Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Flávio R. Kothe


 

A vara da família

 

Família tem vara. Serve para dar uma surra no homem como se fosse um neguinho fugido: a vara da família é um pelourinho secreto, em pleno funcionamento. É o local onde se capa o varão, enfiando-lhe o tarugo no traseiro, sem perguntar se ele queria ou não. Era isso que eu estava tendo de aprender, com a bunda no tribunal da Vara da Família, tudo em maiúsculas para assinalar o poderio vestindo o manto de santidade das letras maiores, como mais alto estava assentado o travesti que era o juiz que me julgava como se eu não pudesse julgá-lo. Chamava-se Ávila e Souza, um Carlos qualquer coisa, ou algo parecido, mas me bastava aquele senhor togado que havia me expulso da minha vila sem sequer me escutar: ele não só me bastava, como já me era até demais. Não cabíamos os dois na mesma vila, e tínhamos de caber na mesma sala.

Eu estava diante do juiz como um idiota diante da cruz. Atrás do juiz estava a cruz, para consagrar a crucificação que de mim, pobre varão, estava sendo feita nessa vara. A pretexto de crucificar um deus, a humanidade se vira crucificada por dois mil anos sem conseguir se enxergar e, por isso, também sem condições de apear da cruz. Mas eu também não podia apear da dupla vara em que me via atravessado: afinal, com dois filhos fora do casamento, eu era comprovadamente um “adúltero”. Eu havia sido acusado por minha esposa quando tentara alterar isso, ao descobrir que o adultério era melhor que o casamento.

De fato, quem antes havia se adulterado era a minha esposa. Não que ela tivesse dormido com outro homem: ela simplesmente tinha deixado de dormir comigo há sete anos. Ela me comunicara essa decisão, eu não tinha entendido nada e ficado fulo da vida: talvez fosse a menopausa, talvez o distúrbio da tireóide, talvez o meu ronco, talvez a laqueadura: perdido em tanto talvez, eu não chegara à certeza de que ela não me amava. Continuamos morando na mesma casa, tínhamos filhos para criar e eu havia me jurado, em crise anterior, que eu iria criá-los.

Como eu não estava morto, acabei encontrando quem me quisesse e me amasse. Longe de quaisquer planos, nasceram dois filhos em três anos. Eu os reconheci em cartório e dei-lhes ajuda. Disso eu estava sendo acusado. Era o meu crime: não ter matado, mas ter gerado duas vidas. Nos autos do processo, eu era “o réu”. Na virada do ano, eu havia dito à minha esposa que eu queria ter o direito de visitar esses filhos menores, que ela sabia que existiam. Ela disse que ia pensar. Enquanto eu lhe dava tempo para pensar, ela fez denúncias contra mim na polícia e entrou na Justiça com uma ação de separação e outra de separação de corpos. Eu, como marido, tinha sido o último a saber. Só comecei a desconfiar quando fui chamado à Delegação para depor como altamente suspeito.

Esse juiz à minha frente não havia me escutado. Antes de escrever um despacho apressado, ele poderia ter me chamado: em meia hora eu estaria com ele para explicar o que ocorria na “intimidade do lar”. Não, ele não havia me escutado. Apenas havia ordenado, num despacho de duas linhas, que eu fosse “citado e afastado do lar”. Esse lar era uma lareira. Ele tinha me tocado para fora da casa que eu construíra com o meu dinheiro e com o meu esforço, a casa que era o local não só onde eu dormia e comia, mas em que estava o meu escritório, a minha biblioteca, o meu local de trabalho. Ele me impedira de trabalhar, sem se dar ao serviço de me escutar.

Como minha querida esposa havia já trancado os portões e trocada as fechaduras dez dias antes de o juiz tomar qualquer decisão, eu me vira no olho da rua, sem residência fixa e sem local de trabalho, sendo procurado por um oficial da justiça como se eu fosse um criminoso. O desgraçado daquele juiz jamais me indenizaria pelos prejuízos morais e matérias que estava me causando. Sentado em cima de um pedaço de papel, achava que fazer justiça era aplicar a lei. Ora, a lei existe para que justiça não seja feita. Afinal, a lei representa os interesses dos mais fortes e mais ricos, para que eles possam continuar explorando a massa da população, não apenas lhe roubando uma parte diária do trabalho, sem pagar por isso, como lhe cobrando mais pelas mercadorias do que elas realmente valem.

O juiz estava, porém, sentado num patamar superior, e eu estava obrigado a ficar sentado num plano inferior, como se ele fosse um deus e eu apenas um verme. O solene carrasco era tudo; eu era nada. Pior que nada, eu era um “réu”: sentia que estava levando na ré. Assim constava, assim ficaria registrado. Fiquei olhando para o juiz, com vontade de dizer o que pensava, mas sabia que juiz não quer se deixar julgar. Se fosse, ele logo seria meu réu. Eu era, porém, covarde demais para dizer o que pensava; eu era, aliás, covarde demais até para pensar. Estava aí como um palerma, dopado com calmantes para agüentar a tortura.

Eu não estava aí discutindo se algum juiz era corrupto, ou, conforme se dizia, a maioria dos juízes já estava sendo formada por corruptos, sendo o juiz honesto uma espécie em extinção, uma minoria cada vez menor. Eu não estava discutindo propinas e privilégios. Nem mesmo eu discutia o seu salário de quinze ou vinte mil, muitas vezes mais do que deveriam na ativa e na aposentadoria. Não, o meu problema básico não era esse. O juiz honesto era o pior, pois acreditava na lei. Não questionava a origem da lei, as forças e os interesses que haviam ditado seu texto. Era um burro togado. Mas quem se ferraria se falasse seria eu. Eu era o burro maior. Estava aí para levar a marca da ferradura na bunda.

