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Um esboço de Leonardo da Vinci - link para page do editor

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Floriano Martins

<florianomartins@rapix.com.br>

Crédito da foto: Raimundo Gadelha (São Paulo, 2004)

Floriano Martins (Fortaleza, 1957). Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Tem se dedicado, em particular, ao estudo da literatura hispano-americana, sobretudo no que diz respeito à poesia. Foi editor do jornal Resto do Mundo (1988/89) e da revista Xilo (1999). Em janeiro de 2001, a convite de Soares Feitosa, criou o projeto Banda Hispânica, banco de dados permanente sobre poesia de língua espanhola, de circulação virtual, integrado ao Jornal de Poesia.

Críticas sobre sua obra, assim como entrevistas com o poeta, já foram publicadas no Brasil e no exterior, a exemplo de jornais como El Universal (Panamá), El Comércio (Peru), El Universal (México), El País (Uruguai), El País (Colômbia), O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, Correio Brasiliense, O Povo, Diário do Nordeste, Estado de Minas, O Globo, O Estado do Tapajós, e revistas como Prisma (Colômbia), Común Presencia (Colômbia), Paréntesis (México), Storm Magazine (Portugal), Alforja (México), Mapocho (Chile), TriploV (Portugal) e Voces (Estados Unidos) - material crítico assinado por nomes como Sérgio Campos, Carlos Felipe Moisés, Wilson Martins, José Paulo Paes, Maria Esther Maciel, Rolando Toro, Jorge Rodríguez Padrón, Ivan Junqueira, José Castello, Rodrigo Petronio, Eleuda de Carvalho, Carlos Germán Belli, Miguel Gomes, Alfredo Fressia, Maria Estela Guedes, Nicodemos Sena.

Com larga trajetória de colaboração à imprensa, tem escrito artigos sobre música, artes plásticas e literatura, incluídos nas publicações citadas e também em outras, como Comércio do Porto (Portugal), Letras & Letras (Portugal), International Graphitti (Costa Rica), El Artefacto Literario (Suécia), Exégesis (Porto Rico), Crítica (México), Blanco Móvil (México), Casa del Tiempo (México), e brasileiras como Rascunho, Alô Música e Poesia Sempre.

Organizou para as revistas mexicanas Blanco Móvil e Alforja duas edições especiais dedicadas à literatura brasileira, respectivamente "Narradores y poetas de Brasil" (1998) e "La poesía brasileña bajo el espejo de la contemporaneidad" (2001), bem como as edições especiais "Poetas y narradores portugueses" (Blanco Móvil, México, 2003) e "Surrealismo" (Atalaia Intermundos, Lisboa, 2003), respectivamente em parceria com Maria João Cantinho e Maria Estela Guedes. Atualmente organiza a Obra Poética de Carlos Drummond de Andrade para a Fundación Biblioteca Ayacucho, da Venezuela

Como artista plástico participou de exposições como "O surrealismo" (Núcleo de Arte Contemporânea, Escritório de Arte Renato Magalhães Gouvêa, São Paulo, 1992), "Lateinamerika und der Surrealismus" (Museu Bochum, Köln, 1993) e "Collage - A revelação da imagem" (Homenagem ao centenário de André Breton 1896-1996, Espaço expositivo Maria Antônia/USP, São Paulo, 1996).

Em maio de 2000 realizou o espetáculo Altares do Caos (leitura dramática acompanhada de música e dança), no Museu de Arte Contemporânea do Panamá. Um ano antes também havia realizado uma leitura dramática de William Burroughs: a montagem (collage de textos com música incidental), na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo.

Dentre algumas conferências que tem proferido, destacam-se "América Latina e Identidade Cultural" (Centro de Humanidades, Universidade de Brasília, Brasília, 1998), "Linguagens contemporâneas e identidade nacional: literatura" (SESC Pompéia, São Paulo, 1999), "Algunos poetas brasileños (Ivan Junqueira, Dora Ferreira da Silva, José Santiago Naud, Sérgio Campos, Claudio Willer, Ruy Espinheira Filho, Adriano Espínola e Donizete Galvão)" (Faculdad de Humanidades de la Universidad de Panamá, 2000), "Sobre a condição editorial de algumas revistas de cultura na América Latina" (Instituto Goethe, São Paulo, 2001), "Surrealismo & Brasil" (Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2003) e “La modernidad de la poesía hispanoamericana” (Centro de Estudios Latinoamericanos Rómulo Gallegos, Caracas, Venezuela, 2004).

