Endereço postal, expediente e
equipe
|
.
Humanismo poético. Uma entrevista com Floriano
Martins
Fabrício Carpinejar
O surrealismo está
ainda marcadamente ligado ao francês André Breton e seus
pares, que fundaram o movimento em 1924 com o primeiro
manifesto em Paris. O crítico, tradutor e poeta cearense
Floriano Martins, 44 anos, resgata a expansão
hispano-americana surrealista. Mostra que a escrita
automática, em que falar é pensar, não se restringiu à Europa,
muito menos à primeira metade do século XX, ganhando
expressões singulares no Peru, Chile, Argentina, Venezuela e
Brasil até os dias atuais. O esplendor verbal, a magia
vocabular, o espírito transgressor e a palavra como realidade
total estiveram também presentes nas obras de Aldo Pellegrini,
César Moro, Enrique Molina, Emilio Adolfo Westphalen, Enrique
Gómez-Correa, Juan Sánchez Peláez, Ludwig Zeller, Juan
Calzadilla, Roberto Piva, Sérgio Lima e Raúl Henao. Tais nomes
não soam conhecidos, familiares, parecem não sintetizar a
enciclopédia surrealista, assim como os batidos verbetes
Philippe Soupault, Paul Éluard, Artaud, Crevel e Robert
Desnos. Mas uma revisão está sendo feita. É preciso ampliar
desde já o vocabulário. Se o surrealismo era proclamado por
Breton como o que será, Floriano Martins busca antes decifrar
o que ele realmente significou. Invertendo sabiamente o
título La Búsqueda del Comienzo de Octavio Paz, O
Começo da Busca (Escrituras, 288 págs., R$ 13) desvela os
mais autênticos surrealistas da língua portuguesa e espanhola,
desfazendo as aparências do passado e abrindo o futuro.
Martins empreende uma viagem imaginária digna de um
antropólogo do inconsciente. Traz traduções impecáveis dos
principais poemas de 12 autores, informações epistolares,
entrevistas e defesas estéticas de várias correntes. Demonstra
que houve surrealismo no Brasil e na América Latina, com
amadurecimento orgânico a partir das peculiaridades de cada
país, e que isso não foi uma extensão espúria nem tardia e
periférica do grupo de Breton. Em entrevista exclusiva ao
Rascunho, Floriano Martins, autor de Escritura
Conquistada (1998), promove um novo horizonte de discussão
e comenta os enganos da crítica. [F. C.]
FC - Quais foram os entraves para sua pesquisa, que tenta
revelar os mais diferentes movimentos surrealistas na poesia
hispano-americana até então obscurecidos pela
historiografia?
FM - As relações culturais entre Brasil e América Hispânica
são inexistentes. Não há uma particularidade envolvendo o
Surrealismo. Trata-se de uma grande cegueira dos governos de
ambos os lados. E para tanto têm contribuído artistas e
intelectuais, com um fascínio provinciano seja pela França ou
pelos Estados Unidos. Há um isolamento sistemático e o
rompimento dessa situação não é algo que se possa esperar
vindo de uma visão acadêmica de mundo. Como praticamente parti
do zero, nem cabe considerar os entraves. De qualquer maneira,
o maior entrave existente para um descuidado leitor é a
Antología de la poesía surrealista latinoamericana,
organizada por Stefan Baciu. Trata-se ainda hoje de livro de
referência, com equívocas colocações, não compreendendo ser
distinta da matriz parisiense a perspectiva de um Surrealismo
na América Latina. O mais curioso neste livro é que fomenta o
conceito do "mas nem tanto", estabelecendo uma condição
"para-surreal" para aqueles que não firmaram manifestos. Claro
está que alimenta a grande ruína de nosso tempo: a falácia
conceitual e a conseqüente derrocada de sentido.
FC - Apesar de sempre reforçar a idéia de movimento, O
Começo da Busca qualifica, em várias passagens, o
surrealismo de aventura. Isso não é uma caracterização
inapropriada, de algo fugaz e passageiro?
FM - A etimologia do termo nos leva ao que está por vir,
uma entrega ao desconhecido, o que é inaceitável em nossa
formação positivista. O culto do permanente liga-se a uma vida
eterna prometida por senhores suspeitos e soa como contradição
risível ante o frenesi do mercado. A existência humana não se
limita a preceitos. O surrealismo é essa entrada na matéria
real da existência humana: o abismo, o assombro, o inesperado,
o vertiginoso, o maravilhoso. Trata-se, a rigor, de uma
aventura.
FC - O argentino Enrique Molina define o surrealismo como
um humanismo poético. O fato de propor uma nova conduta de
vida dentro e fora da poesia não acabou partidarizando o
movimento, conduzindo-o para incursões que não condiziam com o
texto propriamente dito? (Um exemplo são os surrealistas
franceses que sucumbiram ao Partido Comunista, transformando
sua irracionalidade em militância racional)
FM - Disse certa vez o Octavio Paz que há um momento em que
se tem que escolher entre vida e obra. Talvez venha daí a
ressalva essencial que teria em relação ao Breton. Me parece
ingênuo achar que a escritura automática, por exemplo,
implicasse em um desnorteamento de si mesmo. A melhor poesia
de Paz, rigorosamente, está impregnada de surrealismo, apesar
dele haver apagado as pistas nas notas finais que acompanham a
publicação das Obras Completas. O vínculo entre
surrealismo e comunismo se recrimina hoje, em parte, pelo
distanciamento histórico, mas não se pode restringir a
compreensão do Surrealismo a uma multiplicação sistemática de
erros. Lembro que, no Brasil, já em 1930, Alceu Amoroso Lima
falava em uma "inextinguível sedução comunista". Enrique
Molina dizia que "a poesia tem que nascer, não de idéias
intelectuais, mas sim de vivências profundas". Decerto vem daí
a dificuldade dos poetas brasileiros compreenderem esse
humanismo poético: uma ausência de vida própria
mesclada a um artificialismo que sempre caracterizou nossas
letras.
FC - A poesia surrealista é uma das mais refinadas, em que
o pensamento se faz por imagens. Esse é o principal motivo que
dificulta sua difusão?