O juiz Ávila, ou Villa ou Pancho Villa, havia apenas escutado um lado, a esposa da qual eu decidira me separar porque não conseguia mais agüentar os ataques que ela vinha me fazendo há anos. No último ano a situação havia piorado: os ataques haviam se tornado diários e cada vez mais violentos. Ela havia ido duas vezes à polícia me denunciar por maus tratos. Doutrinada por um esperto rábula, havia usado uma colher para bater, com a parte côncava, no próprio rosto: não doía muito dar dezenas de batidinhas nas maçãs do rosto: no dia seguinte, elas estavam cheias de hematomas rubros e roxos. Ela havia ido à Delegacia da Mulher e me denunciado como agressor. Poderia ter sido pior: um amigo psicanalista tinha uma cliente que havia quebrado três dentes e outra que havia se furado com faca. A minha até que havia sido condescendente comigo enquanto eu dormia.

Eu não havia batido na minha querida esposa. Apenas havia comunicado que não queria mais continuar aquele casamento ruim e que pretendia cuidar mais da criação dos filhos que tivera fora. Não estava sequer certo que eu iria morar com a mãe deles. Eu queria primeiro sair daquela prisão e tortura que havia se tornado o casamento. Minha querida esposa, embora tivesse feito tudo o que podia para me convencer de que merecia levar uma surra, não havia sido surrada por mim. E, pela surra que eu não havia dado, eu havia sido denunciado na Delegacia e expulso da minha casa.

Eu até merecia uma surra por não ter surrado. Mas isso, hoje, homem que é homem não faz. Não se fazem mais homens como antigamente. O movimento feminista havia conseguido duas coisas: masculinizar a mulher e efeminar o homem. Eu era um veadinho e não sabia. Achava que era homem, e não era. E nem podia ser na frente de um juiz que podia me mandar por desacato à autoridade assim que eu lhe dissesse o que pensava da prepotência legalizada que ele havia exercido sobre mim.

Não, não era uma balança a Justiça que esse juiz representava. Não era nem mesmo uma balança moderna, digital. A antiga balança da Justiça tinha dois braços e dois pratos: sempre quisera dizer que pesava mais quem podia colocar mais moedas nela, mas deveria significar que os dois lados seriam ouvidos, os argumentos dos dois lados seriam sopesados. Só que eu não havia sido escutado. Eu não era uma exceção, mas a regra: os juízes sempre expulsavam o homem da casa assim como nunca davam a guarda dos filhos ao pai. Pensavam ser os garanhões das pobres mulheres desamparadas.

Eles acreditavam estar fazendo justiça assim. Davam uma porretada na pinha do homem, e diziam estar exercendo a justiça. Os homens têm fama de ser violentos — e há alguns remanescentes de uma raça extinta que ainda são —, mas a grande maldade é feita mais pelas mulheres. Elas não são as pobres submissas, humildes, a sofrer as truculências dos machões maldosos: elas planejam a maldade, de um modo sutil e sistemático, fingem ser perseguidas enquanto mais perseguem, fingem estar sendo massacradas enquanto torturam com requintes ditos chineses mas que são patrimônio de toda a humanidade. E pior: são auxiliadas por homens para fazer isso. Pior ainda: esses homens acreditam estar defendendo a parte mais fraca.

Se eu a tivesse feito morrer, minha querida esposa teria sido uma simples aplicação da lei de Talião, já que ela, sabendo que eu sofria de pressão alta, ficava me azucrinando a paciência, dia e noite, alternando isso com horas ainda mais cruéis de simpatia e ternura, para depois poder me atacar melhor: quando a pressão estava lá em cima, ela vinha contra mim com mais ataques. Parecia um exército inimigo, e era apenas uma saia recheada. Eu não era uma fortaleza sitiada, com buracos nas muralhas: eu era apenas um fraco. Não dormia com a inimiga, mas só porque a inimiga não dormia comigo. A crueldade dela era uma forma de piedade, que eu não entendia: em vez de me alegrar, ficara infeliz. Eu era um idiota, mas havia quem me considerasse inteligente. Quanto mais idiota eu estava sendo, mais esperto me achava. Não me considerar esperto não me tornava mais inteligente.

O sonho da minha esposa era se tornar minha viúva. Isso resolveria de uma só vez todos os seus problemas: ficaria com tudo e não precisaria repartir nada. Isso teria resolvido também os meus problemas e eu nem sequer teria precisado passar por nenhuma dessas humilhações, perdas e desonras que estava passando. Como perfeito idiota e marido que é o último a saber, eu não havia conseguido entender equação tão simples: demorara demais a deixar cair a ficha em minha mente. Eu era cego porque não queria ver o que não gostaria.

A minha desinteligência mentia demais para mim: há vinte anos viera me mentindo que aquela doce vampira me amava, só porque ficava sugando o sangue do meu pescoço. Ela era casada com o meu contracheque. Fingia trabalhar para melhor ficar longe de mim: e eu acreditava que ela era uma profissional esforçada e competente. A única paixão dela por mim era a minha conta bancária. O amor dela era do tamanho das cifras nos cheques e nas contas dos cartões. Por ambas razões, era pouco. Mas repartíamos meio a meio todas as contas da casa: ela pagava as pequenas, eu pagava as grandes. Ela divulgava o que pagava; eu calava. Ela se dizia vítima do tirano; eu não era tirano e não tinha valentia.

