Prefácio
DE CORPO INTEIRO
JC Teixeira
Gomes
Este livro concretiza uma antiga aspiração
dos admiradores da poesia de Florisvaldo Mattos: vê-la reunida no
seu conjunto, permitindo, assim, a visão integral, pelo menos até o
presente, de uma das produções poéticas mais relevantes produzidas
(não só na Bahia, mas em escala nacional, ressalte-se)
aproximadamente dos anos 50 até os nossos dias.
Disse Victor Hugo, num dos seus versos
mais poderosos, que “um poeta é um mundo em um homem contido”.
Lembremos que a poesia ocidental nasceu sob o signo dessa verdade,
se lembrarmos que a Grécia Clássica está em Homero e grande parte da
majestade de Roma, em Virgílio. O grande verbo poético, sobretudo na
poesia épica, tem o condão de sintetizar as particularidades, as
aspirações e os grandes rasgos culturais dos povos celebrados pelos
rapsodos, que se fazem, assim, seus intérpretes mais autorizados.
Desejei, com o parágrafo acima, lembrar
que uma das marcas fundamentais da poesia de Florisvaldo Mattos é
precisamente o impulso épico, ao lado do seu pendor lírico, que o
fez escrever um dos conjuntos de poemas curtos, sobretudo sonetos,
mais belos e representativos da sua geração. E o fez sobretudo
porque é um criador dominado pelo “lavor da razão”, como confessou
num dos seus poemas, fato que ordenou a sua linguagem para que ela
se despojasse de todo ornamento inútil , buscando a essencialidade
da expressão verbal, sem os transbordamentos habituais no lirismo
brasileiro.
O compromisso épico está na base da poesia
do nosso autor, desde o momento em que ele lançou o livro Reverdor,
de 1965, celebrando a saga heróica dos pioneiros que desbravaram as
terras baianas, nos albores da colonização, como lemos nos longos
poemas “A domação das pedras” e “Cinco monólogos de Garcia D´Avila”
ambos de grande fôlego e transcendente força poética. E esse
compromisso se dilatou nos versos que evocam a sua condição de
grapiúna, nascido e criado na terra da outrora poderosa lavoura
cacaueira, que deu à sua poesia a dimensão telúrica inaugurada na
poesia ocidental por Hesíodo, Teócrito e Virgílio, este último um
preceptor da faina agrária com as suas famosas ”Geórgicas”, que
podem ser lidas como um tratado do amanho da terra. Num dos seus
poemas mais trabalhados, diz-nos Florisvaldo Mattos:
Meu canto
gravado de um sabor oculto de águas
Esquecidas
fabricarei no campo com suor
De rudes
trabalhadores, de chuvas, sepultando-se
De búzios
pontuais, lamentos e desgraças.
Forçosamente
rústicos caindo sobre os campos,
Pelo ar,
compacto de húmus e branco vinho caindo
Sobre
plantações. Sobre húmus caindo (...).
Ou então, como no “Poente aos bois”:
No olhar de
melancolia e trabalho vespertino
Passeia
desnudo entre folhas cegas
Um
sacrifício comum de agrícola fadiga,
Paisagem
desesperada nutrindo-se
De sombras,
de canção despedaçada
Entre cedros
e riachos.
Em suma, como bem expressou Hugo no verso
que transcrevemos, há um mundo que pulsa na poesia de Florisvaldo
Mattos, o mundo da terra grapiuna e da saga dos conquistadores do
passado, tão presente em numerosas outras composições suas,
expressas em versos brancos (isto é, sem rimas) com tanta
naturalidade e competência artesanal, que preserva a musicalidade
tão característica do decassílabo do nosso poeta, próxima, por
vezes, dos líricos de língua espanhola. A rima, aliás, jamais foi
usada na grande poesia épica, e chegou a ser qualificada por Milton,
no prefácio de “Paraíso Perdido”, como invenção “de uma idade
bárbara”, lembrando o poeta que ela não existia no tempo de Homero e
de Virgílio, ou seja, na idade de ouro do canto coletivo.
O outro polo essencial da criação de
Florisvaldo Mattos é o cultivo de um lirismo sempre comedido,
trabalhado com extrema propriedade de recursos, sendo certamente o
único na sua geração que transita do lírico para o épico com
absoluta naturalidade, mestre nos dois caminhos poéticos, consciente
do poder que tem sobre as palavras.
O território poético brasileiro está
repleto de poetas que lutam com as palavras, aliás, uma luta “vã”,
como lembrou Carlos Drummond de Andrade, pois o fazer poético passa
a ser um desastre verbal, quando traduz um confronto do poeta com os
seus meios de expressão. Não é raro que os poetas nacionais sejam
derrotados pelas palavras, em vez de, pelo menos, domá-las ou
seduzi-las, num processo amoroso que conduz ao parto perfeito, entre
nós tão raro.
