa real era não ter feito o que
devia. Tinha de aprender que tudo o que fizera pensando ser certo,
havia sido errado; e tudo o que parecia ser o mais errado, havia
sido o mais certo.
O erro meu havia sido duplo: eu devia
ter feito menos o certo e ter feito mais o errado. Eu era um idiota
ao quadrado, um quadrado idiota: estranha figura de geometria. Ao
fazer o certo, ajudando a esposa e os filhos dela, havia errado; ao
ter uma amante e ser adúltero, havia feito o que podia me garantir
uma nova vida. Os filhos fora do casamento eram considerados nos
autos como “uma triste realidade”. Essa “triste realidade” eram dois
belos meninos, que tinham direito à vida, mas que não deveriam
existir em nome da virtude. Que virtude era essa, porém, que era
contra a vida? Eu estava sendo punido por ter gerado a vida, era
acusado de ter perigado a vida de quem quisera durante meses acabar
comigo.
Sim, durante anos minha esposa havia
gostado muito de mim, especialmente quando eu lhe dava presentes:
ela me fazia ficar orgulhoso disso, e eu me sentia o tal. E
reclamava da minha falta de amor quando os presentes faltavam. Tudo
o que eu dava, porém, era insuficiente. Havia sempre um infinito a
mais para dar. O céu era inalcançável. Mesmo que eu fosse Onássis,
teria de adorar Onan, pois nada bastaria para quem tudo queria.
Onássis eu não era, e Onan era um deus da adolescência, traído e
abandonado.
Agora, na separação, tudo o que de mim
fosse tirado seria pouco diante da sede infinita de vingança da
minha esposa “traída e enganada”. Ela queria tudo, e mais um pouco:
a minha morte. A minha morte, mas acompanhada por minha ressurreição
ao terceiro dia, para que ela pudesse me matar de novo. Assim, não
havia Cristo que agüentasse. Até o próprio tinha decidido passar por
tudo apenas uma vez, embora os padres pretendam matá- de novo a cada
dia.
Por mais que eu tivesse me matado de
tanto trabalhar, a desgraça era que eu não havia morrido. Que eu
então sobrevivesse só havia sido bom porque no mês seguinte eu
poderia dar mais alguma coisa. E daria, como quem pede clemência por
mais um mês. Havia uma vampira a me sugar, e eu não sabia: pensava
que era amado. Eu era um idiota, e não sabia; era explorado, e
imaginava que era amado. Estava doido, e não sabia. Devia estar num
hospício, e andava solto pelas ruas. Pensava que eu tinha uma
família, e a família que eu tinha não era. A família que não era,
era a única família que eu tinha.
Quando o juiz se dirigiu a mim, fiquei
olhando para ele com um leve sorriso nos lábios. Ele achou que eu
estava sendo simpático. Não sabia que eu havia me dopado antes de
comparecer àquela sessão de tortura psíquica chamada audiência. Eu
estava disposto a fazer qualquer concessão, desde que me livrasse
daquela mulher. Era com isso que toda mulher contava: fingia-se de
louca e infernizava a vida do homem, para ter depois uma vida
paradisíaca como tudo o que assim conseguia arrancar dele.
Em geral os homens achavam que “a paz
não tem preço”: pelados de tudo, sentiam-se felizes por ficarem sem
nada. Eles montavam o “patrimônio familiar” com o seu duro trabalho
de anos e anos, para acabarem sendo sugados até o último tostão. As
mulheres saíam rindo da audiência e esfregando as mãos; os homens
demoravam uma semana para entender que haviam feito concessões
demais, desnecessárias e absurdas, só para recobrar a paz e a
tranqüilidade, que eram um direito que eles haviam desaprendido a
ter em anos de conflitos domésticos.