Participou dos seguintes volumes coletivos: Camorra (volume monográfico sobre Harold Alvarado Tenorio, Ediciones La Rosa Roja, Bogotá, 1990), Focus on Ludwig Zeller, poet and artist (Mosaic Press, Oakville-New York-London, 1991), Adios al siglo XX (Edição dedicada à poesia de Eugenio Montejo, Separata da revista Palimpsesto, Sevilla, 1992), O olho reverso. 7 poemas e um falso hai-kai (Edição comemorativa dos 41 anos de poesia de José Santiago Naud, Thesaurus Editora, Brasília, 1993), Tempo e antítese. A poesia de Pedro Henrique Saraiva Leão (Editora Oficina, Fortaleza, 1997) e Surrealismo e Novo Mundo (Ensaios sobre Surrealismo na América Latina, org. Robert Ponge, Editora da Universidade UFRS, Porto Alegre, 1999).

Dirige, juntamente com Claudio Willer, a Agulha - Revista de Cultura (www.revista.agulha.nom.br).

Sumário

I Alma em Chamas

1 A poesia e sua rebelião total, Claudio Willer
2 La incandescencia del ser, Rolando Toro
3 Um poeta de verdade, Paulo Monteiro

II Escritura Conquistada

1 Continente de poetas, Wilson Martins
2 Escritura Conquistada, Foed Castro Chamma
3 Un libro que une y escudriña, Carlos Germán Belli

III O Começo da Busca

1 Vozes em confluência, Maria Esther Maciel
2 Ante a busca do que se tarda, Jorge Pieiro
3 El poeta Floriano Martins en busca del Surrealismo, Alfredo Fressia

IV Três entrevistas

1 Humanismo poético. Uma entrevista com Floriano Martins, Fabrício Carpinejar
2 A poesia entre o surrealismo e a poesia, Claudio Willer
3 Floriano Martins a la búsqueda del Surrealismo, Mönica Saldías

V Vária 1

1 Agulha no ar. Diálogo entre os editores, Floriano Martins & Claudio Willer
2 Carta de recomendación, Jorge Rodríguez Padrón
3 Curriculum vitae: Floriano Martins

VI Vária 2

1 Peles de tantas mulheres [sobre Estudos de Pele], Valdir Rocha
2 Una aguja en la red del mestizaje, José Ángel Leyva
3 Uma conversa com Floriano Martins, Álvaro Alves de Faria

VII Surrealismo

1 Surrealismo & Brasil [conferência]
2 El viejo incendio en una nueva antología (reseña), Adriano Corrales
3 Recuerdos de la Feria del Zócalo México 2004, Susana Wald

10 POEMAS DE FLORIANO MARTINS

 

O destino das pernas

 

O alfabeto alheio das pernas
que vão se chegando, somando-se
ao murmúrio de outras
que se comunicam
entre ânsias e seduções, pernas
que fisgam a ilusão precisa
em cada moenda de gestos,
o alfabeto delas,
lustrando suas letras,
a serem gastas no ardil do desejo.

As pernas, por onde andá-las,
comover o capricho de suas teias,
soletrá-las na passada mínima
de um feitiço a outro?
Por onde se põem em desalinho
quando menos se espera?
Elas, dando lições de vertigem
ao tempo que trafega entre seus passos.
O alfabeto, sim, graças a ele
É que elas são esta queda em si
de tudo quanto apreciamos na vida.
Como estimá-las longe de tudo,
rabiscar a ausência das pernas
em nosso estar tão promíscuo
em dores cuja origem desconhecemos?

Essa floração de signos que não vemos
senão como descaminhos,
pontes de seda,
seus desmandos que elegem
nossas fraquezas mais irreconciliáveis,
a usina secreta do passo em falso,
por onde deixamos de ir,
por onde não vamos nunca,
alheios a ele,
o alfabeto que se escreve em nós,
as pernas
que consideram nossa ausência de tudo,
os caminhos desfeitos em sinais precários,
prenúncios de estradas derruídas,
elas que não cabem em si,
couberam – nunca se sabe –,
por onde andamos: comovê-las na andança,
falseá-las, 
pernas?