FM - Há uma idéia de refinamento que nos leva a um cálculo
a frio. Não creio que caiba aí pensar em Surrealismo. A imagem
no sentido que nos interessa refere-se a um transbordamento de
visão. Há um mínimo de sentido plástico, de percepção
estética, que nos permite dizer de um rabisco qualquer que se
trata de uma obra de arte. Muita poesia dada como surrealista
pode ser ingênua ou infeliz. O grande ponto de cegueira de
nosso tempo radica em uma promiscuidade. O mercado determina a
abrangência da imagem. Artistas e críticos dizem amém. E tua
idéia de refinamento torna-se apenas decorativa ou
circunstancial.
FC - O poeta brasileiro Roberto Piva debochou da produção
contemporânea: "o que temos no campo da poesia é a riminha
safada de véu e grinalda para embalar devaneios
universitários". Piva está se referindo a que poesia? Não é
errado defender grupos destruindo outros?
FM - Antes quero ter um cuidado de não cair nesse ardil
sectário. Há uma precariedade existencial em nossa tradição
poética, sempre determinada por uma feição parnasiana. Piva
referia-se àquela poesia pós-tudo, de uma garotada
encharcada de Concretismo e fruto de uma leitura deformada da
obra da João Cabral. A situação piorou bastante e bem
imaginamos o que não diria hoje dela o Piva. A realidade da
cultura brasileira - e não me refiro aqui apenas à arte - tem
sido o sectarismo de gabinete, a exclusão a portas fechadas.
Piva troa sua voz abertamente. E sofreu por conta toda forma
de exceção.
FC - É possível arrolar os motivos que levaram o mexicano
Octavio Paz e o chileno Gonzalo Rojas a pedirem a
desvinculação de suas poesias do surrealismo? Por que o
movimento virou um estigma?
FM - Não sei se o correto seria falar em estigma. Há erros
de leitura, distorções etc., mas não propriamente um estigma.
Paz estava tomado de si, vivia em um mundo onde ele era o
próprio centro triunfante. O caso do chileno Rojas
relaciona-se com uma grave discussão com Enrique Gómez-Correa,
quando da criação do grupo Mandrágora, os dois ficaram décadas
sem se falar. Mas não se pode transformar briga de rua em
estigma. Esses deslizamentos são ocorrências verificáveis em
outros ismos.
FC - Uma das acusações ao movimento surrealista brasileiro
era sua tardia manifestação nos anos 60, tendo em vista a
eclosão do movimento em 1924, na França. Seu livro demonstra
que o surrealismo brasileiro já era um desdobramento, tinha
atualidade, sincrônico à produção realizada pelo Cesariny e
Helder em Portugal e Paz no México.
FM - Gosto muito da imagem de uma sociedade
"providencialmente analfabeta", expressão cunhada por
Alcântara Machado. Por vezes me parece que nossa crítica é
providencialmente alheia. Nos anos 60 importava
sobretudo relações com argentinos e venezuelanos. Um grupo
como Techo de la Ballena, de Caracas, estabelecia uma
afinidade com a crítica corrosiva defendida por Willer e Piva.
Muitas formações grupais foram sendo estabelecidas ao longo de
duas ou três décadas sem que esse distanciamento de 1924
constituísse um empecilho. O próprio surrealismo
bretoniano, por assim dizer, sofreu diversas acomodações e
datações. É preciso entender que o problema brasileiro, assim
particularizado, nada tem que ver com o Surrealismo.
FC - Percebo em seu ensaio uma crítica velada ao
modernismo. Os modernistas teriam sido o principal obstáculo
para o fortalecimento surrealista no Brasil? Pensamos, por
exemplo, na adoção de Benjamin Péret e Blaise Cendrars (que
estiveram no Brasil) pelos modernistas? Houve tal
confusão?
FM - Já em 1927 dizia o Alcântara Machado: "O modernismo
brasileiro hoje em dia mais parece centro de debates do que
movimento criador". Não se trata de fortalecimento do
Surrealismo, como dizes, mas de debilitação sistemática de uma
cultura que estava em plena fase de amamentação. O mesmo
Alcântara situava a "exuberância livresca" e a "ignorância
frondosa", como sendo "dois males do modernismo brasileiro".
Stefan Baciu, por sua vez, diz que em uma conversa com Péret,
no Rio de Janeiro, em 1955, acerca "do surrealismo no mundo e
na América Latina", definiu o plano daquela antologia dele.
Acaso essa conversa teria sido decisiva na ausência de
brasileiros em uma antologia de âmbito latino-americano?
Quantos desfoques estavam sendo processados naquele momento.
Precisamos rever nossa história toda. Não é somente o
modernismo que é falho de contextualização, claro, mas que há
ali uma série de fatores que devemos reconsiderar, isto
sim.
FC - Claudio Willer, Roberto Piva e Sérgio Lima são
subestimados no cenário poético atual?
FM - A seco, eu responderia que sequer são percebidos, mas
há uma distinta consideração em torno de cada um. Roberto Piva
sempre foi um notável franco atirador. Dentre todos os poetas
brasileiros é o que melhor sabe mesclar Surrealismo e Beat
Generation, sem limitar-se a mera cópia. Sérgio Lima fez clara
opção pela historiografia, saindo de cena o poeta que até
meados dos 80 ainda publicava. Claudio Willer fortaleceu a
natureza de agitador cultural e por aí foi. Também ficou sem
publicar poesia, embora tenha publicado uma narrativa
autobiográfica na década passada e tenha sempre participado de
leitura de poemas. Enfim, apenas o Piva seguiu publicando
poesia, o que nos força a rever essa leitura de uma
subestimação. Não creio que haja uma particularidade de cunho
surrealista envolvendo o tema, insisto. É preciso não criar
mais saco de pancadas, entende? Aos poucos criamos uma
história de coitadinhos. O Brasil não se percebe, é um
país às avessas. E geralmente os resmungos são fortuitos e
incabíveis.
FC - Murilo Mendes é um caso de falso surrealista? Há, por
sua vez, surrealistas ocultos na poesia brasileira?
