Floriano Martins
A Inveja entre os Poetas
Cearenses se detestam. Queimam-se vorazmente
de inveja. Esgueiram-se à espera do destaque de um conterrâneo
para então queimá-lo vivo. Ao contrário dos baianos,
que promovem tudo o que fazem, por mais duvidosa que seja a qualidade,
cearenses não suportam a idéia de que justo um dos seus lhe
supere em algo. São sempre magnânimos em sua demência
auto-destrutiva. Em seu nome, a todo momento perdem os trilhos da história.
Cearenses jamais souberam conviver com idéia de um Bund (grupo cujos
membros são relacionados unicamente por laços de eleição,
como bem define Jules Monnerot) ou tiveram seriedade suficiente para definir
um programa de ação comum. Neste sentido, cearenses não
poderiam ter fundado o grupo Noigandres ou mesmo a Tropicália.
Cearenses só puderam ir até
o Pessoal do Ceará. Os que não se desagregaram passaram a
dar voltas em torno a um regionalismo estreito. Pequena visão de
mundo.
Cearenses são também presunçosos
e se sentem sempre grandiosos em tudo o que fazem, sempre os melhores do
mundo, cegos e vibrantes em sua bárbara presunção.
Alguns cearenses são, de fato, geniais. Alberto Nepomuceno foi genial.
Antônio Bandeira também. O mesmo vale para o José Albano.
Em âmbito local, geniais foram os empenhos de José Carlos
Mattos para fazer existir um teatro que quase não tínhamos
- verdadeiro exercício de tirar leite das pedras. Genial e contagiante
é o lirismo das canções de Petrúcio Maia.
Quanto aos vivos, alguns perambulam por
aí e nem os percebemos cearenses. Quem liga para todos eles? Cearenses
não se orgulham de seus pares. Cearenses seguem párias de
si mesmos. Disse certa vez o Belchior: "Sabe o que eu adoraria? Era que
a cidade de Fortaleza nos adotasse a todos (...) como artistas seus". Mas
cearenses não adotam cearenses. Cearenses fazem uma falsa idéia
da importância que possuem na esfera cultural brasileira. E conspiram
em bares contra aqueles que produzem.
O ingrediente da inveja encontra-se no
pólo negativo de nosso perfil psicológico, amparado por seu
fascinante extremo, nossa decantada cordialidade. De fato, cearenses são
carinhosos e afáveis com os vizinhos das mais intrigantes plagas.
São tão exímios em sua cordialidade que com grande
freqüência alimentam-se dos nutrientes mais débeis da
cultura nacional. Cearenses não se merecem. Não avaliam a
riqueza da contribuição de cearenses como Adolfo Caminha,
Aldemir Martins, Eleazar de Carvalho. Não dão por conta da
existência de Sigbert Franklin, Isabel Lustosa, Mona Gadelha, José
Wilker. Adoram o ouro dos outros. Desprezam seu próprio luxo.
E graças a um outro componente de
nosso caráter, a molecagem, cearenses não se aprofundam naquilo
que fazem, sequer procuram tornar estratégica sua molecagem. Cearenses
jamais constituiriam um movimento afirmativo e libertador. Cearenses só
têm olhos depreciativos e mesmo seu sentido de negação
total de valores é inteiramente desprovido de perspectiva histórica.
Chegam a negar a si próprios. Cearenses são dadaístas.
Cearenses jamais seriam surrealistas. A resultante é uma cultura
nitidamente autofágica, vagando entre o moleque e o basbaque, a
indisciplina a esmo e o deslumbramento vulgar.
Contudo, há esforços vitalizantes
e positivos de recuperação da memória de nossa cultura,
longe dos apelos fáceis ao regionalismo servil. São exemplos
o Catálogo Geral da obra de Alberto Nepomuceno, organizado por Sérgio
Alvim Corrêa; o livro Antônio Bandeira, um raro, preparado
por Vera Novis; a edição das Obras Completas de Moreira Campos;
o livro O balanceio de Lauro Maia, de autoria de Nirez - embora este lamentavelmente
tenha ficado restrito ao público local, sem ascender à difusão
merecida.