Se Justiça na Vara da Família era
enfiar a vara no rabo do homem, em nome da proteção à família ou da
eqüidade de defender a parte mais fraca, a pobre mulher, já não
adiantava mais sequer o homem não casar com a mulher: bastava
segurar a mão e ficar um dia num quarto com ela, que já tinha
entregue metade do patrimônio. O matrimônio era um modo de o
patrimônio do pater ser tomado pela mater. Os antigos romanos não
haviam sido tão burros quanto os homens modernos
Aquele juiz acreditava que estava
fazendo justiça. Eu não acreditava em justiça divina, mas também não
conseguia acreditar na justiça humana, a não ser que ela me desse
pleno ganho de causa. Mas então eu não estava acreditando na
justiça, e sim apenas em minha vantagem pessoal. Eu seria tão
hipócrita quanto ela se não reconhecesse isso. Como eu já tinha
começado perdendo, não podia esperar nada de bom num jogo em que o
adversário vinha com três gols de vantagem e eu não tinha nenhum
Pelé advocatício do meu lado, mas apenas a assistente e carregadora
de pasta do advogado que me comera dez mil para não comparecer
sequer a audiência principal.
O juiz tinha pressa em julgar. Queria
decidir a minha vida inteira em quinze minutos, sem sequer me
escutar direito. Parecia querer desmentir o dito de que “justiça
tarda, mas não falha”, fazendo com que ela se apressasse. Ora, a
justiça que tarda também já falhou: de que adianta um operário
demitido ser readmitido depois de quinze anos de processo? Ele tem
de morrer de fome esperando? Vai jogar fora a vida que reorganizou
só para retomar o emprego que lhe foi devolvido? Em suma, ganhando,
ele sempre já perdia.
No sorriso em meus lábios, o juiz não
lia o que eu pensava. A justiça, se fosse justa, teria de primeiro
reconhecer que ela sempre faz injustiça. Nunca se compensa nada.
Todo prejuízo que se causa é um prejuízo que fica. A compensação que
se paga não compensa nada essencial, nada repara.
Eu estava vendo que eu havia me
prejudicado ao querer fazer o bem, ao amar os meus filhos e ser útil
à minha esposa. Com que direito eu havia sido bom para os outros
sendo mau para mim mesmo? Eu não tinha o direito de ser mau comigo,
mas havia sido ao querer fazer o bem. Se eu tivesse sido mais
maldoso com minha esposa, eu teria sido melhor comigo, melhor para
mim. Com que direito a virtude exigia de mim que eu me prejudicasse
para ser virtuoso?
A minha esposa — agora quase ex-mulher
— não era grata por tudo quanto eu fizera por ela. Pelo contrário,
quanto mais eu fizera, mais ela se sentia prejudicada por eu não
estar mais disposto a continuar fazendo tudo por ela. Os meus filhos
não eram gratos: sentiam-se traídos por eu ter outros filhos, com os
quais teriam de repartir a herança, por menor que ela fosse. Eles
nunca haviam me amado: apenas haviam me sugado.
Quanto mais dívida se tem com alguém,
tanto mais se quer que o credor morra e desaparece. Ao invés da
gratidão infinita, a grande ajuda despertava o rancor infinito, pois
havia um crédito impagável: quanto maior a dívida, menos o devedor
estava disposto a reconhecê-la como tal. E a Justiça dos homens
estava aí para acabar com essa dívida e fazer do devedor um credor
de ainda mais créditos. Fazia-se Justiça para fazer ainda mais
injustiça. Era engraçado, mas quem chorava era eu.
Continuei olhando para o juiz enquanto
ele perguntava à minha quase ex-mulher se ela pretendia manter o
pedido de separação e ela respondia que sim, dispensando-me ele de
responder à pergunta se eu queria me separar. Minha mãe dizia que,
quando um boi não quer, outro não briga: assim ela havia passado a
vida levando marradas de meu pai, achando que apanhar era bom, pois
Cristo também havia sido humilhado e ofendido.
Que eu era um capado, isso eu já
sabia, pois se fosse homem como o meu bisavô teria corrido aquela
mulher a relho para longe do terreiro. Como já não se fazem mais
homens como antigamente e como as mulheres se tornaram os homens que
os homens já não são mais, eu estava aí, feito um tourinho amarrado
no potreiro, para que as minhas clicas terminassem de ser extraídas
e depois eu ainda fosse ferrado com a marca da justiça. Eu estava
sendo capado, havia me anestesiado com um calmante e estava disposto
a que fizessem comigo o que quer que quisessem.