FM - Eu não diria propriamente de Murilo que se trata de um
falso surrealista. Malandramente brasileiro descobriu
um ponto de não se indispor com ninguém. Tem uma obra
admirável, o que não encontramos nos dois Andrade, Mário e
Oswald. O desdobramento da poesia brasileira não teria
necessariamente que dar no Surrealismo, não vamos trocar um
sectarismo por outro. As figuras ocultadas dizem respeito a um
programa mais austero, onde o Surrealismo não era senão um
ponto. Em ensaio recente Fábio Lucas menciona que a essência
da proposta surreal de Murilo Mendes "vem da inspiração
onírica entrelaçada com a rebeldia antiburguesa", mencionando
ainda que "o seu surrealismo ora apresenta um transbordamento
barroco, ora é contido e seco como um clássico".
FC - De que forma o surrealismo influenciou sua poesia?
FM - Uma afinidade vinculada à idéia de desprendimento. O
verso somado à existência, sim, mas cobrando valor para ambos.
Tal identificação não anula outras presenças essenciais à
minha poética. A própria relação entre Surrealismo e Barroco
na tradição poética hispano-americana - o que não houve no
caso brasileiro - reforçou em muito minha percepção. Desde uma
primeira leitura senti uma afinidade enorme, por exemplo, com
a poesia de Enrique Molina e Ludwig Zeller, e em ambos se pode
pensar nessa mescla de Barroco e Surrealismo.
FC - O Sr. trocou correspondência e manteve laços estreitos
de convivência intelectual com a maioria dos poetas analisados
em O Começo da Busca. A ligação afetiva não pesou no
julgamento estético?
FM - Há sempre o risco. Contudo, o livro apresenta uma
mostra substanciosa de poemas desses poetas e a diversidade
estética que os define cuida de negar interferência dessa
condição afetiva. Inclusive recupero vozes como Juan Sánchez
Peláez, Juan Calzadilla e Roberto Piva, que já não se
encontravam mais percebidos como surrealistas. O assunto é
inesgotável, e gostaria de mostrar ao leitor brasileiro poetas
como Julio Llinás, Carlos Latorre e César Dávila Andrade, por
exemplo. Creio que este livro é um primeiro momento para se
eliminar um certo vício de isolamento e conseqüentes
distorções de leitura.
FC - Quanto tempo demandou de entrevistas, ensaios e
traduções para finalizar O Começo da Busca, que faz um
apanhado inédito das expressões mais originais na Argentina,
Chile, Venezuela, Peru, Brasil?
FM - É sempre difícil precisar isto, pois não se trata de
um contrato editorial ou de uma tese acadêmica. Há quase duas
décadas mergulho em textos fora de circuito que dizem respeito
à poesia e à crítica dessa poesia em âmbito hispano-americano.
O Surrealismo é, portanto, parte disto. Mas sempre me chamou a
atenção, confesso, a maneira como uma certa rejeição ao que
fira a razão foi tomando corpo em nossa poética. O mais
interessante é que a realidade do país sempre feriu a razão. E
o resultado dessa química foi uma razão ferida sem consciência
de, ou talvez uma razão preferencialmente ferida. De qualquer
maneira, o livro é fruto de um largo acompanhamento, viagens,
troca de correspondências. E traz consigo dois projetos
paralelos: um volume de entrevistas a poetas latino-americanos
- cuja primeira versão se publicou em 1998 sob o título de
Escritura Conquistada - e um outro de ensaios sobre os
principais desdobramentos estéticos ocorridos na poesia
latino-americana no decorrer do século XX. Além disto há um
segmento virtual, o site Banda Hispânica, que coordeno
para o Jornal de Poesia, um banco de consultas
permanente sobre poesia hispano-americana, onde já se
encontram à disposição do leitor centenas de páginas, e o
mantenho constantemente atualizado. E há ainda a revista Agulha,
que dirijo com Claudio Willer, que está parcialmente empenhada
na difusão do Surrealismo.
FC - Depois da exposição surrealista no Brasil, parece que
vingou uma preocupação revisionista. Não são poucas as obras
que tratam do tema lançadas nos últimos anos: Vanguardas
latino-americanas, de Jorge Schwartz, A Aventura
Surrealista, de Sérgio Lima, e Surrealismo e Novo
Mundo, de Roberto Ponge. Como o Sr. situa O Começo da
Busca entre esses livros?
FM - Em 2001 podemos enumerar o dossiê da revista
Cult, o simpósio promovido pela UNESP e a exposição do
CCBB. Este meu livro sai inclusive com data de 2001, no apagar
de luzes do ano. Todo revisionismo está intrinsecamente ligado
a uma nova seção de equívocos, sobretudo quando não consegue
escapar de um modismo. O Surrealismo não foge ao tema. Há uma
bibliografia sobre Surrealismo que ainda não se encontra
devidamente assimilada. Valentin Facciolli, por exemplo, tem
escrito algo relevante sobre o assunto. Claudio Willer tem
dado contributo impecável em termos de artigos na imprensa.
Jorge Schwartz, assim como José Paulo Paes e Gilberto Mendonça
Teles, apresentam uma cronologia sumária dos acontecimentos,
onde claramente se detecta um esquematismo sem maior
conseqüência. O livro organizado por Robert Ponge reflete bem
essa diversidade até aqui aludida. O primeiro volume de A
Aventura Surrealista, de Sérgio Lima, requer a
continuidade editorial para que se constate a validade. De
qualquer maneira, o que impera é a necessidade de estabelecer
uma discussão aberta sobre os acontecimentos, desde que
colocados com isenção e honestidade. Acho que O Começo da
Busca cumpre esse
papel. |
A
poesia entre o surrealismo e a poesia
Claudio
Willer
CW - Oswald de
Andrade, você se refere bem criticamente a ele, neste livro e
em outros lugares. Recentemente, tive acessos de prazer com a
releitura de Memórias sentimentais de João Miramar e
de Serafim Ponte Grande. Aquelas metonímias todas de
Memórias, ninguém fazia aquilo, ninguém fez, foi o
que houve de mais moderno e transgressivo naquele momento.
