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Florisvaldo Mattos


 

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A Tarde, Salvador, Bahia, Brasil
Sábado, 21 de agosto de 1999


 

Entrevista de Maria Kodama



MARIA KODAMA: “Borges me fez indestrutível”


Na abertura de um de seus últimos livros de poesia, La cifra
(Buenos Aires: Alianza Editorial, 1981), ao encerrar a dedicatória, para ele  “um ato mágico, como todos os atos do universo”, Borges considerou o momento e o modo “mais grato e mais sensível de pronunciar um nome” e escreveu textualmente: “Eu pronuncio agora seu nome, Maria Kodama. Quantas manhãs, quantos mares, quantos jardins do Oriente e do Ocidente, quanto Virgílio”.

Pois bem, foi com esta elocução, revelando um nome, que o jornalista Maximiliano Seitz, do jornal argentino La Nación, introduziu uma entrevista (edição do último dia 8) com a viúva de Borges que, segundo ele, não foi apenas a mulher que passou a formar parte da vida cotidiana do escritor, mas que fez parte de sua existência literária, até como inspiração declarada, para ser hoje quem fala pelo autor em todo o mundo, como a herdeira de seu patrimônio literário, fato que gerou oposição explícita, e até repúdio, da família de Borges e indignação e protestos de vários setores intelectuais da Argentina, tachando-a de usurpadora.

Adiante seguem os principais trechos do diálogo de Maria Kodama com o jornalista. Ela, altiva e disposta a combater com energia seus detratores, proclama que está acontecendo agora o que não se poderia presumir há algumas décadas: a obra de Borges deixa de ser patrimônio exclusivo de uma intelectualidade enfeixada  numa torre de marfim, de ciosos gabinetes de estudo na produção de textos complexos e cifrados, para abarcar um número cada vez maior de leitores de língua espanhola e de várias outras pelo mundo, através de traduções em seqüência.
 

- Qual a transformação da figura de Borges, desde sua morte até o momento?
Maria Kodama - Borges não é um autor que, como muitos, ficou um momento no purgatório depois de morto; não foi relegado nem esquecido. Pelo contrário, sua obra parece ter crescido como nunca. Primeiramente, foi admirada por um círculo muito intelectual e exclusivo. Mas, logo, este círculo se foi ampliando e se estendeu a outras linguagens. Borges passou a ser objeto de interesse do cinema, da ópera, do teatro, da música, da filosofia e até da ciência. E essa expansão foi acompanhada por um crescimento no número de seus leitores, especialmente entre as novas gerações, como comprova a atitude de muitos que me param na rua, me fazem perguntas sobre ele e até recitam de memória um poema de Borges.

- E que mudou em você em todos esses anos?
M.K. - Com a morte de Borges minha vida se tornou muito dura, pelo grande número de ataques de que fui alvo. Mas agora estou muito melhor. Essa luta feroz, vinda de quem eu não esperava, me serviu de lição: descobri em mim um centro maravilhoso, formado pelo amor de meus pais, de meus amigos e de Borges. Isso me faz sentir indestrutível.

- Admite que persiste uma visão estereotipada de Borges (o labirinto, a biblioteca infinita)?
M.K. - Claro. Fala-se até cansar de Borges e o labirinto, de Borges e a biblioteca infinita, ainda que sua obra possua uma riqueza que vai mais além de tudo isso. Não obstante, para mim o pior estereótipo de todos é o que o apresenta como um ser infeliz.

- Que diria aos que pensam assim?
M.K. - Que ele tinha uma extraordinária capacidade de relacionar-se ludicamente com a vida.

- Borges já não é alvo da crítica aberta que sofria em outras épocas, tampouco existe hoje intelectual que o renegue. Que diz disto?
M.K. - A figura de Borges sempre foi controvertida, porque ele dizia sempre o que pensava. Talvez com o tempo tenha prevalecido o valor de sua obra por sobre suas opiniões. Também é possível que haja um tanto de oportunismo entre alguns dos que agora se declaram seus admiradores. No entanto, eu prefiro acreditar na primeira possibilidade.

- Você tem sido questionada por reeditar textos que Borges preferia relegar.
M.K. (irritada) - Eu não tenho que justificar nada, porque Borges me fez a herdeira de sua obra e isso está claríssimo. E mais: quem se arroga o direito de saber o que ele queria ou não? Se uma pessoa lega a outra sua produção é porque a considera capaz e com ela tratou sobre o assunto.

- Está inteirada dos projetos legislativos propondo a repatriação dos restos mortais de Borges, trazendo-os de Genebra, onde repousam, para a Argentina?
M.K. - Essas propostas são uma barbaridade. Creio que se deve respeitar a vontade última de um cidadão livre.

- Que vai fazer no próximo dia 24?
M.K. - Uma grande festa, íntima.

- Que acha que teria feito Borges para festejar seus cem anos?
M.K. - Teria desejado que nós ambos nos esgueirássemos por um deserto. É o que já tínhamos planejado.

(FMtt., redação,
seleção e tradução)

 

Jorge Luís Borges

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