Adriano Espínola, com Praia Provisória -
Prêmio 2007 de Poesia da Academia Brasileira de Letras -,
aposta na leveza e na concisão como requisitos básicos da linguagem poética.
Leveza no olhar e no captar os materiais que se dispõem à sensibilidade
lírica; concisão no que concerne à formalização do verso: curto, medido,
musical.
Se lá observa-se a capacidade de tocar as coisas,
os sentimentos, as percepções, a própria linguagem com o impacto do flagrante
poético, reinventando, portanto, experiências e sensações. Aqui, no corpo
mais palpável da forma, projetam-se o domínio técnico e vocabular, a consciência do
ritmo e o sentido plástico, concreto, das imagens.
Se pensarmos também na claridade, ou para lembrar
Bachelard, num viés solar onde a luz se faz signo seminal, teremos uma das
trindades categóricas dessa dicção. Vejam-se, por exemplo, poemas como
'Verão', 'Meio-dia', 'Sede', 'Fera', 'Café' e 'Insônia', todos, a seu
modo, permeados por sinais incandescentes, estilhaços de significação em
que a luz, com seus imponderáveis sortilégios, é componente fundamental.
Transposta da natureza para a consciência, da consciência para a página
pela transfiguração característica da poesia, a luz - signo quase icônico -
chega a repercutir, ou melhor, a percutir, assim, materialmente na textura
do verso.
'Feito um cão solto/ súbito o sol/salta janela/
adentro do quarto', escreve o poeta em 'Fera', exercitando, na montagem do
poema, o jogo daquilo que T. S. Eliot denomina de 'correlato objetivo',
como um contrapeso ao jorro emocional típico de poetas invertebrados,
frouxos e melosos. A emoção, aqui, é substituída pela ação e
presença de fatores, objetos e situações tangíveis que, convertendo-se em
experiência sensorial, como que evoca a emoção imediata, todavia sem o risco
do subjetivismo linear.
Vamos ao resto do texto: 'Inquieto, morde/os punhos da rede,/
derruba a sombra/ vã do retrato,//lambe o pé sujo/lá da parede,/fuça a amarela/mancha do
espelho,//late:luz! luz!-/ depois se enfia,/fiel, no velho/par de chinela.//
(Como a cidade/lá fora, fera,/ na alva coleira/do novo dia.)'. A leveza, a concisão,
a musicalidade, a precisão, a claridade e a epifania são traços que se fazem presentes
neste e em tantos outros poemas do livro.
Seja no modo de dizer o amor, caro motivo do poeta cearense,
em especial no texto 'Negra', seja no registro descritivo de sutileza metafísica, em
A Cebola', seja nas correspondências fônicas, morfológicas e plásticas de 'Cântaro',
'Pássaro', 'Pássara' e 'Paloma', Espínola age como puro 'verse-maker', desbastando as
impropriedades que podem fraturar a ordenação das palavras, as cadências do ritmo e a
força sugestiva das imagens.
À sensibilidade e à imaginação do poeta une-se o
lastro de leitura, pois Praia Provisória, assim como outros títulos de sua obra,
demonstra que Espínola é um poeta culto, um poeta-leitor, que tem seus pares,
suas afinidades, suas preferências. Um poeta que também elabora o seu paideuma.
A seção 'Os hóspedes' oferece um pequeno roteiro dessas leituras.
Leituras que se prestam, evidentemente, ao labor de outras suas também
reinvenções poéticas. Os poemas, aqui, pretendem dialogar com outros autores numa
prática intertextual explícita, porém atenta aos elementos viscerais da
fala anterior, ao ingrediente impermeável que perdura e permanece na
tradição estética. 'Ulisses', 'São Jerônimo', 'Luís', 'Euclides' e 'Borges'
podem se destacar, entre outros, pois tendem a se cristalizar na memória do
leitor enquanto figurações vérsicas das mais singulares.
Há, ainda, nesta coletânea, o perscrutador da
metalinguagem, o que dispõe seus instrumentos no palco da página para ditar
conceitos, estabelecer caminhos, externar dúvidas e perplexidades diante da
poesia, 'armadilhas para apanhar o tempo',
segundo palavras do próprio poeta, no texto que
abre a última seção do livro. A verve crítica e irônica consolida o
empenho metalingüístico sem que essa vertente, tão comum à poesia
moderna e pós-moderna, não se transforme em estéril tautologia.
Nesta tópica, o fulgor das palavras ilumina
também o tecido carnal da existência.
Basta, desse modo, pinçar estes versos, que me soam como legítimas
pedras de toque: 'Não há outra verdade/senão a que invento'(p. 105);
'No esplendor da manhã, furtar uma elegia' (p. 109) e
'De manhã cedo,/ salta do chão/o cão do esquecimento' (p. 115).
É prazeroso freqüentar as águas poéticas
dessa Praia Provisória, com a garantia de que os arrastões das semioses
forçadas -lúdicas, gráficas, experimentais-, em que tantos ingênuos do
Parnaso se comprazem, passam ao largo de suas areias encantadas.
Exemplos desta natureza reforçam-me a certeza de que a poesia
brasileira contemporânea tem salvação.