Serafim, então, aqueles manifestos anarquistas… E a
própria idéia de Antropofagia, nela havia lugar para
Surrealismo, para uma incorporação de Surrealismo que não foi
levada adiante, nem por Oswald, que preferiu ser, em suas
palavras, "casaca de ferro do Partido Comunista", nem por mais
ninguém. Poeta bem oswaldiano, para mim, é o Piva, bem mais
que marioandradino. Antropófago e, mais notadamente em
Coxas, repleto de alusões que ainda não foram
percebidas a essas duas narrativas em prosa de Oswald. E em
passagens como Exu comeu tarobá de Quizumba,
que você colocou em O Começo da Busca, onde cita
Jorge de Lima, mas refere-se a esse aspecto do nosso
modernismo. Não se trata, nisso que estou apontando, do
"surrealismo à brasileira" de Murilo, mas de uma ampliação da
subversão. Vejo sementes disso dentro dessa obra múltipla,
fragmentária, desigual, dando tiros em todas as direções,
trocando temas e tratamentos literários (Miramar, p.
ex., pedia tratamento realista, pelo que ele relata, história
de crise burguesa), porém inquieta e subversiva de Oswald.
FM - Oswald propiciou inúmeras polêmicas. A busca das
"fontes puras do primitivismo", ele entendia como
possibilidade única de despir a arte de "convencionalismos e
sofisticações". Tento entender a idéia de convencional, mas
penso a que tipo de sofisticação nos teria levado o Futurismo
tão cultuado por ele e Mário de Andrade. Claro que fazia média
quando dizia dos poetas que o sucederam: "são todos superiores
a mim". E a própria escritura paródica que perseguia na poesia
implicava ao menos em uma busca de sofisticação estilística.
Reconheço uma certa aproximação no lance de imagens de
Quizumba (RP, 1983), como afirmas, mas podemos pensar,
com o próprio Roberto Piva, naquela "experiência
alquímico-futurística da cidade" que aproxima Paulicéia
Desvairada (MA, 1922) e Paranóia (RP, 1964). Nos
dois casos são aproximações parciais. A poesia de Oswald e
Mário está aquém dos desdobramentos imagéticos e sintáticos
alcançados por Piva, sem falar que a vertente anárquica deste
último está mais ligada a Dadá, de onde inclusive surgiu a
noção de um canibalismo que depois seria absorvida pela
Antropofagia. Tampouco creio que houvesse espaço para
Surrealismo ali, pois já a Semana de 22 era fruto das
afinidades de Mário e Oswald com Marinetti, ou seja, já se
desenhava, dentre outros equívocos, uma idéia de nacionalismo
que iria dar em extremistas como Plínio Salgado. Curioso é
observar que, nos anos 50, despertavam a atenção de Oswald
novos poetas como Thiago de Mello e Geir Campos - o mesmo
Oswald que considerava Ledo Ivo "um caso típico do soldado do
Exército do Pará". Acho que o Franklin de Oliveira tem razão
naquela observação de que "todo mau poeta é mau pensador".
Oswald era um polemista sem sustentação alguma. Evidente que
aqui não nos interessa essa ingenuidade do Murilo de um
"surrealismo à brasileira". Mas se vamos separar afirmações e
atos que denunciam o caráter de um autor e a própria obra,
mesmo aí não vejo em Oswald, no construtivismo frustrado de
uma poética, nada que o aproxime do Surrealismo. Basta ler
Os dentes do dragão (1990), recolha de entrevistas,
para compreender melhor obsessões e oscilações estéticas deste
poeta.
CW - É. Em Oswald há o melhor e o pior, e nem um nem outro
tem continuidade, ambos são fragmentários. Nas apreciações
críticas de seus contemporâneos, está o pior dele. E o
capítulo do que o Modernismo ignorou, ou do que passou por
cima, ou ao lado, é extenso. Inclusive do que já havia de
inovador e transgressivo acontecendo aqui, entre simbolistas,
por exemplo. Futurismo, a ideologia da modernidade enquanto
tal, o moderno adotado como valor, é claro que são coisas que
não há como aceitar, mas os manifestos iniciais do Futurismo
são de uma irreverência colossal. Se ao menos houvessem
adotado isso para valer, já seria algo. Agora, sobre
Surrealismo no Brasil, na primeira metade do século XX,
enxergo duas, como diria - ...visões? leituras? histórias?
Uma, de que não houve Surrealismo, ou quase não houve, quer
fosse por inadequação (Antonio Candido, José Paulo Paes), ou
por causa de um ambiente cultural tacanho, provinciano,
católico, positivista, de um nacionalismo estreito, etc. A
outra, mais explícita no que Sérgio Lima publicou em
Órganon e em Surrealismo e Novo Mundo, e em
certa medida em Valentim Facciolli, é de que houve
Surrealismo, sim, mas não foi incorporado à História, não foi
adequadamente registrado - também porque o ambiente cultural
era tacanho, provinciano, católico, positivista, de um
nacionalismo estreito, etc… Sem poupar ambiente cultural,
parece-me que em O Começo da Busca você não chega a
adotar nem bem uma, nem bem a outra dessas versões ou
interpretações.
