1. Escritura Conquistada, por Foed
Castro ChammaO fogo da palavra envolve com a imagem a linguagem poética. A
memória retém a fulguração do deus que a contamina, devolvendo de suas entranhas a
Musa, que os poetas comemoram em renovados ciclos de invenção, preservando a descoberta
do eu em cada Signo, com a luminosidade que a consciência transforma em poema ou
canção. O entrelaçamento com o real originário da negação determina o condicionante
da representação que se desenrola de maneira a configurar a realidade, no interior da
qual amplia-se o quadro fenomenológico do ser e seus vínculos com o real, cuja
dialética o logos recolhe ao código lingüístico.
No diálogo com o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, que abre a série de entrevistas
com poetas ibero-americanos reunidas em Escritura Conquistada pelo também poeta
Floriano Martins, observa-se esse enigma da criação nos dois poemas intitulados "O
barco negro" e " Ancestrais". O sonho e a realidade se completam na
memória do poeta. A dessacralização do eu abre rumo ao moderno no sentido dado
à fealdade e ao brilho enquanto identidade que, ao construir a História, esvazia o Mito.
Tal como o venezuelano Juan Liscano, penso que a "poesia não é fuga e sim
meio" de se chegar ao eu através da Semelhança. Há uma lição nas
entrevistas de Escritura Conquistada de alto teor didático para uso obrigatório
nos cursos de Letras. "O poeta é fruto de si mesmo." Todavia, ao negar a
liberação interna por meio da obra de arte o entrevistado diria que a liberação
interna induz ao saber. A experiência é uma prática do saber e objeto primordial da
poesia como devia admitir Lautréamont ao afirmar que todos somos poetas. A assertiva de
Juan Liscano de que se une ao Surrealismo através do arquétipo femina é
confirmar o mergulho na origem do ser, de onde emerge como imagem, signo e imaginação.
Do mesmo modo, no diálogo com o Absoluto, entre "signos cabalísticos", o
chileno Enrique Gómez-Correa "desbrava o reino do imaginário", reino da Mandrágora.
A liberdade de criar está em aderir à imaginação, pois nesse primeiro estágio
crítico da razão o poeta inaugura o duplo como metáfora, esvaziando assim o reduto do
mito, no qual reina o eu e o poder originário de uma arte mágica que o
Surrealismo resgata.
Fernando Charry Lara, da Colômbia, ao referir-se à essência das coisas deixa
explícita a Voz, que o poeta transforma em som e ritmo e recolhe ao passar da fala à
linguagem. Do mesmo modo que o peruano Javier Sologuren, penso que o signo é a alça que
dá expressão ao sentido, atendendo a imagem à linguagem poética em sua mira de
essências. A concepção do homem em harmonia consigo mesmo associado à expansão da
consciência resume pois a criatividade. Para o chileno Rolando Toro a ética de Sócrates
nivela-se à concepção solidária de Jesus no sentido universal do ser. A conversão da
dor, da morte, da ausência e do esquecimento é o âmago da Beleza como fulguração do eu,
que o poeta revela à "sociedade secreta" dos poetas. Penso nas palavras
unicamente como "via de acesso à realidade", onde se completa a fusão
arquetípica com a memória. A viagem pela imaginação e o sonho é produtora do tempo
resgatado pela memória. O império da imaginação é o da arte mágica, desafiadora do
logos no sentido de ascensão prometêica do eu ao real. Ouço ainda Rolando Toro
dizer: "Estranho o pântano que nos engendra. / Para podermos ser nós mesmos /
devemos deixar de ser".
As raízes poéticas da linguagem pertencem, imagino, à ordem secreta da imaginação
que não se mescla à ratio sem provocar atrito. A poesia é um culto e o poeta o
oficiante. A roda que perlustra o sonho devolve o passado ao futuro. Como conjuro a
poesia revolve a roda que lustra o sonho. O terror "como objeto magnífico"
fundamenta a Beleza e a Verdade. Sem os "capuzes", a poesia é invenção.
"Sílaba incandescente do desejo", do chileno Ludwig Zeller, é um
"redemoinho de angústia" diante das "serpentes de areia", para as
pupilas no deserto; são Hieróglifos, quartzos da noite, ramos escuros "que em nós
se fecham para sempre". Ao correr "a água por um mesmo espelho", repetimos
os "enigmas" de Ludwig Zeller.
O Surrealismo ibero-americano desde o início do século está à frente do formalismo
hegemônico voltado para o social. A poesia deve ser escrita com sangue, como queria
Nietzsche, para se aprender que "sangue é espírito", aprender a transformar as
serpentes da cabeça de Medusa em Beleza. O venezuelano Juan Calzadilla sabe que o
"curso abissal do poeta" é a "espessura de leituras".
A noção de fazer poesia com palavras implica adesão ao Signo como ferramenta da
imagem e realidade virtual do poema. Uma previsão arcaica do avanço da técnica na
sociedade do espetáculo. "Estilhaços da linguagem são a memória e o sonho",
diz Pedro Lastra, do Chile; daí a estranheza com que anuncia o mundo como de cunho
fantástico. Os versos em "Pontes movediças" assinalam o transitório como
fator fantasmático da Presença. Sigo completando o que diz o venezuelano Alfredo Silva
Estrada, que todo poema é canto na medida em que a Voz se incorpora à palavra. O poema
é a Morada do homem, sugere Hölderlin, é negação e fundação do que o poeta inventa.
Toda experiência é reinvenção das "vozes subterrâneas" que emergem. Não
acredito no "declínio geral desta época", como queria Borges, desde que o
reencontro do eu é ainda a grande meta frente ao alto desenvolvimento da técnica,
onde ciência e poesia assumem análoga realidade virtual. Assim pensa também o mexicano
Gerardo Deniz. "A sombra é a única muralha", diz Eugenio Montejo, da
Venezuela, completando o duplo que é a vulnerabilidade trágica do ser.
O dever mágico nos poetas, indagação formulada por Floriano Martins a Sérgio Lima,
está em transformar a imagem no imaginário como fundação do ser, acepção inclusive
de Bachelard e de Blake. "A arte é meio de expandir a consciência", afirma
Marcel Duchamp. A imagem é a essência da poesia. Sérgio Lima é um grito na opacidade
de uma retórica afastada das fontes verdadeiras da Poesia. O cubano José Kozer constrói
uma linguagem pinçando as origens no país que emerge do Bezouro e coça a barba
diante da harpa de Davi. A ancestralidade é o arquétipo de José Kozer. O hermetismo da
Cabala organiza sua poética compulsiva. Inegável também o talento do brasileiro Sérgio
Campos. Belos poemas que justificam o "esquecido assombro de estarmos vivos" e
nos reserva o campo de liberdade da poesia que emerge na palavra e o boliviano Eduardo
Mitre converte em linguagem, transformando o mistério do eu em mirabilia e
estratégia da fala que se perde na Semelhança.
É diabolicamente importante este livro que traz como título a confirmação de Escritura
Conquistada. Ich Ruhmer. É como o Sol, o tempo da Razão ardente,
epígrafe extraída de um poema de Apollinaire para ilustrar a poesia do boliviano Eduardo
Mitre, que recobre em toda sua extensão o esforço bem sucedido de Floriano Martins.