Eu, o idiota, merecia o idiota que tinha pela frente como juiz: nós dois tínhamos sido passados para trás por uma pobre mulher, que só queria sair daí menos pobre e usava nós dois para isso: eu permitira ser usado; mas ele me obrigava a ser usado, quando eu não queria mais me deixar usar. Nós dois nos merecíamos, só que ele era pago para me punir, enquanto eu pagava por ter confiado em quem não podia ter confiado. Eu era culpado do que não fizera. Minha culpa real era não ter feito o que devia. Tinha de aprender que tudo o que fizera pensando ser certo, havia sido errado; e tudo o que parecia ser o mais errado, havia sido o mais certo.

O erro meu havia sido duplo: eu devia ter feito menos o certo e ter feito mais o errado. Eu era um idiota ao quadrado, um quadrado idiota: estranha figura de geometria. Ao fazer o certo, ajudando a esposa e os filhos dela, havia errado; ao ter uma amante e ser adúltero, havia feito o que podia me garantir uma nova vida. Os filhos fora do casamento eram considerados nos autos como “uma triste realidade”. Essa “triste realidade” eram dois belos meninos, que tinham direito à vida, mas que não deveriam existir em nome da virtude. Que virtude era essa, porém, que era contra a vida? Eu estava sendo punido por ter gerado a vida, era acusado de ter perigado a vida de quem quisera durante meses acabar comigo.

Sim, durante anos minha esposa havia gostado muito de mim, especialmente quando eu lhe dava presentes: ela me fazia ficar orgulhoso disso, e eu me sentia o tal. E reclamava da minha falta de amor quando os presentes faltavam. Tudo o que eu dava, porém, era insuficiente. Havia sempre um infinito a mais para dar. O céu era inalcançável. Mesmo que eu fosse Onássis, teria de adorar Onan, pois nada bastaria para quem tudo queria. Onássis eu não era, e Onan era um deus da adolescência, traído e abandonado.

Agora, na separação, tudo o que de mim fosse tirado seria pouco diante da sede infinita de vingança da minha esposa “traída e enganada”. Ela queria tudo, e mais um pouco: a minha morte. A minha morte, mas acompanhada por minha ressurreição ao terceiro dia, para que ela pudesse me matar de novo. Assim, não havia Cristo que agüentasse. Até o próprio tinha decidido passar por tudo apenas uma vez, embora os padres pretendam matá- de novo a cada dia.

Por mais que eu tivesse me matado de tanto trabalhar, a desgraça era que eu não havia morrido. Que eu então sobrevivesse só havia sido bom porque no mês seguinte eu poderia dar mais alguma coisa. E daria, como quem pede clemência por mais um mês. Havia uma vampira a me sugar, e eu não sabia: pensava que era amado. Eu era um idiota, e não sabia; era explorado, e imaginava que era amado. Estava doido, e não sabia. Devia estar num hospício, e andava solto pelas ruas. Pensava que eu tinha uma família, e a família que eu tinha não era. A família que não era, era a única família que eu tinha.

Quando o juiz se dirigiu a mim, fiquei olhando para ele com um leve sorriso nos lábios. Ele achou que eu estava sendo simpático. Não sabia que eu havia me dopado antes de comparecer àquela sessão de tortura psíquica chamada audiência. Eu estava disposto a fazer qualquer concessão, desde que me livrasse daquela mulher. Era com isso que toda mulher contava: fingia-se de louca e infernizava a vida do homem, para ter depois uma vida paradisíaca como tudo o que assim conseguia arrancar dele.

Em geral os homens achavam que “a paz não tem preço”: pelados de tudo, sentiam-se felizes por ficarem sem nada. Eles montavam o “patrimônio familiar” com o seu duro trabalho de anos e anos, para acabarem sendo sugados até o último tostão. As mulheres saíam rindo da audiência e esfregando as mãos; os homens demoravam uma semana para entender que haviam feito concessões demais, desnecessárias e absurdas, só para recobrar a paz e a tranqüilidade, que eram um direito que eles haviam desaprendido a ter em anos de conflitos domésticos.

Se Justiça na Vara da Família era enfiar a vara no rabo do homem, em nome da proteção à família ou da eqüidade de defender a parte mais fraca, a pobre mulher, já não adiantava mais sequer o homem não casar com a mulher: bastava segurar a mão e ficar um dia num quarto com ela, que já tinha entregue metade do patrimônio. O matrimônio era um modo de o patrimônio do pater ser tomado pela mater. Os antigos romanos não haviam sido tão burros quanto os homens modernos

Aquele juiz acreditava que estava fazendo justiça. Eu não acreditava em justiça divina, mas também não conseguia acreditar na justiça humana, a não ser que ela me desse pleno ganho de causa. Mas então eu não estava acreditando na justiça, e sim apenas em minha vantagem pessoal. Eu seria tão hipócrita quanto ela se não reconhecesse isso. Como eu já tinha começado perdendo, não podia esperar nada de bom num jogo em que o adversário vinha com três gols de vantagem e eu não tinha nenhum Pelé advocatício do meu lado, mas apenas a assistente e carregadora de pasta do advogado que me comera dez mil para não comparecer sequer a audiência principal.