Eu tinha contratado um advogado,
Geraldo Adalberto Zefa Carneiro, que me cobrara dez mil só como
adiantamento para pegar a causa: com menos de 24 horas para
contestar as acusações, eu não tivera alternativa senão pagar. Com o
dinheiro no bolso, ele havia repassado o caso para uma assistente:
não havia comparecido aos encontros marcados na sua banca, não havia
entrado em contato com o advogado da minha inimiga, não estava ao
meu lado na audiência. Como a minha advogadazinha não estava aí para
me defender, e sim para fazer um acordo amigável a qualquer preço (o
preço que eu teria de pagar) e tão rápido quanto possível, eu estava
ao mesmo tempo só e mal acompanhado. Eu não havia ainda entendido a
lógica da advocacia: arrancar o máximo possível do cliente fazendo o
mínimo necessário. A minimização desse mínimo levava à maximização
do lucro. Eu estava feito um peixe na rede: quanto mais esperneasse,
mais preso ficaria.
Eu era uma ilha cercada de inimigos
por todos os lados, mas o meu principal inimigo estava dentro de
mim: a minha covardia. Eu a chamava de prudência. A prudência
recomendava um acordo: por pior que fosse, seria melhor que um bom
litígio. Só que minha querida esposa, do outro lado da mesa, contava
com isso. Ela sabia que eu era um idiota, mais ainda quando me
achava esperto: por isso, ela sempre se fizera de boba, para sempre
levar vantagem. Não havia conciliação entre os sexos: a guerra era a
sua lei maior. Eu não tinha no juiz homem uma garantia de mínima
solidariedade, mas também não teria se fosse uma mulher.
Passei a me odiar antes mesmo de fazer
qualquer coisa errada. Assim facilitei os erros que vieram a seguir.
Se eu tivesse peitado o juiz, negando-me a ser julgado por ele, já
que ele havia sido parcial, partidário e injusto na decisão de me
expulsar de casa, ele poderia ter me mandado prender, ou poderia
tomar uma decisão que me prejudicasse ainda mais. A covardia era uma
necessidade. Mas dava raiva.
Se eu tivesse interrompido a fala
separatória do juiz e dito aquela mulher à minha frente havia me
azucrinado a paciência durante anos e que nos últimos meses havia
tentado me matar com o expediente simples de me deixar tenso para
que a minha pressão aumentasse e, quando estava alta, continuasse a
me atacar com palavras que babavam veneno, eu teria sido duas vezes
ridículo. Podia ser verdade, mas não valia. Eu não era do tipo que
iria contar uma coisa dessas na delegacia, mas a mulher era capaz de
ir contar o que nem sequer acontecera, mandar escrever e depois
assinar, formando um “fato policial” que obrigava o juiz a tomar
medidas urgentes no sentido da separação de corpos que já estavam
separados por almas em guerra. A balança do juiz só tinha um braço,
que era um porrete e não tinha prato, mas podia ter uma cama.
O princípio de igualdade deveria
reconhecer primeiro a desigualdade do desigual e não igualar o
desigual, mas o desse juiz não reconhecia a igualdade quando se
tratava de ouvir as duas partes antes de decidir pela expulsão do
homem da sua casa como se não existisse telefone, carro ou internet.
Ele só reconhecia a desigualdade do desigual dentro do preconceito
de que a mulher é fraca e indefesa, mesmo quando agride e tenta
matar sutilmente: a pretexto de defender a parte supostamente mais
fraca, enfraquecia a parte supostamente mais forte. Fazia do homem
um enfraquecido, e da mulher uma fortalecida, antes mesmo de saber
se havia mérito no que o homem teria a dizer em sua defesa. Havia aí
dois pesos e duas medidas. Ou pior: um pesado porrete contra o homem
conforme as medidas da mulher.