FM - Talvez caiba dizer que a grande obra do Futurismo são
os manifestos. Marcel Duchamp foi quem mencionou que o
Futurismo era "um impressionismo do mundo mecânico", ou seja,
aquela coisa da retina funcionar como "uma inesgotável fonte
de prazer" que, no dizer de Max Ernst, caracterizava o
Impressionismo, vale para o Futurismo, desde que pensemos que
os futuristas tinham olhos apenas para um mundo mecânico
("Escutar os motores e reproduzir seus discursos"). Agora,
também o Mário de Andrade foi um notável autor de manifestos,
não? Tanto em um caso como no outro, quanto se adotou pra
valer, em termos de fazer coincidir com a ação o discurso dos
manifestos? Mas pensemos nessa relação entre Modernismo e
Surrealismo, observando, por exemplo, que Breton e Mário de
Andrade tinham pensamentos opostos acerca da analogia. O que
em um era pleno exercício de liberdade, no outro não passava
de mera substituição da "coisa vista pela imagem evocada",
constituindo-se assim em "um dos maiores perigos da poesia
modernista". Mário manifestou-se acerca da beleza apenas
compreendendo a distinção existente entre o "belo artístico" e
a "beleza da natureza", jamais percebendo a condição
convulsiva que lhe indicaria Breton. Havia um certo
acanhamento em nossa ruptura, em nossa transgressão. Claro que
o ambiente era pautado por essa mescla de provincianismo,
catolicismo exacerbado, nacionalismo limitador etc. Mas cabe
ao poeta romper com isso, não? Ele não pode ser a medida do
ambiente em que circula. E nossos modernistas, de alguma
maneira, mais se acomodaram ao ambiente do que propriamente
romperam com ele. Vi um documentário na TV, sobre o
Modernismo, onde se dizia que nossos rapazes haviam recuperado
o barroco. É um duplo equívoco, seja porque não havia barroco
algum a ser recuperado como sobretudo porque o barroco não se
manifestou nas obras modernistas. Um bando de intelectuais
levando Blaise Cendrars para conhecer as cidades mineiras
(Ouro Preto e cercanias) não é recuperação do barroco,
francamente. As versões de existência e inexistência de
Surrealismo no Brasil são complementares, ou melhor, frutos de
uma mesma falha de visão. O Surrealismo entranhou-se em toda a
criação artística que melhor expressa o século XX. O Brasil
não lhe ficou alheio. Mas havia uma rejeição enorme, sobretudo
provocada pelo que tu mesmo já chamaste de "caipirismo
brasileiro disfarçado de nacionalismo", aspecto que, por
sinal, possui uma dimensão muito mais abarcadora, no tempo e
no espaço, do que se possa imaginar. Por outro lado, ao tentar
recuperar as pistas de circulação do Surrealismo entre nós não
posso sair a afirmar que tudo é Surrealismo. A história do
Brasil é o registro colossal de um acúmulo de farsas. Caberá
recuperá-la a partir de uma leitura lúcida dos acontecimentos,
não transferindo aos mesmos nossos desejos ou
preconceitos.
CW - Em suma, em matéria de reconstituição de Surrealismo
no Brasil, ainda há muito a ser feito. E procedendo-se, antes,
ao resgate do que é excêntrico, do que ficou à margem. Por
exemplo, Rosário Fusco, ou, tomando um autor mais recente,
Campos de Carvalho. "Surrealismo à brasileira" - se estivesse
falando em vez de escrever, diria que estou pensando em voz
alta - se tomarmos o que é discrepante hoje - por exemplo,
esse estranhíssimo Jarbas Medeiros de Minas Gerais, que assina
Mafalda Cataraz - ou então, o R. Roldan-Roldan de Campinas -
tipos realmente estranhos - teríamos mais componentes de uma
subversão à brasileira, base, quem sabe, de um
"surrealismo à brasileira", na mesma medida em que houve uma
subversão francesa, preexistente ao surrealismo, pois,
conforme já observei em outras ocasiões, a loucura campeava na
Belle époque, e o que o surrealismo fez foi procurar
sistematizá-la, dar-lhe sentido político. Eu queria voltar ao
nosso Modernismo, e ao que ele deixou de enxergar, ao que não
viu, ou viu de modo disfarçado, não-declarado: literatura
licenciosa brasileira do século XIX, como a de Bernardo
Guimarães (em Oswald de Miramar e Serafim dá
para perceber que sim, que ele viu isso); não gostaram do
anti-beletrismo de Lima Barreto (e vice-versa) - nem do que
havia de mais excêntrico em nosso Simbolismo - além de não
haverem reparado em Souzândrade, etc. Enfim, é a isto que eu
queria chegar: aqui não houve a "correia de transmissão" de
que fala Breton com relação ao que o Simbolismo tinha de mais
subversivo. Até que ponto, pergunto, você consegue enxergar
essas correias de transmissão nos surrealismos de outros
países latino-americanos? Inclusive com relação a uma
ramificação importante e influente do Simbolismo, que vem a
ser o modernismo de Rubén Darío? Será que estou sendo claro em
minha pergunta? Aliás, reconhecendo que fazer isso,
reconstituir correias de transmissão com relação a subversões
locais, nesse ou naquele país, é uma tarefa ciclópica.
Sabendo, ainda, que quem fez isso, em parte, e de modo bem
parcial, conforme você aponta, foi Octavio Paz.
FM - A leitura do excêntrico permite certa mitificação,
tanto maquiando o que se resgata, superestimando-o, quanto
deixando escapar o que foge a essa tipificação. Basta pensar
que a pesquisa na criação artística, que Mário de Andrade
situa como uma das contribuições centrais do Modernismo, já
vinha sendo feita por um Alberto Nepomuceno, músico que
seguramente teria participado da Semana de Arte Moderna se
acaso não tivesse morrido dois anos antes. Pois bem, as
pesquisas de Nepomuceno foram deixadas para trás e o nome de
Villa-Lobos - um excêntrico, independente da qualidade de sua
música - acabou sendo a grande referência de nossa entrada da
modernidade. A opção pelo excêntrico nos leva a uma leitura
caricatural da cultura. Acho interessante que o R.
Roldan-Roldan refira-se à arte como "um grito de libertação",
lembrando que a mesma "não é racional", e que o Jarbas
Medeiros situe o progresso como uma "mentira vital", ambos
aparando certos vícios conceituais. A ficção do primeiro está
por merecer uma leitura que não ponha à margem a condição
erótica. O segundo interessa sobretudo pelas abordagens
críticas, mas lembrando que uma antevisão dessa "degradação da
identidade", que Roldan-Roldan menciona como sendo "uma das
mais deploráveis características de nossa época" já a
encontramos nos romances de ficção científica. E coloco isto
aqui reafirmando essa condição da arte de antecipar a
história. Me atrai quando falas que os modernistas "viram de
modo disfarçado, não-declarado". Sei que mencionas apenas a
literatura licenciosa, mas essa maneira de olhar cabe
para muitos outros aspectos. Às tuas referências podemos
acrescentar a ficção de um Adolfo Caminha. Fato é que essa
"correia de transmissão" não ocorreu entre nós. O argentino
Francisco Madariaga tem uma distinção entre Surrealismo na
Europa e na América Latina que me parece fundamental mencionar
aqui. Diz ele que o Surrealismo sempre lhe foi uma boda e não
um protesto: "não me serviu para rejeitar o mundo, mas sim
para celebrá-lo". E diz ainda: "a realidade americana, com
seus excessos, já cumpre com a rebelião que os europeus
deveriam levar adiante através de seus ataques ao
racionalismo". Tal celebração, no entanto, deve ser observada
criteriosamente. No caso do Chile, por exemplo, o grande pai
da modernidade que é Pablo de Rokha deu à poesia chilena seus
melhores e piores versos, como se costuma dizer. Logo em
seguida teríamos Huidobro, Rosamel del Valle, Neruda e
Díaz-Casanueva. No entanto, o grupo surrealista Mandrágora não
estabelecia vínculos de espécie alguma com essa tradição. No
Peru havia ainda um gesto mais exacerbado de ruptura. E
ficaríamos aqui enumerando situações idênticas. Octavio Paz é
de uma geração posterior à dos primeiros poetas surrealistas.