O juiz tinha pressa em julgar. Queria decidir a minha vida inteira em quinze minutos, sem sequer me escutar direito. Parecia querer desmentir o dito de que “justiça tarda, mas não falha”, fazendo com que ela se apressasse. Ora, a justiça que tarda também já falhou: de que adianta um operário demitido ser readmitido depois de quinze anos de processo? Ele tem de morrer de fome esperando? Vai jogar fora a vida que reorganizou só para retomar o emprego que lhe foi devolvido? Em suma, ganhando, ele sempre já perdia.

No sorriso em meus lábios, o juiz não lia o que eu pensava. A justiça, se fosse justa, teria de primeiro reconhecer que ela sempre faz injustiça. Nunca se compensa nada. Todo prejuízo que se causa é um prejuízo que fica. A compensação que se paga não compensa nada essencial, nada repara.

Eu estava vendo que eu havia me prejudicado ao querer fazer o bem, ao amar os meus filhos e ser útil à minha esposa. Com que direito eu havia sido bom para os outros sendo mau para mim mesmo? Eu não tinha o direito de ser mau comigo, mas havia sido ao querer fazer o bem. Se eu tivesse sido mais maldoso com minha esposa, eu teria sido melhor comigo, melhor para mim. Com que direito a virtude exigia de mim que eu me prejudicasse para ser virtuoso?

A minha esposa — agora quase ex-mulher — não era grata por tudo quanto eu fizera por ela. Pelo contrário, quanto mais eu fizera, mais ela se sentia prejudicada por eu não estar mais disposto a continuar fazendo tudo por ela. Os meus filhos não eram gratos: sentiam-se traídos por eu ter outros filhos, com os quais teriam de repartir a herança, por menor que ela fosse. Eles nunca haviam me amado: apenas haviam me sugado.

Quanto mais dívida se tem com alguém, tanto mais se quer que o credor morra e desaparece. Ao invés da gratidão infinita, a grande ajuda despertava o rancor infinito, pois havia um crédito impagável: quanto maior a dívida, menos o devedor estava disposto a reconhecê-la como tal. E a Justiça dos homens estava aí para acabar com essa dívida e fazer do devedor um credor de ainda mais créditos. Fazia-se Justiça para fazer ainda mais injustiça. Era engraçado, mas quem chorava era eu.

Continuei olhando para o juiz enquanto ele perguntava à minha quase ex-mulher se ela pretendia manter o pedido de separação e ela respondia que sim, dispensando-me ele de responder à pergunta se eu queria me separar. Minha mãe dizia que, quando um boi não quer, outro não briga: assim ela havia passado a vida levando marradas de meu pai, achando que apanhar era bom, pois Cristo também havia sido humilhado e ofendido.

Que eu era um capado, isso eu já sabia, pois se fosse homem como o meu bisavô teria corrido aquela mulher a relho para longe do terreiro. Como já não se fazem mais homens como antigamente e como as mulheres se tornaram os homens que os homens já não são mais, eu estava aí, feito um tourinho amarrado no potreiro, para que as minhas clicas terminassem de ser extraídas e depois eu ainda fosse ferrado com a marca da justiça. Eu estava sendo capado, havia me anestesiado com um calmante e estava disposto a que fizessem comigo o que quer que quisessem.

Eu tinha contratado um advogado, Geraldo Adalberto Zefa Carneiro, que me cobrara dez mil só como adiantamento para pegar a causa: com menos de 24 horas para contestar as acusações, eu não tivera alternativa senão pagar. Com o dinheiro no bolso, ele havia repassado o caso para uma assistente: não havia comparecido aos encontros marcados na sua banca, não havia entrado em contato com o advogado da minha inimiga, não estava ao meu lado na audiência. Como a minha advogadazinha não estava aí para me defender, e sim para fazer um acordo amigável a qualquer preço (o preço que eu teria de pagar) e tão rápido quanto possível, eu estava ao mesmo tempo só e mal acompanhado. Eu não havia ainda entendido a lógica da advocacia: arrancar o máximo possível do cliente fazendo o mínimo necessário. A minimização desse mínimo levava à maximização do lucro. Eu estava feito um peixe na rede: quanto mais esperneasse, mais preso ficaria.

Eu era uma ilha cercada de inimigos por todos os lados, mas o meu principal inimigo estava dentro de mim: a minha covardia. Eu a chamava de prudência. A prudência recomendava um acordo: por pior que fosse, seria melhor que um bom litígio. Só que minha querida esposa, do outro lado da mesa, contava com isso. Ela sabia que eu era um idiota, mais ainda quando me achava esperto: por isso, ela sempre se fizera de boba, para sempre levar vantagem. Não havia conciliação entre os sexos: a guerra era a sua lei maior. Eu não tinha no juiz homem uma garantia de mínima solidariedade, mas também não teria se fosse uma mulher.

Passei a me odiar antes mesmo de fazer qualquer coisa errada. Assim facilitei os erros que vieram a seguir. Se eu tivesse peitado o juiz, negando-me a ser julgado por ele, já que ele havia sido parcial, partidário e injusto na decisão de me expulsar de casa, ele poderia ter me mandado prender, ou poderia tomar uma decisão que me prejudicasse ainda mais. A covardia era uma necessidade. Mas dava raiva.