Olhei o Cristo atrás do juiz. Pregado
na parede, Cristo vestido de atleta antigo, e não pelado como os
romanos costumavam crucificar as pessoas. Seria estranho um deus com
a pingola de fora, balançando ao vento. Um deus como romano algum
admitiria um deus. Para ele, um deus precisaria ter dignidade, e não
fazer da suprema humilhação o máximo da virtude. Eu tinha quase
certeza de que aquele juiz, como todos os outros da sua casta,
acreditavam na igualdade (para manter a desigualdade social) porque
estava escrita em seus livrinhos, mas ela estava inscrita nos seus
livrinhos não para ser tornada real por quem tinha uma salário de
mais de cinqüenta trabalhadores (como se cada um sozinho valesse
cinqüenta), e sim porque ele acreditava haver uma vontade divina a
ditar essa igualdade.
Sim, aquele atleta antigo todo
estropiado, a igualar na horizontal o que ele desigualava na
vertical da cruz, ou a desigualar na vertical o que ele fingia
igualar na horizontal, devia ditar a esse juiz a injustiça que ele
vinha praticando em nome de um princípio de justiça. Esse juiz devia
acreditar que todos os homens são filhos de Deus. Talvez acreditasse
até que todos são irmãos em Cristo. “São”, e não “supostamente
seriam”. Ele estava louco, e não sabia. Tinha passado no exame de
sanidade, que condenaria à insanidade quem tivesse um mínimo de
sanidade mental, deixando de acreditar em ficções como se fossem
realidades, em fantasmas como se fossem corpos vivos.
De que adiantaria discutir aí, naquele
tribunal, naquele momento, com aquele juiz, se Sófocles teria estado
certo ao dar um outro fundamento ao “princípio de igualdade”: a
fraqueza de todos os homens diante da doença e da morte. Cinco
séculos antes de Cristo. Esse juiz provavelmente nem sequer
conseguiria identificar em que obra o velho Sófocles teria tratado
disso. E não seria eu quem iria contar-lhe isso, que não me dava
nenhuma superioridade prática, mas me daria mais uma inferioridade
se eu fosse contar. A loucura poderia atingir qualquer um, mas o
louco podia estar mais certo do que os que se consideravam sãos.
Isso o jovem dramaturgo antigo não havia entendido.
De fato, os humanos não são iguais
diante da doença e da morte: há alguns que são fortes; a maioria é
fraca. Do morto não se pode exigir nenhuma igualdade. Os homens não
são iguais na morte. Nunca foram. Milhares foram sacrificados para
que um fosse rememorado. Milhões continuam sendo esquecidos, raros
são os que continuam sendo lembrados depois de mortos, a maioria
pelos motivos mais errados. Não há sossego para os mortos. Os
túmulos dos meus antepassados haviam sido violentados tanto na
Silésia quanto no Sul do Brasil. Prepotência e intolerância davam-se
as mãos e tornavam difícil a sobrevivência.
Não, não, que igualdade era essa que
se baseava na fraqueza? Ao menos ela não pretendia se basear numa
fraqueza, como acreditar em Deus e na alma imortal, mas que pretende
ser um princípio de força. Supor que a igualdade dos seres humanos
estaria na racionalidade, como propusera o velho Aristóteles,
acabaria excluindo da humanidade a maioria dos seres ditos humanos.
Todos aqueles em que a fé preponderava sobre a dúvida racional e
crítica não poderiam ser humanos, estariam condenados ao inferno da
animalidade, ainda que se considerassem os únicos salvos. Mas de que
adiantaria tentar convencê-los disso ou de qualquer outra coisa? Se
arte fosse mimese, como queria o velho Estagirita, e se a imitação
fosse própria do homem, então o polvo e o camaleão seriam humanos e
artistas. Quanta bobagem palraram os clássicos!
Pensando tanta bobagem, é óbvio que eu
não estava prestando grande atenção ao que parlamentava o togado
senhor à minha direita, no alto de sua sapiência e onipotência.
Prestei atenção quando ele disse que eu tinha de entregar o piano de
cauda à minha esposa. Ousei observar que ela não tocava piano, não
sabia uma nota, e que eu tocava naquele piano a cada dia, que eu
gostava muito dele e queria preservá-lo. Não ousei dizer que o amava
como se fosse uma pessoa, ou mesmo que eu o amava mais do que amaria
a maioria das pessoas, pois isso já me pareceu bichice demais para a
ocasião.