Ao cruzá-las por onde segue o tempo?
Investe em quais abismos líquidos?
O sal do fascínio,
humores que se distraem a cada toque,
esmero de ânsias
– para onde levá-las,
quando desviam sinais,
esmiúçam ambigüidades,
bailam imprevisíveis
ante a imagem que fazemos delas?
Soberbas na luxúria de suas afluências,
um súbito desmaio de cadências, apenas
para dizer que ali,
entre palmos imaginários,
podem ser outros meios,
pôr tudo a perder, conciliar ruídos,
quimeras de ponta-cabeça,
simulacro de marchas,
desvario, andamento,
andamento…

Para onde tantas pernas, quantas,
o que sabem de nós?
Radiação
de rastros por toda a pele dos radares,
bússolas famintas,
quando ausentar-se de si o colecionador de pernas?
Um verso deixado na ponta do leito,
assentadas como um enigma,
um crime por resolver,
por elas vamos nos deixando
levar à autópsia de nossas perdas mais íntimas,
o embaraço das precárias decisões,
vícios agregados,
quedas mal repartidas,
hastes que ensaiam vôos
em busca de outros significados,
ociosa locomoção de infernos,
pernas fora do jogo, as minhas, quantas agora?

Multiplicar os defeitos
irreparáveis
das passadas por onde fomos,
a sopa de equilíbrios de que se alimenta a esperança,
a inocência arqueada,
a lonjura
apeada antes que goze sozinha.
Para tantas pernas, como se desfazer de verbos,
desfalcar acenos,
ou simplesmente saltar páginas
de uma andança a outra?
Então
para que tantas,
se evitamos o subúrbio de suas passadas,
se não passamos de assaltos,
semínimas,
nudez difamada por vestes indecisas?
Onde a conquista das pernas
e o badalo de seu esplendor,
– um golpe que seja –,
o roubo a tempo no crematório?
O que fazer com elas, como passá-las,
por onde andá-las,
ufanar-se de que mérito, deixá-las ir,
sem vírgulas,
passos?

Amiúdam-se, coladas a um cinismo
constrangedor, com ar
de quem nos espera
à saída do caos, quase de todo
fingidas de si.
Já não sabemos quantas, e não fazem
outra coisa senão imposturas,
volteios, ardilezas
em tablados invisíveis, elas.
Para onde saltamos em suas colunas?
Quais galerias nos devoram, corredores
que são passadas
encharcadas de mistério?
Como se chamam essas pernas?
– acaso agora se pareçam outras.

Quantos somos em suas mãos?
E nomes, os temos? Como
nos comunicamos
por entre seu mobiliário de tropeços?
Algum de nós desconfia
do caminho que estamos fazendo?
Elas se encaixam na própria voragem
como construções fortuitas,
as pernas,
que levamos dentro de cada,
abrigo insondável
– é o que parecem nos dizer –
de uma evidência que a qualquer instante
pode nos atingir.

Contudo, o único extremo que se manifesta
é que desconhecemos nossos passos,
a tal ponto que elas,
dissimuladas entre vírgulas,
artífices galhofeiras de ilusões,
devem ser mesmo nossas,
por mais que estranhem
que não saibamos infringir seus percalços.

Haverá um limite, um ponto qualquer,
em que o estorvo se cansa,
a fraude se desfaz naturalmente,
o tormento rebenta por falta de coro,
haverá?
Ou a intemperança
entope-se apenas do inútil
e não há salvação nas sobras?
Por onde fomos as pernas eram outras
e em tal descompasso
que desconhecemos a isca,
o engodo
das letras, o alfabeto disforme e alheio
mais a nós do que a elas,
as pernas,
os nós em que nos engalfinhamos
antes da última topada,
onde o abismo se esgota.

Criaturas de espanto

Pasa un convoy de brujas caprichosas
Jacobo Fijman

Ao longe se vê uma grande festa.
Selvagens golpes da luxúria sangram a paisagem de sóis que retornam ao sonho de cada personagem.
Três músicos acendem uma dança audaciosa.
Dália agachando-se sobre o corpo de Alfredo, sombras gemendo desesperadas por novas formas.
Como aprofundar o batimento dessas árvores,
O tenso agulheiro onde se agitam e gozam e se retorcem as árvores que são pássaros e Dália e Alfredo?
Terão ali ocultado uma biblioteca de tormentos,
os livros secretos do abismo, com pés e mãos atados para que as visões não sejam jamais tocadas?
Incontáveis eu te amo foram pronunciados:
a sopa de sarcasmos dos ratos, a pasta de ervas das meninas, acordes desfigurados, encantamento.
A noite de Alfredo cabe no ventre de Dália,
e se agita em suas ramagens, noite possessa vestida de vozes em íntimo contato com outras cenas.
A noite de Dália avança, penetrando a si mesma,
transparência afinada pela dança, entoando a nudez ardente de palavras que são o segredo cobiçado,
uma vez mais eu te amo em vigília de chamas,
criaturas de espanto que saltam iluminadas pela mansidão desse amor contraído em plena Queda.