Se eu tivesse interrompido a fala separatória do juiz e dito aquela mulher à minha frente havia me azucrinado a paciência durante anos e que nos últimos meses havia tentado me matar com o expediente simples de me deixar tenso para que a minha pressão aumentasse e, quando estava alta, continuasse a me atacar com palavras que babavam veneno, eu teria sido duas vezes ridículo. Podia ser verdade, mas não valia. Eu não era do tipo que iria contar uma coisa dessas na delegacia, mas a mulher era capaz de ir contar o que nem sequer acontecera, mandar escrever e depois assinar, formando um “fato policial” que obrigava o juiz a tomar medidas urgentes no sentido da separação de corpos que já estavam separados por almas em guerra. A balança do juiz só tinha um braço, que era um porrete e não tinha prato, mas podia ter uma cama.

O princípio de igualdade deveria reconhecer primeiro a desigualdade do desigual e não igualar o desigual, mas o desse juiz não reconhecia a igualdade quando se tratava de ouvir as duas partes antes de decidir pela expulsão do homem da sua casa como se não existisse telefone, carro ou internet. Ele só reconhecia a desigualdade do desigual dentro do preconceito de que a mulher é fraca e indefesa, mesmo quando agride e tenta matar sutilmente: a pretexto de defender a parte supostamente mais fraca, enfraquecia a parte supostamente mais forte. Fazia do homem um enfraquecido, e da mulher uma fortalecida, antes mesmo de saber se havia mérito no que o homem teria a dizer em sua defesa. Havia aí dois pesos e duas medidas. Ou pior: um pesado porrete contra o homem conforme as medidas da mulher.

Olhei o Cristo atrás do juiz. Pregado na parede, Cristo vestido de atleta antigo, e não pelado como os romanos costumavam crucificar as pessoas. Seria estranho um deus com a pingola de fora, balançando ao vento. Um deus como romano algum admitiria um deus. Para ele, um deus precisaria ter dignidade, e não fazer da suprema humilhação o máximo da virtude. Eu tinha quase certeza de que aquele juiz, como todos os outros da sua casta, acreditavam na igualdade (para manter a desigualdade social) porque estava escrita em seus livrinhos, mas ela estava inscrita nos seus livrinhos não para ser tornada real por quem tinha uma salário de mais de cinqüenta trabalhadores (como se cada um sozinho valesse cinqüenta), e sim porque ele acreditava haver uma vontade divina a ditar essa igualdade.

Sim, aquele atleta antigo todo estropiado, a igualar na horizontal o que ele desigualava na vertical da cruz, ou a desigualar na vertical o que ele fingia igualar na horizontal, devia ditar a esse juiz a injustiça que ele vinha praticando em nome de um princípio de justiça. Esse juiz devia acreditar que todos os homens são filhos de Deus. Talvez acreditasse até que todos são irmãos em Cristo. “São”, e não “supostamente seriam”. Ele estava louco, e não sabia. Tinha passado no exame de sanidade, que condenaria à insanidade quem tivesse um mínimo de sanidade mental, deixando de acreditar em ficções como se fossem realidades, em fantasmas como se fossem corpos vivos.

De que adiantaria discutir aí, naquele tribunal, naquele momento, com aquele juiz, se Sófocles teria estado certo ao dar um outro fundamento ao “princípio de igualdade”: a fraqueza de todos os homens diante da doença e da morte. Cinco séculos antes de Cristo. Esse juiz provavelmente nem sequer conseguiria identificar em que obra o velho Sófocles teria tratado disso. E não seria eu quem iria contar-lhe isso, que não me dava nenhuma superioridade prática, mas me daria mais uma inferioridade se eu fosse contar. A loucura poderia atingir qualquer um, mas o louco podia estar mais certo do que os que se consideravam sãos. Isso o jovem dramaturgo antigo não havia entendido.

De fato, os humanos não são iguais diante da doença e da morte: há alguns que são fortes; a maioria é fraca. Do morto não se pode exigir nenhuma igualdade. Os homens não são iguais na morte. Nunca foram. Milhares foram sacrificados para que um fosse rememorado. Milhões continuam sendo esquecidos, raros são os que continuam sendo lembrados depois de mortos, a maioria pelos motivos mais errados. Não há sossego para os mortos. Os túmulos dos meus antepassados haviam sido violentados tanto na Silésia quanto no Sul do Brasil. Prepotência e intolerância davam-se as mãos e tornavam difícil a sobrevivência.

Não, não, que igualdade era essa que se baseava na fraqueza? Ao menos ela não pretendia se basear numa fraqueza, como acreditar em Deus e na alma imortal, mas que pretende ser um princípio de força. Supor que a igualdade dos seres humanos estaria na racionalidade, como propusera o velho Aristóteles, acabaria excluindo da humanidade a maioria dos seres ditos humanos. Todos aqueles em que a fé preponderava sobre a dúvida racional e crítica não poderiam ser humanos, estariam condenados ao inferno da animalidade, ainda que se considerassem os únicos salvos. Mas de que adiantaria tentar convencê-los disso ou de qualquer outra coisa? Se arte fosse mimese, como queria o velho Estagirita, e se a imitação fosse própria do homem, então o polvo e o camaleão seriam humanos e artistas. Quanta bobagem palraram os clássicos!