Eu poderia dizer que tocar naquele
piano havia salvo a minha vida nos últimos dez anos, e que era
aquele piano e não outro que me havia permitido ao final do dia
rearmonizar a alma, controlando inclusive a pressão sangüínea, que
estava a 16 e 17 desde que eu havia sido impedido de tocar nele pela
assim chamada Justiça. Não, o togado juiz não queria saber desse
amor por um piano, quando declarei que eu queria conservá-lo comigo.
Ele tinha em mãos os orçamentos dos nossos imóveis que minha querida
esposa havia encomendado e que, obviamente, faziam com que o valor
da casa fosse mais de cem mil reais mais caro do que a soma dos
nossos dois apartamentos, que eu propusera que ficassem com ela. Já
que a minha grande advogada continuava calada como uma porta, eu
disse que tinha orçamentos comigo que mostravam que o valor dos
apartamentos era igual ao da casa, que qualquer diferença não
ultrapassaria nem os 5%.
Minha querida esposa interveio dizendo
que o piano valia ao menos cento e trinta mil, e que essa era a
diferença que ela exigia para entregar a casa. Eu respondi que
aceitava que ela ficasse com o piano, desde que me desse sessenta e
cinco mil por minha metade, se é que eu devia repartir algo que eu
considerava meu objeto de uso pessoal. O juiz não quis ouvir isso.
Disse que era preciso sacrificar o instrumento para que houvesse um
acordo. Eu disse que isso interromperia toda uma atividade de
ensaios e gravações que se pretendia fazer com ele e que a casa
tinha sido construída em torno dele.
Isso não era argumento para o juiz e
nem para a minha querida esposa: ambos queriam saber só de números,
não de qualidade. Eles não entendiam que as coisas realmente
importantes não têm preço (tanto que ninguém dá nada por elas).
Creio que a minha querida esposa até entendia o que isso podia
significar para mim, mesmo que ela não conseguisse participar desse
mundo da arte. Por não conseguir, tinha raiva; por perceber que era
sumamente precioso para mim, tinha mais raiva ainda. O piano era o
instrumento de sua vingança contra “cinco anos de infidelidades”. Se
eu dissesse que eram dez, e não cinco, nem a casa ela me deixaria.
Aliás, ela não queria me deixar a casa, mas ela sabia que havia
problemas com o INSS e que eu não a entregaria nunca: era um risco
calculado que ela assumia, para acabar comigo tomando o piano, que
só servia para ela mais uma vez me agredir.
Eu queria oferecer então dois quadros
mais um piano de armário que tínhamos: a soma disso daria mais que o
valor de mercado do piano usado, ainda que fosse um Steinway de meia
cauda. Eu tinha emprestado os quadros a um amigo pintor. Ouvi então
a minha grande advogada me interromper dizendo que os dois quadros
já tinham sido vendidos e que o dinheiro tinha sido aplicado nos
acabamentos da casa. Ela se achou muito esperta ao dizer isso. Não
se importava que eu perdesse o instrumento de minha salvação, a reza
do meu entardecer, não sabia que os quadros eram bem menos
importantes para mim do que aquele piano único.
Eu não tinha cem mil para oferecer
como diferença. E não achava justo. Sabia que o piano não teria esse
valor no mercado. Havia cem mil de exagero na cotação de minha
querida esposa. Embora tivesse gasto com o advogado o único dinheiro
de que dispunha, eu poderia cobrir a efetiva diferença não só com os
objetos de arte como, se houvesse boa vontade, com pagamentos
parcelados. Mas não havia boa-vontade, principalmente porque o
instrumento havia se tornado instrumento de uma vingança, que se
escondia sempre em uma defesa leonina dos filhos abandonados pelo
cruel pai (como se as leoas não deixassem matar os filhotes pelo
novo macho para acasalar uma semana depois com o assassino de seus
filhos).
Fiquei perplexo, sem ter o que dizer.
A minha preciosa advogada pediu para que a sessão fosse interrompida
por cinco minutos para que ela pudesse conversar comigo no corredor.