 

Às voltas com a violência
(e suas campanhas)

Só pensamos em violência quando somos movidos por alguma ação violenta. Por mais óbvio que possa parecer, nada nos afeta a ordem, exceto a desordem. E há ainda uma lógica perversa: aquele que articula qualquer campanha contra a violência, certamente acaba de sofrer alguma. O próprio conceito se mostra deformado, limitando-se a ação a danos físicos ou financeiros. Na verdade, somos mais cúmplices do que vítimas das articulações entre causa e efeito. A onda de criminalidade propagada, se observarmos bem, é mero efeito de nossa inação. E tal fato não ocorre no plano físico, no tiro à queima-roupa ou na votação de emenda no Congresso. Este é tão-somente o patamar das decorrências. Pensar que a inspiração está no cumular desigualdades é uma tolice, uma ingenuidade sem par. A menos que se circunscreva a história da humanidade aos limites de uma tábua santa onde se lê: o homem é um animal violento. Assim, o garoto maltrapilho com olhos esbugalhados no semáforo constitui o padrão de violência de uma classe média encharcada de culpa. Mas há inúmeros outros, uma vez que também esta senhora possui seus estatutos, entre esquivos e espinhosos. Tanto é violenta a política econômica escoada do Planalto Central quanto a falta de caráter de artistas que aderem a campanhas políticas em busca de autopromoção. Tanto é violenta a política de subvenção da produção cultural quanto o descaso do poder público para com a recuperação do acervo cultural do país. São estes, aliás, alguns dos lugares-comuns da violência. Mas há criminalidade de toda ordem, sobretudo aquela que se pode chamar de criminalidade branca, que degrada e distorce os conceitos morais de uma sociedade. Editoras adquirem direitos autorais de autores que não pretendem publicar. Professores universitários promovem a má literatura que escrevem em salas de aula. Jornalistas barram a divulgação de matérias que constituam concorrência a seus interesses pessoais. Em nenhum caso, um ente tem o braço canivetado no semáforo. Então não é violência. Violência é quando estabelecemos uma diferença entre o que dói em mim e o que dói no outro. As campanhas de paz, por exemplo, são flâmulas de um mea culpa ou a sacolinha de um pastor evangélico? Ou acaso serão fruto de uma súbita consciência social despertada ao se ter a filha currada na esquina? Reflitamos: o homem só pensa na violência quando esta lhe desaba sobre os ombros. Ou quando lhe atrai. Quanta violência podemos gerar em nome de uma ação contra a violência? Disse certa vez René Magritte que "a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser". A violência, por sua vez, é a expressão de uma obrigação ou de uma possibilidade? Somos violentos por natureza, por esporte, por conveniência. Sempre que pensarmos em quanto o mundo tem andado violento, não podemos deixar de lado nossa cumplicidade. Somos todos violentos, inclusive os violentados que movem campanha contra a violência.

 

Extravio de noites # 4

O espelho no canto rabisca tua imagem: um seio abusado sobre a página do livro que te dei: a magia do espelho quebrado é uma longuíssima viagem sem regresso. O verso de Cruzeiro Seixas parece ter sido escrito por meu desejo de que estivesses ali. Tão sinuosamente nua que me deixo iludir pelo jogo de atalhos de teu corpo. O espelho me decifra um sombreado de vertigens. O olhar provocando adivinhações: onde o pousarás, onde? Deixa-me ler outro verso ante teus gemidos: no espaço imenso o que não está por acaso está por engano. O espelho ainda ali, enquanto gozamos. Suores emanam das páginas de um livro lido ao revés na pele do espelho. Por vezes não sabemos se estamos chegando ou saindo. O abismo não tem ponto. Mesmo o descanso de cena é um completo desatino.