Pensando tanta bobagem, é óbvio que eu não estava prestando grande atenção ao que parlamentava o togado senhor à minha direita, no alto de sua sapiência e onipotência. Prestei atenção quando ele disse que eu tinha de entregar o piano de cauda à minha esposa. Ousei observar que ela não tocava piano, não sabia uma nota, e que eu tocava naquele piano a cada dia, que eu gostava muito dele e queria preservá-lo. Não ousei dizer que o amava como se fosse uma pessoa, ou mesmo que eu o amava mais do que amaria a maioria das pessoas, pois isso já me pareceu bichice demais para a ocasião.

Eu poderia dizer que tocar naquele piano havia salvo a minha vida nos últimos dez anos, e que era aquele piano e não outro que me havia permitido ao final do dia rearmonizar a alma, controlando inclusive a pressão sangüínea, que estava a 16 e 17 desde que eu havia sido impedido de tocar nele pela assim chamada Justiça. Não, o togado juiz não queria saber desse amor por um piano, quando declarei que eu queria conservá-lo comigo. Ele tinha em mãos os orçamentos dos nossos imóveis que minha querida esposa havia encomendado e que, obviamente, faziam com que o valor da casa fosse mais de cem mil reais mais caro do que a soma dos nossos dois apartamentos, que eu propusera que ficassem com ela. Já que a minha grande advogada continuava calada como uma porta, eu disse que tinha orçamentos comigo que mostravam que o valor dos apartamentos era igual ao da casa, que qualquer diferença não ultrapassaria nem os 5%.

Minha querida esposa interveio dizendo que o piano valia ao menos cento e trinta mil, e que essa era a diferença que ela exigia para entregar a casa. Eu respondi que aceitava que ela ficasse com o piano, desde que me desse sessenta e cinco mil por minha metade, se é que eu devia repartir algo que eu considerava meu objeto de uso pessoal. O juiz não quis ouvir isso. Disse que era preciso sacrificar o instrumento para que houvesse um acordo. Eu disse que isso interromperia toda uma atividade de ensaios e gravações que se pretendia fazer com ele e que a casa tinha sido construída em torno dele.

Isso não era argumento para o juiz e nem para a minha querida esposa: ambos queriam saber só de números, não de qualidade. Eles não entendiam que as coisas realmente importantes não têm preço (tanto que ninguém dá nada por elas). Creio que a minha querida esposa até entendia o que isso podia significar para mim, mesmo que ela não conseguisse participar desse mundo da arte. Por não conseguir, tinha raiva; por perceber que era sumamente precioso para mim, tinha mais raiva ainda. O piano era o instrumento de sua vingança contra “cinco anos de infidelidades”. Se eu dissesse que eram dez, e não cinco, nem a casa ela me deixaria. Aliás, ela não queria me deixar a casa, mas ela sabia que havia problemas com o INSS e que eu não a entregaria nunca: era um risco calculado que ela assumia, para acabar comigo tomando o piano, que só servia para ela mais uma vez me agredir.

Eu queria oferecer então dois quadros mais um piano de armário que tínhamos: a soma disso daria mais que o valor de mercado do piano usado, ainda que fosse um Steinway de meia cauda. Eu tinha emprestado os quadros a um amigo pintor. Ouvi então a minha grande advogada me interromper dizendo que os dois quadros já tinham sido vendidos e que o dinheiro tinha sido aplicado nos acabamentos da casa. Ela se achou muito esperta ao dizer isso. Não se importava que eu perdesse o instrumento de minha salvação, a reza do meu entardecer, não sabia que os quadros eram bem menos importantes para mim do que aquele piano único.

Eu não tinha cem mil para oferecer como diferença. E não achava justo. Sabia que o piano não teria esse valor no mercado. Havia cem mil de exagero na cotação de minha querida esposa. Embora tivesse gasto com o advogado o único dinheiro de que dispunha, eu poderia cobrir a efetiva diferença não só com os objetos de arte como, se houvesse boa vontade, com pagamentos parcelados. Mas não havia boa-vontade, principalmente porque o instrumento havia se tornado instrumento de uma vingança, que se escondia sempre em uma defesa leonina dos filhos abandonados pelo cruel pai (como se as leoas não deixassem matar os filhotes pelo novo macho para acasalar uma semana depois com o assassino de seus filhos).

Fiquei perplexo, sem ter o que dizer. A minha preciosa advogada pediu para que a sessão fosse interrompida por cinco minutos para que ela pudesse conversar comigo no corredor. O juiz concedeu. Lá fora, ela insistiu que eu deveria ceder o piano para conseguir o acordo, pois era preciso obter a casa e fugir de um processo litigioso que se estenderia por anos e em que eu seria provavelmente considerado culpado. Entendi que, estando na rua, precisava de um lugar para morar e que não daria para ficar com o piano debaixo da ponte do Bragueto. Ao reconhecer isso, traí meu piano e me condenei. Eu estava dizendo que, se não tivesse o piano, eu provavelmente morreria mais cedo, bem mais cedo, pois perderia muito do gosto de viver, quando fomos interrompidos pela digitadora do juiz, que nos ordenou que retornássemos à sala de audiência.

Voltei à sala como um boi que entra no corredor da morte. Eu estava derrotado e morto. Tudo transcorreu então muito rápido. Entreguei tudo o que minha querida esposa queria, sem discordar em nada. Os papéis foram assinados, minha alma fora assassinada. Como anestesia, propus que eu tivesse um direito preferencial no caso de venda, e isso foi admitido, mas jamais serviria para nada. Assinei a minha cagada e fiquei na merda sem fralda descartável. Disseram-me que poderia ter sido pior.