O juiz concedeu. Lá fora, ela insistiu que eu deveria ceder o piano
para conseguir o acordo, pois era preciso obter a casa e fugir de um
processo litigioso que se estenderia por anos e em que eu seria
provavelmente considerado culpado. Entendi que, estando na rua,
precisava de um lugar para morar e que não daria para ficar com o
piano debaixo da ponte do Bragueto. Ao reconhecer isso, traí meu
piano e me condenei. Eu estava dizendo que, se não tivesse o piano,
eu provavelmente morreria mais cedo, bem mais cedo, pois perderia
muito do gosto de viver, quando fomos interrompidos pela digitadora
do juiz, que nos ordenou que retornássemos à sala de audiência.
Voltei à sala como um boi que entra no
corredor da morte. Eu estava derrotado e morto. Tudo transcorreu
então muito rápido. Entreguei tudo o que minha querida esposa
queria, sem discordar em nada. Os papéis foram assinados, minha alma
fora assassinada. Como anestesia, propus que eu tivesse um direito
preferencial no caso de venda, e isso foi admitido, mas jamais
serviria para nada. Assinei a minha cagada e fiquei na merda sem
fralda descartável. Disseram-me que poderia ter sido pior.
Procurei mais tarde a minha esposa
para lhe propor várias alternativas quanto ao piano, mas ela recusou
todas, dizendo: “ele é o meu instrumento de vingança para cinco anos
de infidelidades”. Que ela tinha me abandonado, recusando-se
inclusive a dormir comigo nos últimos sete anos, isso ele havia
esquecido. Ela queria que eu jogasse o piano contra os meus filhos
menores, mas eu não quis fazer isso. Era perverso. Perdi, porém, o
gosto de viver. Mesmo sabendo que o piano fazia parte de um jogo, de
uma guerra, com que ele não tinha nada a ver, fiquei triste demais
para viver.
Tiraram-me o cachorro, só porque eu
gostava muito dele. Eu nem conseguia mais dormir direito. Que os
meus filhos me agredissem e se voltassem contra mim, eu conseguia
entender: estavam em condições de decidir por si. Eles que
assumissem as conseqüências de seus atos. Foram proibidos de entrar
em minha casa. Nunca mais falei com nenhum deles. Creio que sofri
mais pelo cachorro e pelo piano do que pelos filhos. Achei estranho,
eu mesmo me surpreendi. O ódio da minha ex-mulher havia vencido. Era
uma vitória do rancor: mas que não levava a nada, só levava ao nada.
E no nada se ficou;
Fedendo para mim mesmo, desgostei-me
da vida e preparei-me para morrer. Eu era como um Midas às avessas:
tudo o que eu tocava, parecia que virava merda. Meus filhos do
casamento, com seus vinte anos de idade cada um, romperam relações
comigo, depois de passarem cheques em meus nome, tirarem tudo o que
puderam, dizerem e escreverem que eu era “um merda”, um “safado”, um
“mentiroso”: quanto mais me agrediam, mais dinheiro queriam, mais
exigiam que eu lhes pedisse perdão. Cada um se tornara o túmulo do
filho que eu nele tivera.
Rotularam-me de vilão, vilão eu tive
de ser. O melhor ser humano saber ser muito mau. Certa maldade é
necessária à sobrevivência. Cortei os auxílios e seguros de saúde
que pagava para os filhos e à ex-esposa, a exposa. Tornou-se uma
questão moral: eu não podia sustentar quem queria acabar comigo.
Continuaram agredindo, roubando e fazendo coisas que me
prejudicassem e magoassem: prefiro poupar detalhes. Tudo fizeram
para me magoar. A mãe deles mentia doentiamente para todos os lados.
A sua única racionalidade era a do ódio, da ânsia de destruir. Tinha
prazer nisso. Conseguiu fazer que nossos filhos me mandassem para o
diabo que me carregasse, mas: não estranhei: tinham me acostumado a
carregá-lo, ele então que me carregasse.