O chileno Ludwig Zeller chamou a atenção para a poesia de
Rosamel del Valle, seu fundamental aporte surrealista. Chegou
a publicar livros do mesmo. Paz não foi parcial, mas antes
discricionário. Minimiza a presença do Surrealismo no grupo
Contemporâneos e estabelece falsas conexões, sempre com
interesses políticos que visavam mantê-lo na pauta do dia. As
conexões que mencionas não existem intencionalmente, não foram
buscadas. Por uma análise histórica podemos localizá-las, como
o faz Stefan Baciu, por vezes até inventando antecedentes para
o Surrealismo na América Hispânica, como situa o argentino
Girondo e sobretudo o chileno Huidobro. Dessas conexões vistas
a posteriori são exemplos o venezuelano José Antonio
Ramos Sucre e o peruano José María Eguren. Se entendi bem tua
colocação, ela diz respeito a um diálogo entre Surrealismo e
um passado local, subversões marginalizadas, prenunciações
etc. Um exemplo solto: Blaise Cendras vir ao Brasil e nos
apresentar a riqueza subversiva de um Príncipe do
Fogo.
CW - Que beleza! Com essas observações, você está
continuando e detalhando o ensaio de O Começo da Busca,
talvez iniciando o estudo que falta sobre movimentos poéticos
na América Latina, examinando-os no detalhe, e não só no
atacado ou em forma de diagrama, como no restante da
bibliografia. Que coisa estranha - chilenos, e muitos outros
latino-americanos embeberam-se de geração 27 espanhola, que,
por sua vez, naquele momento, havia assimilado, sim, imagética
surrealista - e acho que Ángel Pariente registrou isso
corretamente. E, ao mesmo tempo os surrealistas
latino-americanos propriamente ditos não tinham nada a ver com
isso, fizeram outro tipo de conexão…! Sou contra um tipo de
visão meio religiosa de surrealismo, apenas como realização de
princípios ou fundamentos. Sempre, e isso vale para os
surrealismos (é, assim mesmo, no plural) ibero-americanos e
para esse colossal Surrealismo português à margem do
Surrealismo, relacionaram-se com um contexto, não no sentido
de o expressarem (o que seria determinismo), mas de interagir,
reagir, adotar posturas críticas com relação a isso ou aquilo.
A essa historicidade dos surrealismos correspondem grandes
momentos de lucidez. Reconstitui-los isso é trazer algo de
importante ao conhecimento da relação entre literatura e
sociedade, e da relação de cada movimento ou manifestação com
os seus particulares contextos literários e sociais. Ah sim,
gostei de você estar sabendo do Jarbas e do Roldan-Roldan.
Antenadíssimo. Precisamos dedicar futuramente algumas linhas a
cada um deles. Mas prossigamos nessa questão da diversidade de
histórias e situações dos surrealismos. À frente, ainda quero
entrar na diversidade da expressão propriamente literária, na
pluralidade das escritas surrealistas, bem tratada em sua
antologia.
FM - O roteiro dessas conexões a serem revistas - na maior
parte delas, anotadas pela primeira vez - é algo fundamental e
que tem escapado à nossa historiografia. Aliás, eu me
pergunto se o verbo é este mesmo. Veja o caso da biblioteca do
Mário de Andrade, com inúmeros exemplares de livros
hispano-americanos devidamente autografados, ao mesmo tempo em
que ele jamais se manifestou a respeito dessa literatura. E
não é verdade que o desinteresse era mútuo. Nos anos 50, por
exemplo, o grupo Poesía Buenos Aires estava interessado no
Brasil, através de Raúl Gustavo Aguirre e principalmente de
Rodolfo Alonso, e publicaram na revista homônima poemas de
Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima. Agora, eu acho até
natural a existência de uma relação entre Espanha e América
Hispânica - o que não ocorreu entre Brasil e Portugal. Já nos
anos 20, havia uma interação, envolvendo nomes de um lado e
outro, tais como César Vallejo, Vicente Huidobro, Juan Larrea
e Gerardo Diego. Poetas como Juan Ramón Jiménez, Luis Cernuda
e Federico García Lorca influenciaram largamente a poesia
hispano-americana. Contudo, esta poesia soube renovar-se, o
que não ocorreu com a espanhola. Recorde que Breton não falava
espanhol - nem demonstrou nenhum interesse em aprendê-lo -,
vindo daí uma completa falta de visão acerca do que se passava
com a poesia em toda a extensão do idioma. Aliás, essas
conexões com outras culturas foram feitas em grande parte
graças ao Benjamin Péret. Também sou contra todo tipo de
inquestionabilidade. E cabe mencionar que justamente o
Surrealismo se fez mais forte naqueles artistas que souberam
adotar uma postura crítica, assim possibilitando
desdobramentos que enriquecem o assunto. Interessa aí traçar
uma distinção entre visão crítica e rejeição a priori.