Procurei mais tarde a minha esposa para lhe propor várias alternativas quanto ao piano, mas ela recusou todas, dizendo: “ele é o meu instrumento de vingança para cinco anos de infidelidades”. Que ela tinha me abandonado, recusando-se inclusive a dormir comigo nos últimos sete anos, isso ele havia esquecido. Ela queria que eu jogasse o piano contra os meus filhos menores, mas eu não quis fazer isso. Era perverso. Perdi, porém, o gosto de viver. Mesmo sabendo que o piano fazia parte de um jogo, de uma guerra, com que ele não tinha nada a ver, fiquei triste demais para viver.

Tiraram-me o cachorro, só porque eu gostava muito dele. Eu nem conseguia mais dormir direito. Que os meus filhos me agredissem e se voltassem contra mim, eu conseguia entender: estavam em condições de decidir por si. Eles que assumissem as conseqüências de seus atos. Foram proibidos de entrar em minha casa. Nunca mais falei com nenhum deles. Creio que sofri mais pelo cachorro e pelo piano do que pelos filhos. Achei estranho, eu mesmo me surpreendi. O ódio da minha ex-mulher havia vencido. Era uma vitória do rancor: mas que não levava a nada, só levava ao nada. E no nada se ficou;

Fedendo para mim mesmo, desgostei-me da vida e preparei-me para morrer. Eu era como um Midas às avessas: tudo o que eu tocava, parecia que virava merda. Meus filhos do casamento, com seus vinte anos de idade cada um, romperam relações comigo, depois de passarem cheques em meus nome, tirarem tudo o que puderam, dizerem e escreverem que eu era “um merda”, um “safado”, um “mentiroso”: quanto mais me agrediam, mais dinheiro queriam, mais exigiam que eu lhes pedisse perdão. Cada um se tornara o túmulo do filho que eu nele tivera.

Rotularam-me de vilão, vilão eu tive de ser. O melhor ser humano saber ser muito mau. Certa maldade é necessária à sobrevivência. Cortei os auxílios e seguros de saúde que pagava para os filhos e à ex-esposa, a exposa. Tornou-se uma questão moral: eu não podia sustentar quem queria acabar comigo. Continuaram agredindo, roubando e fazendo coisas que me prejudicassem e magoassem: prefiro poupar detalhes. Tudo fizeram para me magoar. A mãe deles mentia doentiamente para todos os lados. A sua única racionalidade era a do ódio, da ânsia de destruir. Tinha prazer nisso. Conseguiu fazer que nossos filhos me mandassem para o diabo que me carregasse, mas: não estranhei: tinham me acostumado a carregá-lo, ele então que me carregasse.

Acabaram rompendo relações comigo, o que acabou sendo um grande alívio. Passaram a ser fantasmas que flutuavam pela cidade, não mais monstros que me torturavam com desagradáveis surpresas a cada dia. Eu perdi dois filhos amados, que decidiram que eu deveria morrer para eles e que acabaram também morrendo para mim. Eles se tornaram órfãos de pai vivo. Eu não tinha nome para mim, pai de filhos falecidos.

Eu não me considerava viúvo da ex-esposa, pois ela havia me ensinado a não mais amá-la. No fundo, porém, continuei a amar aquela que nela eu havia amado: só que esta não existia mais nela. Em sua vingança, ela conseguiu que os nossos filhos morressem para mim, mas eles não foram vítimas inocentes: quiseram morrer ao querer acabar comigo em nome da virtude. Não adiantou eu explicar aos dois que eu nunca os havia traído e nem abandonado. Eles deviam saber disso, mas não queriam. Foram ingratos. Mais que isso: agiram contra mim. Eu tive de aceitar a morte deles, porque nada mais me restou.

Tornou-se inútil e ridículo proibir que os filhos maiores pusessem os pés em minha moradia ou que fossem ao meu enterro: não iriam de qualquer modo. Só apareceriam depois, para recolher o espólio e tirarem tudo o que pudessem. A maldade da mãe regia seu agir. Tinham se tornado diabos comandados pela mãe-Satã. Precisei exorcizá-los para não sucumbir. Não era essa a emancipação que eu pretendera dar a eles, mas não tive outra. Tendo eu esperado que se tornassem maiores, podiam cuidar de si mesmos. Foi pior para mim, mas melhor para eles.

Tive de aprender a deixar de amar a quem eu havia adorado, deixar de cuidar a quem eu sempre cuidara. Pensei que semeara amor, e colhi ódio. Onde coloquei carinho, colhi cacetadas. Cada dia era um novo choque. Um primo dileto, que gostava muito da vida, morreu de câncer naquele período; eu, que queria morrer, continuava vivo. Passei a me perguntar se seria por pura covardia. Achei que morrer seria fazer concessão demais à ex-mulher e aos ex-filhos que me queriam ver morto. Seria também um desaforo aos filhos pequenos, que não tinham culpa de nada.

Eu não estava animado a viver, mas estar disposto a morrer era dar uma vitória a um inimigo que não merecia tê-la. Eu nunca pensara que teria de encarar meus filhos e minha esposa como inimigos, mas também isso eu tive de aprender. Caí no mutismo e no silêncio. Eu precisava proteger os meus filhos menores dos ataques vindouros dos meus filhos maiores. Fiz um testamento, doando metade dos meus bens para a mãe dos meus filhos menores. Dois amigos testemunharam por mim num cartório e garantiram que isso seria cumprido. Se a lei brasileira permitisse, eu teria feito mais. Como não permitia, passei a casa para o nome da mãe dos meus filhos menores, resguardando-me o usufruto em vida.