Acabaram rompendo relações comigo, o
que acabou sendo um grande alívio. Passaram a ser fantasmas que
flutuavam pela cidade, não mais monstros que me torturavam com
desagradáveis surpresas a cada dia. Eu perdi dois filhos amados, que
decidiram que eu deveria morrer para eles e que acabaram também
morrendo para mim. Eles se tornaram órfãos de pai vivo. Eu não tinha
nome para mim, pai de filhos falecidos.
Eu não me considerava viúvo da
ex-esposa, pois ela havia me ensinado a não mais amá-la. No fundo,
porém, continuei a amar aquela que nela eu havia amado: só que esta
não existia mais nela. Em sua vingança, ela conseguiu que os nossos
filhos morressem para mim, mas eles não foram vítimas inocentes:
quiseram morrer ao querer acabar comigo em nome da virtude. Não
adiantou eu explicar aos dois que eu nunca os havia traído e nem
abandonado. Eles deviam saber disso, mas não queriam. Foram
ingratos. Mais que isso: agiram contra mim. Eu tive de aceitar a
morte deles, porque nada mais me restou.
Tornou-se inútil e ridículo proibir
que os filhos maiores pusessem os pés em minha moradia ou que fossem
ao meu enterro: não iriam de qualquer modo. Só apareceriam depois,
para recolher o espólio e tirarem tudo o que pudessem. A maldade da
mãe regia seu agir. Tinham se tornado diabos comandados pela
mãe-Satã. Precisei exorcizá-los para não sucumbir. Não era essa a
emancipação que eu pretendera dar a eles, mas não tive outra. Tendo
eu esperado que se tornassem maiores, podiam cuidar de si mesmos.
Foi pior para mim, mas melhor para eles.
Tive de aprender a deixar de amar a
quem eu havia adorado, deixar de cuidar a quem eu sempre cuidara.
Pensei que semeara amor, e colhi ódio. Onde coloquei carinho, colhi
cacetadas. Cada dia era um novo choque. Um primo dileto, que gostava
muito da vida, morreu de câncer naquele período; eu, que queria
morrer, continuava vivo. Passei a me perguntar se seria por pura
covardia. Achei que morrer seria fazer concessão demais à ex-mulher
e aos ex-filhos que me queriam ver morto. Seria também um desaforo
aos filhos pequenos, que não tinham culpa de nada.
Eu não estava animado a viver, mas
estar disposto a morrer era dar uma vitória a um inimigo que não
merecia tê-la. Eu nunca pensara que teria de encarar meus filhos e
minha esposa como inimigos, mas também isso eu tive de aprender. Caí
no mutismo e no silêncio. Eu precisava proteger os meus filhos
menores dos ataques vindouros dos meus filhos maiores. Fiz um
testamento, doando metade dos meus bens para a mãe dos meus filhos
menores. Dois amigos testemunharam por mim num cartório e garantiram
que isso seria cumprido. Se a lei brasileira permitisse, eu teria
feito mais. Como não permitia, passei a casa para o nome da mãe dos
meus filhos menores, resguardando-me o usufruto em vida.
Tentei visitar minha mãe. Ela disse
que meu primo tinha morrido porque soubera da minha separação. Eu só
respondi que o câncer que o matara era anterior e não tinha sido
posto nele por mim. Ela me proibiu de levar os meus filhos menores à
sua casa: eram “filhos do pecado”. Não quis tomar conhecimento
deles. Assim também os meus irmãos e meus sobrinhos. Sobre mim, “não
se falava mais”. Disseram: “isso nunca aconteceu por aqui”. Era
hipocrisia: tanto meu tio quanto meu pai tinham tido filhos fora do
casamento, só que nunca haviam reconhecido e nem tomado conhecimento
de nenhum. Era assim que “isso nunca tinha acontecido”. Avisei que
“se meus filhos menores não forem reconhecidos e aceitos pela
família, eu não vou aceitar o membro da família que não os aceitar”.
Era a mesma regra que eu havia aplicado a minha esposa e aos meus
filhos mais velhos. Acabei tendo de mandar quase todos esses
parentes do interior “ao diabo que os carregue”.