 

Extravio de noites # 9

Porque hoje como sempre
te amo até a febre,
contempla comigo
teu nome sobre as tormentas.
Julia Otxoa

O corpo está tomado de véus
que são cortes profundos na pele
e são taças de um desastre
no bosque de teus sonhos:
o corpo folheado com seus recortes de gozo
e estamparias laminadas que são rabiscos
na pedra esboçada em teu ventre
e pentelhos de fogo como árvores que se exibem
ante um derrame de vozes:
o corpo onde estavas quando a noite
entoava ventanias e um olho a descoberto
engolia toda a paisagem imaginada:
o corpo em ruínas que se estreitam
a recompor vertigens que são nomes inscritos
em aves rochosas que se chamam coxas
e um tropel de vultos ao passar de páginas de teu corpo:
por noites te chamo mascando nomes
como um dilema febril a confundir imagens
como credenciais a evocar rasgos
que anunciam a tormenta da restauração:
o corpo se refazendo a cada anúncio do fim.

 

Vestes

Os panos nus.
Nenhuma imagem sangrando na pele
de tecidos prontos para o afago.
Recito essa nudez com um par de asas.
Um demônio agachado,
colando os lábios nos meus.
De onde me vês serei um córrego de ossos,
calcinado deleite de tuas almas,
umas poucas, as que não souberam
preservar o horror que as antecipa
e compreende.
Rostos engordurados em cerimônias…
E como te postas, demônio,
mordendo-me os seios, como te postas?
Um olhar a escolher ossos.
Carvões astutos e conhecedores da fábula.
Vê bem o que trago comigo,
este corpo minguado em débeis luas.
Preparas uma pele para mim?
Dá-me tuas facas, esporões, chifres,
a ponta imperfeita de teu falo.
Vês como me faço em mil coxas,
viscosas como iscas, e todas soletram
a queda que anuncias.
                                 Os panos
sobre o vazio, nus.
Equilíbrio voltado para o chão,
rostos desfeitos de vítimas que não alcançam mais ofertório, o pé de um deus encontrado em escavações, por onde me sagras,
puto demônio,
                      por onde
me despedaças desejosa de tua saúde.
Meu corpo em lascas, santuário decrépito
de tua perversão,
cascos me arranhando o tecido da memória, sim,
uma mínima dor palmilha insuspeitas procedências,
e sabes o quanto me dói tua abundância,
o pote que indicas e ansiosa ponho-me a buscar ali a resposta para o aflito cultivo
                                            de dores
por todo meu corpo.
Carrego comigo todas as formas
com que me atacas.
Quais máscaras perpetuamos, as minhas, as tuas?
Meus lábios te queimam a pele.
Óleos acesos enquanto nos desfazemos.
Os panos como papiros, inscrições invisíveis que ensinam a manter quente a cabeça de um deus morto.
           Nus.
Com a medida do inferno de cada dobra
do tecido de que somos feitos.

 

Versões

Roedores confabulam em uma ceia de papiros.
Contar é existir, entre guinchos sarcásticos
deixa escapar um deles. Mortos os amantes,
que amor conhecerão agora?
, indaga um outro.
Divertem-se com alguns manuscritos os ratos:
Dália não dava repouso a Alfredo, mostrava-se
mãe amante irmã e o tolo deixava-se seduzir
pelos caprichos vorazes de quem julgava amar.
E logo um outro apressa-se a roer e contar
a própria versão: Alfredo tinha visões, um mapa
de precários vultos que lhe atormentavam.

de precários vultos que lhe atormentavam.

de precários vultos que lhe atormentavam.

de precários vultos que lhe atormentavam.
O mais faminto: o débil inventara as três moças.
E seguem roendo pedaços a mais, os restos
da história, refazendo-a sem nenhum pudor.

 

S/título

A perna docemente erguida sobre a página:
um verso assim não escreves sem meu gozo.
Sabia como marcar as frases onde retornar.
Os dois se buscavam entre enigmas e risos,
devolviam a cada um o que iam encontrando,
restos do outro, pequenas sombras dispersas.
Abro-te os lábios todos da casa. Não vês ali
na varanda uma parte de ti já esquecendo-se?
A voz podia estar entregue a qualquer um,
a dar por assombro a noite em um capítulo
de espasmos: olhos rabiscando-se, imagens
saltando do sexo de ambos, toda ela, todo ele,
tudo para encontrar-se e dizer: já estivemos.
Somente o amor nos revela o que perdemos.