Tentei visitar minha mãe. Ela disse que meu primo tinha morrido porque soubera da minha separação. Eu só respondi que o câncer que o matara era anterior e não tinha sido posto nele por mim. Ela me proibiu de levar os meus filhos menores à sua casa: eram “filhos do pecado”. Não quis tomar conhecimento deles. Assim também os meus irmãos e meus sobrinhos. Sobre mim, “não se falava mais”. Disseram: “isso nunca aconteceu por aqui”. Era hipocrisia: tanto meu tio quanto meu pai tinham tido filhos fora do casamento, só que nunca haviam reconhecido e nem tomado conhecimento de nenhum. Era assim que “isso nunca tinha acontecido”. Avisei que “se meus filhos menores não forem reconhecidos e aceitos pela família, eu não vou aceitar o membro da família que não os aceitar”. Era a mesma regra que eu havia aplicado a minha esposa e aos meus filhos mais velhos. Acabei tendo de mandar quase todos esses parentes do interior “ao diabo que os carregue”.

Reconheço e confesso que minha mãe até me disse que eu ainda poderia entrar em sua casa “porque eu não fecho a minha porta para ninguém”: se o pior criminoso poderia entrar, também eu poderia. Mas assim eu não queria entrar em sua casa. Eu fiz o que me pareceu mais correto. Tive de aprender que o que parecia ser o mais correto acabou sendo o mais errado, e que o mais errado, o que parecia ser mais errado acabou sendo o mais correto. O meu certo ou errado não era ditado nem pela lei e nem pelos “bons costumes”: eram as normas que pulsavam em mim.

Retirei-me para um deserto interior. Alguns amigos me chamaram para sair com eles: fui, mas logo voltei ao deserto, como se nele estivesse mais perto de um deus. Eu não tinha a hipocrisia do eremita, que só abandona as glórias do mundo porque acredita ficar mais perto da glória eterna. Eu apenas tinha cansado dos humanos, a começar por mim. Depois, cansei de estar cansado.

Decidi agir. Minha querida esposa usara tudo para me matar: o stress para pressão, as ameaças, os filhos, as denúncias, as humilhações, para acabar concentrando tudo no piano. Eu não me perdoei por ter cedido o instrumento no tribunal. Devia ter exigido a casa e o piano, sem arredar pé em nada. Como havia cedido, vi que eu havia me deixado quebrar por dentro e perdido toda a dignidade diante de mim mesmo. Ao ceder, eu já não era mais nada. A dignidade do escravo é a revolta. Quem dobra a espinha, curva a cabeça e se ajoelha, esse perde a dignidade humana. Ao aceitar a vingança da minha ex-mulher como forma de justiça, eu me deixei matar. Ao respeitar o juiz que me desrespeitara, eu perdi o respeito diante de si mesmo.

Eu estava morrendo de tanta culpa diante de mim mesmo. Não conseguia mais dormir. Antes de morrer, eu precisava corrigir erros meus e alheios. A única coisa que me permitiria recuperar alguma dignidade seria matar aquela que havia tentado acabar comigo de vários modos. Procurei a minha ex-esposa na saída da escola em que ela trabalhava. Peguei a tranca do guidão e dos pedais do carro: segurando-a com as duas mãos, aproximei-me da minha querida ex- e bati com toda força na cabeça, no rosto, no pescoço e onde quer que conseguisse acertar. Ela caiu no chão e eu continuar a bater até cessar todo movimento. Havia sangue por todo lado. Fui preso e condenado. Senti-me aliviado e feliz, como quem cumpriu uma obrigação.

Fui visto como aniquilador da moral. Fui punido por aqueles que se colocaram no pedestal da virtude. Fui açoitado no pelourinho como “neguinho fujão”, fui condenado como assassino, mas não me arrependo de nada que fiz. Só me arrependo do que deixei de fazer no tempo certo. Eu poderia ter me poupado e salvo o que me importava se tivesse sido calculista como minha esposa. Confiei em quem não devia, e fui idiota na proporção da confiança.

Tentei, no entanto, reinventar a mim mesmo, procurar o meu caminho. Morri para poder renascer. Eu me reconstruí, e abri caminho para outros. Nada compensa, no entanto, a minha covardia, ainda que eu a tenha chamado de prudência; nada compensa as perdas que sofri, ainda que o Estado tenha exercido a vingança com o nome de Justiça; nada compensa o vazio sem remédio do que se foi, ainda que o rancor tenha se dado o nome de virtude. Fico nadando em vácuos do nada e imaginando as vacas no pasto: nada se resolve, tudo se dissolve.

Escrevo nas areias do tempo vindouro, mas não como quem pretende construir uma alma imortal de papel. Escrevo como uma mulher grávida que está parindo: com sangue e dor e risco de vida, mas sem outra opção. E agora escrevo como se tivesse o meu filho menor no colo, enquanto ele me permitir escrever. Às vezes ele me visita com a mãe e o irmão. Estão envergonhados de mim. Deixo esse conto no colo dos leitores, para que o embalem e encontrem um modo melhor de ser. Ou não.
 

 

 

 

 

13.07.2005