Reconheço e confesso que minha mãe até
me disse que eu ainda poderia entrar em sua casa “porque eu não
fecho a minha porta para ninguém”: se o pior criminoso poderia
entrar, também eu poderia. Mas assim eu não queria entrar em sua
casa. Eu fiz o que me pareceu mais correto. Tive de aprender que o
que parecia ser o mais correto acabou sendo o mais errado, e que o
mais errado, o que parecia ser mais errado acabou sendo o mais
correto. O meu certo ou errado não era ditado nem pela lei e nem
pelos “bons costumes”: eram as normas que pulsavam em mim.
Retirei-me para um deserto interior.
Alguns amigos me chamaram para sair com eles: fui, mas logo voltei
ao deserto, como se nele estivesse mais perto de um deus. Eu não
tinha a hipocrisia do eremita, que só abandona as glórias do mundo
porque acredita ficar mais perto da glória eterna. Eu apenas tinha
cansado dos humanos, a começar por mim. Depois, cansei de estar
cansado.
Decidi agir. Minha querida esposa
usara tudo para me matar: o stress para pressão, as ameaças, os
filhos, as denúncias, as humilhações, para acabar concentrando tudo
no piano. Eu não me perdoei por ter cedido o instrumento no
tribunal. Devia ter exigido a casa e o piano, sem arredar pé em
nada. Como havia cedido, vi que eu havia me deixado quebrar por
dentro e perdido toda a dignidade diante de mim mesmo. Ao ceder, eu
já não era mais nada. A dignidade do escravo é a revolta. Quem dobra
a espinha, curva a cabeça e se ajoelha, esse perde a dignidade
humana. Ao aceitar a vingança da minha ex-mulher como forma de
justiça, eu me deixei matar. Ao respeitar o juiz que me
desrespeitara, eu perdi o respeito diante de si mesmo.
Eu estava morrendo de tanta culpa
diante de mim mesmo. Não conseguia mais dormir. Antes de morrer, eu
precisava corrigir erros meus e alheios. A única coisa que me
permitiria recuperar alguma dignidade seria matar aquela que havia
tentado acabar comigo de vários modos. Procurei a minha ex-esposa na
saída da escola em que ela trabalhava. Peguei a tranca do guidão e
dos pedais do carro: segurando-a com as duas mãos, aproximei-me da
minha querida ex- e bati com toda força na cabeça, no rosto, no
pescoço e onde quer que conseguisse acertar. Ela caiu no chão e eu
continuar a bater até cessar todo movimento. Havia sangue por todo
lado. Fui preso e condenado. Senti-me aliviado e feliz, como quem
cumpriu uma obrigação.
Fui visto como aniquilador da moral.
Fui punido por aqueles que se colocaram no pedestal da virtude. Fui
açoitado no pelourinho como “neguinho fujão”, fui condenado como
assassino, mas não me arrependo de nada que fiz. Só me arrependo do
que deixei de fazer no tempo certo. Eu poderia ter me poupado e
salvo o que me importava se tivesse sido calculista como minha
esposa. Confiei em quem não devia, e fui idiota na proporção da
confiança.
Tentei, no entanto, reinventar a mim
mesmo, procurar o meu caminho. Morri para poder renascer. Eu me
reconstruí, e abri caminho para outros. Nada compensa, no entanto, a
minha covardia, ainda que eu a tenha chamado de prudência; nada
compensa as perdas que sofri, ainda que o Estado tenha exercido a
vingança com o nome de Justiça; nada compensa o vazio sem remédio do
que se foi, ainda que o rancor tenha se dado o nome de virtude. Fico
nadando em vácuos do nada e imaginando as vacas no pasto: nada se
resolve, tudo se dissolve.
Escrevo nas areias do tempo vindouro,
mas não como quem pretende construir uma alma imortal de papel.
Escrevo como uma mulher grávida que está parindo: com sangue e dor e
risco de vida, mas sem outra opção. E agora escrevo como se tivesse
o meu filho menor no colo, enquanto ele me permitir escrever. Às
vezes ele me visita com a mãe e o irmão. Estão envergonhados de mim.
Deixo esse conto no colo dos leitores, para que o embalem e
encontrem um modo melhor de ser. Ou não.
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