 

Ecos do cântico perfeito # 4

Meus olhos não encontram descanso para o vento.
Por mais que desenhem torres complexas de fogo,
a memória recolhe pupilas boiando em mapas líquidos e rádios emudecidos como que confabulam acerca do inevitável na ausência de corpos quando se almeja apenas provas.
Por que o céu é tão claro quando me sinto falido?
Um suspiro que seja da realidade não encontro em minha caixa postal.
Com declarada perseverança apenas o sonho e a nostalgia me visitam.
Talvez a realidade não passe de uma bala perdida.
Tráfego de desordens, tráfico de cânones…
Acaso os poetas sabem onde estão metidos?
Haverá ainda algum lírio no campo?
Como afirmar tanto em um ofício afeito à dúvida?
Ídolos que comam cinzas e poeira: o barro amassado da poesia corresponde a quedas que inspiram novas correspondências.

 

Anotações da memória

A Roberto Piva

Dentro de todos os saltos o da memória. Para onde ela caminha, o que rompe e deseja. Viver com ela por vezes enfadonha, e miro um despojo de si. O que vem à memória é sôfrego, não aperfeiçoa-se de outra maneira. Tua cidade está aberta, senhora? Indaguei ao sem nome, crendo-o adamado. O previsível amontoa-se sobre si mesmo. Dali não escapa senão como um abismo remoto. Mas já ninguém o necessita, por excesso de uso.

Um monge retorna de peregrinação e diz: a matéria está como a deixei. Jamais conseguiu livrar-se de si. A memória quer vê-lo morto. Um punhado de palavras agonizantes sugere o que veio fazer amarrado à sua terra. A memória nos encurrala dentro da sala com visitas, os parentes disparando um último enigma: vieste para apodrecer.

Dias escrevendo um mesmo poema ou alimentando a volúpia de imagens de uma tela. Um descuido perfeito nos leva a crer na destruição do mundo. Quanto tempo tens até que eu te mate? Nenhuma vítima jamais me perguntou isto. Nossa relação com o tempo está baseada na ilusão da eternidade. A menina encontrada morta no lixão, os olhos faltando. As palavras finais do enforcado: não cometi atos de impureza. Dois amantes cegos. A memória constrói uma casa indefesa.

E quem a habita?

Para ali levamos os crimes primários. Pequenos furtos de desejos e versos alheios. Um velho negociante de almas conforta a clientela dizendo-se guia dos inclementes. A memória é o lugar menos indicado para alguém apiedar-se de si. Leram nos jornais sobre o louco que foi preso apenas por haver indicado o local exato onde estaria assando o sétimo e último corpo devorado? Os mortos eram ninguém. O maluco sentenciado a sete prisões perpétuas disse não entender nada sobre o destino da humanidade: Que falta faço ao mundo?

A memória invertida é uma medida de adoração. Caímos do que sequer imaginamos ou nosso infortúnio não passa de um drible de tempos? Um mesmo monge descia a cordilheira com alguns versos no alforje. O número não tem fim. Nem mesmo a memória escapa de si. Vez que outra vou por onde não me lembro. Dizem que os grandes saltos não sabem por onde começar. Desfaço-me de tudo. Deixo anotado em algum lugar que não devo me lembrar de mais nada.

 

Nos bolsos da sonâmbula

A solidão está na esperança,
no triunfo, no riso e na dança.
Luiz Cardoza y Aragón

A solidão estava por toda a casa, enquanto caminhava ausente de si. Por vezes dançava e ria, no triunfo de uma quase debilidade. O corpo movendo-se entre o espasmo e a heresia. Dança de esvoaçante nado. O garoto a via no mergulho em um engodo ancestral, debatendo-se pelas ramagens da própria queda. Havia um cheiro que levaria consigo até a essência de seus escritos. A mulher ali à frente ritmava-lhe a infância. Ele, o insone; ela, a sonâmbula.

Nada disso. Intuía ser outra a razão da presença/ausência de ambos. Nada lhe era de todo invisível. Vendo-a insinuar-se no desenho rítmico de seus acolhimentos, um mundo começava a abrir-lhe parênteses, recebia recados do acaso, anotava sigilosas imagens. Vê-la caminhar pelas dobras de um abismo interior era uma fortuna inigualável. Decerto deixaria que toda a infância fosse tomada pelo espectro indomável daquela mulher recebendo distintas entidades. Mas não. O tempo com ela não se deteve o suficiente. Logo se foi sem tambores.