Enrique Molina diz que "a poesia deve nascer, não de idéias
intelectuais mas sim de vivências profundas". Tal observação
nos permite uma releitura de Lugones e Borges, por exemplo. Ou
como o próprio Molina sugere: uma distinção entre Baudelaire e
Mallarmé. Complementares? Sim, desde que percebamos as
distinções. Outra estranheza envolvendo o Surrealismo
relaciona-se com o realismo mágico da prosa de ficção
hispano-americana. É uma tolice pensar que essa ficção tenha
representado uma rejeição ao realismo sem influência do
Surrealismo. Não chega a ser um desdobramento pelo simples
fato de que isoladamente a perspectiva estética não interessa
ao Surrealismo. E em termos de compromissos existenciais bem
sabemos a querela que envolve autores ligados a essa
tendência. Há, contudo, uma presença marcante na literatura
latino-americana que diz respeito à prosa poética. Somente uma
cegueira crítica muito particular não permite a leitura de
José Antonio Ramos Sucre, cuja obra poética foi toda escrita
em prosa. E há ainda outro aspecto, o do verso de corte longo,
que extravasa a linha e segue praticamente em busca do
infinito, imprimindo um ritmo bem distinto da ruptura já
provocada pela inserção do verso livre. Pois bem, essa medida
do verso, que hoje encontramos em um José Kozer, caberia
observá-la à luz da poesia do chileno Pablo de Rokha ou do
argentino Enrique Molina, por exemplo. Não quero dizer, claro,
que esses aspectos todos estejam ligados ao Surrealismo. Minha
preocupação é bem outra: que sejam discutidos sem preconceito
algum.
CW - O que vejo nesses seus comentários, onde acabamos
abarcando desde Jarbas Medeiros até José Antonio Ramos Sucre,
passando por Adolfo Caminha, não é apenas uma possibilidade de
ampliação do estudo sobre Surrealismo. É algo maior, diria até
de dimensões enciclopédicas, o levantamento e o estudo do
excêntrico em literatura, do insuficientemente lido, daquilo
ainda não incorporado ao repertório dos críticos e aos
cardápios dos estudos literários. De certo modo, isso é feito
em Agulha, e
de modo mais sistemático na Banda Hispânica. O último
comentário que eu teria, então, assim completando minha
participação nessa nossa conversa, é sobre a diversidade da
poesia surrealista, evidentemente por confundir-se ou
sobrepor-se em parte a esse continente do que está à margem,
do não-catalogado, portanto do diverso. Dessa diversidade faz
parte o pathos, a intensidade passional evidente em
César Moro, sem dúvida um hiper-romântico, assim como, no pólo
oposto, a ironia e a vocação até satírica de Juan Calzadilla.
Ou então, a combinação de furor, lirismo e sarcasmo em Piva. E
também, indo ao detalhe, algo como o Retorno de
Nietzsche de Raúl Henao (belo poeta, por sinal - fica
evidente, por essa seleção, que todos eles mereciam ter mais
obras publicadas aqui…), ampliando o que se pode entender por
"surrealismo". Isso que chamo de diversidade dentro do
Surrealismo ficaria mais evidente ainda se houvesse sido
possível incluir alguém como o venezuelano Pérez Perdomo, um
sui generis por excelência. Enfim, todos são poetas
surrealistas, e, ao mesmo tempo, poetas com personalidade
própria - talvez por isso mesmo, por terem personalidade
própria, acabaram estabelecendo vínculos - distintos em cada
caso - com o Surrealismo.
FM - O que estamos fazendo na Agulha não
tem equivalente em nossa imprensa cultural. Não se trata
simplesmente de recolher matérias interessantes e publicá-las.
Estamos sistematizando possibilidades de leituras críticas
acerca de nossa realidade, de uma maneira ampla e sem vício ou
acomodação de ordem alguma. E sobretudo estamos buscando temas
e colaboradores que, além da consistência indispensável,
constituam um repertório não percebido por críticos, editores
e jornalistas de uma maneira geral. No caso da Banda
Hispânica, ali se encontra particularizada uma ambientação
hispano-americana, centrada na poesia e no ensaio. Já observei
que futuramente o material que se encontra disponível pode ser
convertido em livros múltiplos, de ensaios, entrevistas,
depoimentos etc., inclusive volumes monotemáticos sobre
determinados autores. Trata-se de um vasto material crítico
que vem sendo disponibilizado com atualizações bimestrais e
que bem poderia já estar sendo utilizado por professores de
literatura em nossas universidades. Também já poderia contar
com o apoio, em termos de difusão, da parte da imprensa
impressa, amparando a complexa tarefa de refazer todo um país
de um estado de mendicância cultural. Quanto à diversidade do
Surrealismo, a partir do que se pode perceber nas páginas de
O Começo da Busca, sim, há um amplo espectro que o
livro apenas ajuda a descortinar. Evidente que se pode pensar
em novas edições ampliadas ou mesmo em um segundo volume, sem
dúvida, aí incluindo a possibilidade de antologias pessoais.
Poetas como o equatoriano César Dávila Andrade, os dominicanos
Domingo Moreno Jiménes e Franklin Mieses Burgos, este
venezuelano tão bem evocado por ti, Francisco Pérez Perdomo -
cujo livro Los venenos fieles (1963) necessita ser
recuperado -, o guatemalteco Luis Cardoza y Aragón, os
argentinos Carlos Latorre e Olga Orozco, dentre inúmeros
outros, não nos deixando de fora uma vez mais, são exemplos
dessa diversidade que mencionas. Inclusive caberia observar,
sem os costumeiros prejuízos de escolas ou mesmo igrejas
literárias, as saudáveis influências do Surrealismo na obra de
outros tantos (José Lezama Lima, Jorge Gaitán Durán, Blanca
Varela). Como essas aproximações ou recuperações não foram
feitas até hoje, e isto em âmbito continental, é natural que
nos ressintamos de muitas ausências. De qualquer forma,
confirma-se o mais importante: a inexistência de um segmento
irreflexo do Surrealismo na América Latina. Nenhum desses
poetas disse amém cegamente às origens parisienses do
movimento. Souberam fazer uma inestimável leitura, mantendo
particularidades essenciais à defesa estética de cada um, o
que, a rigor, amplia e mantém aceso o ânimo
surrealista. |
Floriano Martins a la búsqueda del
Surrealismo
Mónica
Saldías
E n este trabajo antológico Floriano Martins recoge
y reúne las voces de grandes poetas de América Latina, como
los argentinos Aldo Pellegrini y Enrique Molina, los peruanos
César Moro y Emilio Adolfo Westphalen, los brasileños Sérgio
Lima y Roberto Piva, el mexicano Octavio Paz, los chilenos
Enrique Gómez-Correa y Ludwig Zeller, el colombiano Raúl Henao
y los venezolanos Juan Sánchez Peláez y Juan Calzadilla.