Cearenses não fazem idéia
do peso dessas obras. Lamenta-se também a escassa difusão
do trabalho essencialíssimo de Cristiano Câmara e Sânzio
de Azevedo.
Mas temos que afinar nossa trágica
lira apenas para os acordes da literatura, segundo sugere a presente edição.
Resenhando uma antologia de poetas cearenses disse Ruy Vasconcelos que
não temos entre nós um poeta moderno equivalente a Joaquim
Cardozo, ou mesmo um pós-moderno à altura de Torquato Neto
ou Paulo Leminsky. Me parece incontestável a grandeza da poesia
de José Alcides Pinto à luz da modernidade. Sabemos que houve
malogro em seu percurso final, ao contrário do pernambucano. Mas
acaso o malogro não é a tônica da produção
de Leminsky? E não constitui um malogro toda a trajetória
final da obra de Drummond? Há por desfiar um rosário de malogros
no cenário da literatura brasileira.
Por que o malogro dos outros é mais
aceitável?
Quanto ao "pós-moderno"', defendo
que desde os caprichos e relaxos da "geração" arregimentada
por Heloísa Buarque de Holanda praticamente se afunda num vazio
a poesia brasileira.
Entre as exceções: Ana Cristina
César, Sérgio Campos, Ruy Espinheira Filho, Leonardo Fróes,
Adriano Espínola, Paulo Henriques Brito, Donizete Galvão,
Alexei Bueno, Floriano Martins, Fábio Weintraub.
Em dez brasileiros, dois cearenses. Mas
de que vale isto se a Folha de São Paulo indica Nelson Ascher como
o poeta mais importante desde João Cabral? De que vale o empenho
se não lhe corresponde o reconhecimento? Toda a história
da literatura brasileira carece de uma revisão crítica desarticulada
de seus vícios de caserna, embora isto nada tenha a ver com os eventuais
traumas de inadequação dos cearenses ao cenário nacional.
Se temos bons escritores? Desconheço
qual critério poderia ser aceito na redução do valor
da obra de autores como José Albano, Aluísio Medeiros, Nilton
Dias, Moreira Campos ou Gerardo Mello Mourão. Sem apelarmos aos
recorrentes exemplos de José de Alencar e Raquel de Queiroz, podemos
pensar em Fran Martins, através de seus dois volumes mais importantes:
A rua e o mundo e Dois de Ouro, tanto quanto em Francisco Carvalho - a
exemplo da imperativa modernidade de seu Dimensão das Coisas (1967).
Em uma geração mais recente não se pode esquecer a
notável novela que é A guerra da donzela (1982), de Nilto
Maciel, nem mesmo os livros do raramente lembrado Carlos Emílio
Correia Lima. Ao lado deles, podemos enumerar Meus Eus, de Pedro Henrique
Saraiva Leão e Tumultúmulos, livro que publiquei em 1994,
valendo ainda lembrar dois jovens autores: Pedro Salgueiro (O peso do morto)
e Jorge Pieiro (Neverness).
Acaso não está claro que
temos uma sólida contribuição às letras brasileiras?
Por que então estamos sempre a pensar o contrário?
Talvez porque gostaríamos de ter
um Paulo Leminsky. Talvez porque confundamos qualidade com quantidade.
Talvez porque nos falte uma dose maciça de seriedade e consistência
- e outra tanta de auto-estima. Talvez porque ainda pedimos licença
para entrar em qualquer lugar. Talvez porque ainda estejamos demasiado
presos aos grilhões de um regionalismo massacrante e redutor. O
fato é que não há problemas de relacionamento entre
a literatura cearense e a literatura brasileira. O mesmo vale para toda
a esfera cultural. Há apenas o que sempre houve: cearenses que detestam
cearenses.
Cearenses que não ajudam cearenses. |
(in O Povo, caderno Sábado, 11.01.97)
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