Os tambores ele próprio desenhou. A sonâmbula trazia muitas vozes nos bolsos de sua pele. Antes dela a mãe tremia ao descrever assombrações que lhe assaltavam as noites. O convulsivo dança enquanto dura a projeção do abismo. Aqueles tambores todos sondavam-lhe o baile ulterior. Acompanhara o roçado secreto daquela mulher, manifestações com chumaço ou praga, guizalhados, bufos, zumbidos, martelares, guinchos, cacarejos. Tambores.

Amara aquela mulher, mais do que duas primas que sorrateiras enfarinharam de encantos alguns momentos guardados de memória. A idéia do perdido se construía com delineada firmeza. Um tufo de alegorias, uma untura de espantos, o isqueiro do cognoscível. A memória dançava. Corpo segurado por outro, agitando-se em círculos incansáveis. Mares de fibra cobrindo e descobrindo a cena. Um teatro do encoberto. Terra de outros ares sendo ela mesma a própria terra e sua impossibilidade.

O corpo nu lhe atraía, tanto quanto a astúcia e o menoscabo do riso dos tambores. Porém nada como a inocência daquele olhar quando retornava a si e lhe indagava o que se passara. A solidão voltava de uma longa viagem. Mil vezes a mesma tarde, o mesmo longo trajeto, insondável sempre. Um precário destino com os bolsos esburacados por planos que jamais compartilhariam realidade alguma.

 

A visita de um lagarto

O cenário dos sonhos era sempre composto pelas casas da infância. Silenciosos sonhos com as mesmas salas quartos telhados. Somente anos depois, quando morreram os pais, é que os sonhos tornaram-se sonoros e cada cena se mostrava em terreno próprio. As casas da infância eram um amálgama de seu destino. Entrava e saía delas por uma parede. Nos sonhos não havia distinção entre cômodos. Uns tantos móveis indicavam quando de cada uma se tratava. Identificação que julgava sem importância. A parede desenhava-se como a de uma biblioteca. Os livros o conduziam de um lugar a outro.

O que havia ali atrás? Duas irmãs mimadas disputavam o uso de um piano. Aquele estranho objeto que emitia sons sem que ninguém o tocasse lhe parecera a chave da passagem de uma casa a outra. Uma delas lhe dizia tudo o que não viria a ocorrer. Da segunda receberia o peso de uma existência talhada a perdas. Suas visões eram mais propriamente um anátema. Teclas do piano saltavam de tigelas de sopa, corriam sorrateiras para debaixo de guarda-louças ou escondiam-se nas altas prateleiras de armários na despensa. Inúmeras as noites em que acordava asfixiado com as cordas do piano apertando-lhe o pescoço. A primeira das irmãs a morrer foi sua mãe. O piano tornou-se intocável. Jazia silencioso em uma sala fechada na outra casa. Nunca mais se lhe ouviu um único gemido. Gastou-se entre poeira, cupins e goteiras.

Nada nos sonhos denunciara a loucura que acometera a tia. Alguns personagens nos tantos livros que lia. O entrar e sair naquelas duas casas. O garoto recortava silhuetas de suas visões, colando-as nas páginas dos livros ou soprando-as no ar, imaginando que alcançassem abertas inexistentes janelas ou mesmo que mergulhassem em saliências de quadros, nas demais paredes ou em reproduções em inúmeras revistas que folheava.

Nessas idas e vindas – já não recorda se sobre um tanque de roupas ou se lentamente movendo-se para fora de um livro – vislumbrou uma presença distinta entre as demais. Que forma assumiria tal vestígio em sua vida? As formas significam muito pouco. Poderia seguir recortando-as. Por uma aurícula errante trataria todas as cobras de duas cabeças. Chamaria raio os esfaqueamentos misteriosos que não raro eram comentados em casa. E daria pernas ou asas ao pescoçudo gramofone da avó. As formas não lhe bastavam. Um novo personagem lhe despertara para tanto. Arrastava-se brincalhão sobre seu corpo. Não lhe eram mais enfadonhos os sonhos, embora seguissem silenciosos e em repisado repertório. Tudo permanecia o mesmo, mas ganhava um significado. 

 

ACESSO GRATUITO A 2 LIVROS DE FLORIANO MARTINS
(basta clicar sobre a capa)

Natureza Morta, de Floriano Martins e Hélio Rola           Fogo nas Cartas, de Floriano Martins

 

 

 

Só a DIDÁTICA em prol do Homem legitima o conhecimento

A outra face do editor Soares Feitosa, o tributarista