Se o calor dos trópicos torna o pensamento
difícil, conforme assinalou Sílvio Romero, mais difícil ainda é o
pensamento poético isento dos ardores tropicais, estimulador do
martírio da verborragia nacional. Pois em Florisvaldo Mattos o que
ressalta é a contenção. A palavra tem que ser trabalhada como
suporte essencial, jamais supérfluo, do arcabouço do poema, ser de
linguagem e não um reduto de sentimentos estereotipados, prosaicos
ou confessionais. Quem quer confessar-se deve escrever cartas ou ir
ao padre e não tentar poemas, pois a magia da escrita transcende a
lamúria do confessionário. Por saber que um poema não é um redutor
do muro das lamentações, o nosso poeta soube construir em sua obra a
linguagem das essencialidades liricas, aquela que se transmite sem
excesso, buscando o mínimo para obter o máximo. Como, por exemplo,
neste magnífico soneto, construído sobre um jogo raro de
excepcionais metáforas:
Talvez um
lírio. Máquina de alvura
Sonora ao
sopro neutro dos olvidos.
Perco-te.
Cabra que és já me tortura
Guardar-te,
olhos pascendo-me vencidos.
Máquina e
jarro. Luar contraditório
Sobre lajedo
o casco azul polindo,
Dominas
suave clima em promontório;
Cabra: o
capim ao sonho preferindo.
Sulca-me
perdurando nos ouvidos,
Laborado em
marfim – luz e presença
De reinos
pastoris antes servidos –
Teu pelo,
residência da ternura,
Onde
fulguras na manhã suspensa:
Flor animal,
sonora arquitetura.
Já escrevi sobre essa obra-prima estas
palavras, que agora transcrevo, numa homenagem ao leitor:“Toda uma
tradição da poética ocidental está aí presente, inclusive da
vertente barroca(...). A riqueza dos processos de substituição e
associação transforma a cabra contemplada pelo poeta numa “máquina
de alvura”, num jarro abandonado e, sucessivamente, pela impressão
transmitida à distância do ângulo de visão, numa flor e numa peça de
arquitetura jogada na paisagem. Somente a alta poesia pode
transubstanciar dessa maneira a realidade do mundo físico pela
linguagem. Por isso a poesia é o mais difícil e complexo dos gêneros
literários(...)”.
Quanto aos novos poemas reunidos neste
livro, novamente se instaura aqui o envolvente jogo entre o épico e
o lírico que, intermitentemente, assinala toda a produção do autor,
como um compromisso essencial da sua engenharia poética, da melhor
linhagem aristotélica, pela aderência à forma despojada, como
poderemos ver em muitos dos que o poeta publicou em
Mares Anoitecidos (2000), onde
retoma a vertente épica, quando elege como tema, de forma deliberada
e autônoma, o malogro dos holandeses na invasão da Bahia entre 1624
e1625, em que toma o partido da descrição de emoções e vivências na
perspectiva trágica dos vencidos, como disse, “pela voz de quem se
inseriu num jogo de contradições” e desespero, de cuja série destaco
o poema intitulado “Rochedos”, de veia épico-lírica, evocativa de um
itinerário barroco de infortúnios:
Meu coração agora te
pertence
lua que vaga sobre esses
rochedos,
eles mesmos reflexos de
longínquos
muros, agora esfinges a
espreitar
distâncias, a arrimar
arquitetura
nostálgica de cercos, a
exumar
brasão latino ou artifício
mouro.
Meu coração agora vos
pertence,
graves rochedos, arsenal de
fúrias,
que são artes do tempo,
vosso algoz:
em quieta hora de tarde ou
noite morna,
decreto imemorial que a
espuma lavra,
a ruína e morte, e a
solidão, alude
o som da água que ruge a
vossos pés.
Ou quando, em
Galope Amarelo e Outros Poemas
(2001), a voz lírica se alça por luxurioso percurso em que se desata
e se impõe a presença feminina nos catorze decassilábicos dardejos
de “Passos e acenos”:
(...)
De pé,
agitas os vaporosos membos,
ao calor da
voz que atordoa o vento.
Sentada, as
formas se acomodam, urdem
rútilo
desenho. É quando, pasmo, ouço
o marulho do
sexo, ávido. Bem
que mereço
essa onda, ronda de garras
que me
acenam, me buscam pela tarde.
Poemas outros neste mesmo timbre lírico há
entre os inéditos desta sua Poesia
Reunida, todos lavrados numa mesma oficina de madura inspiração
e técnica, como no soneto“Estrela súbita”, em que ressoa dadivosa a
idéia nietzcheana do eterno retorno:
Nunca te vi dizer-me que me
queres.
Eu queria te ver tocando
flauta,
Sem a sabedoria das
mulheres,
Na varanda distraída, como
incauta.
Na de lusos pensei história
antiga,
Ao pressentirem ninfas entre
arbustos.
Se o vento manda que o
perfume as siga,
A vibração começa pelos
bustos.
Vens de um país de renovadas
auras.
Como ninfa te portas, se
proponho
Mover os muros que entre nós
instauras.
Do vento ouço o ruflar de
suave escolta.
Marinheiro que agora sai de
um sonho,
Cogito que eras tu que estás
de volta.
E assim outros mais e mais outros.
Mas não nos alonguemos, pois o importante é que os leitores possam
traçar por conta própria o livre roteiro das descobertas. Enfim, que
saibam desdobrar à sua frente, com sensibilidade e devoção, o
grandioso mapa da poesia de Florisvaldo Mattos.
João Carlos
Teixeira Gomes é jornalista, poeta, articulista e ensaísta;
professor aposentado do Instituto de Letras da Universidade Federal
da Bahia, membro da Academia de Letras da Bahia. |