Parafraseando a Octavio Paz, invierte Martins el título
del mexicano La búsqueda del comienzo, iniciando un
sondeo de identidades y particularidades en las voces del
continente, a través de una selección de textos de los poetas
anteriormente mencionados, en un intento de vincular dichas
voces con un surrealismo, que al entender del autor trasciende
y rebasa los propios orígenes y bases del movimiento parisino.
Así O Começo da Busca persigue la comprensión de
una poesía abierta al diálogo no ya a través de las
tradiciones nacionalistas y las limitaciones provinciales,
sino por medio de una vitalidad poética que tendría como base
común el surrealismo. Martins introduce al lector desde
las primeras páginas explicando las razones de su necesidad
urgente de buscar y reinvidicar el surrealismo en voces
latinoamericanas, y para ello apunta y dispara sobre diversas
afirmaciones que a lo largo del siglo XX han realizado autores
y críticos. Dice Martins: ... -entre tantos equívocos,
um já bem clássico, que é a imposicão por parte do crítico
romeno Stefan Baciu, do termo ’para-surrealista’, segundo ele
para ser aplicado àqueles poetas que não encarnan
integralmente os preceitos básicos do Surrealismo, como se a
tal situacão pudesse ser dado tratamento parcial do tipo
’meio-surrealista’ ou ’surrealista-mas-nem-tanto.
Según Martins las influencias que el surrealismo ha tenido
en la poesía latinoamericana no han sido percibidas en su
verdadera dimensión. El lector accede así, inmediatamente
después de las palabras introductorias del autor, a una
muestra antológica de los poetas latinoamericanos arriba
mencionados: una invitación a la reflexión sobre las
identidades y sobre el surrealismo como posibilidad, más allá
de fronteras idiomáticas y de tradiciones regionales.
Floriano Martins cierra su libro con un capítulo que reúne
entrevistas con los brasileños Roberto Piva y Sérgio Lima, el
argentino Francisco Madariaga y el español Ángel Pariente.
O Começo da Busca, un libro-objeto interesante para
aquel lector que quiera zambullirse en la aventura de una
búsqueda y un sondeo a través de las múltiples voces que
siempre habitan en cada autor. ¿Surrealistas? Tal vez…
Pero quizás lo más interesante de este título no sea el
surrealismo en sí, sino la invitación que el autor nos hace a
una búsqueda de identidades, en la que el lector habrá de
encontrarse inevitablemente con un autor que abre fuego sobre
afirmaciones establecidas como verdades absolutas e
incuestionables. ¿Vacas sagradas? Claro que el propio disparo
también corre el riesgo de convertirse en una verdad
tan dudosa, absoluta e incuestionable como las que el autor
pone en tela de juicio. Pero entonces será cuestión de seguir
disparando. [M.
S.]
MS – ¿Cómo vivís el surrealismo cotidianamente?
FM – Seria muito fácil detectar alguma insanidade em meu
comportamento. Levo uma vida de franco atirador, completamente
empenhado na difusão da poesia e da poesia hispano-americana
em meu país. Graças à Agulha,
que dirijo com o Claudio Willer, essa difusão se amplia e
abarca a criação artística como um todo. Meu cotidiano se
encontra movido por essas preocupações: as duas revistas, Agulha e
Banda Hispânica, os projetos editoriais, textos para
imprensa, traduções etc. Talvez se pudesse dizer que o amor e
a liberdade se encontram um pouco tolhidos pela poesia, mas
não sinto assim. Sou um grande apaixonado por tudo o que faço
e sinto-me bastante livre dentro do caminho que escolhi. Mas
sou essencialmente um poeta - sem distingui-lo, claro, do
homem que sou. Se há aspectos em minha vida e minha obra que
podem estar relacionados com o Surrealismo, seguramente não o
são por contigência ortodoxa de espécie alguma.
MS – ¿Qué camino escogiste? Como francotirador fuera de una
contingencia ortodoxa, ¿por qué el Surrealismo y no otro
ismo parece ser te ofrece el mejor ángulo desde donde
"disparar"?
FM – Não, não escolhi ismo algum. O Surrealismo é
parte expressiva de meus estudos sobre a poesia na América
Hispânica, o que evidentemente não impede refletir sobre
diversas outras tendências. Claro que a resistência a ser
aceito como um caráter escolástico torna o Surrealismo o mais
libertário movimento surgido no decorrer do século XX. Salvo
engano o Octavio Paz chegou a dizer que este seria lembrado
não como o século do marxismo, mas sim do Surrealismo.
MS – Probablemente el siglo de los ismos… ¿No te
parece que podría ser interpretada como una opción
"trasnochada" la de reivindicar el surrealismo a principios
del siglo XXI, practicamente un siglo después de su nacimiento
y teniendo en cuenta que también el pensamiento freudiano -su
indudable base- ha sido superado por la propia psicología?
FM – Certa vez o inglês A. Alvarez lembrou que o Romantismo
recebeu, no Surrealismo, um novo impulso, não propriamente em
função dos escritos de Freud, mas sim "por intermédio de uma
versão nebulosa e inflada do que se pensava que Freud queria
dizer", ou seja, não era a psique que estava na alça de mira
dos surrealistas, mas antes todo um mistério que envolvia o
assunto. Não queriam compreender os sonhos mas vivê-los,
expressar-se através da criação "da mesma forma e com a mesma
força que os sonhos". Disse Magritte que "o surrealismo
reinvindica para a vida desperta uma liberdade parecida com a
que temos no sonho". E Arp acrescentou um molho poético:
"Nossos atos são atos de sonhadores, de nadadores
enigmáticos". Baudelaire, graças a seu "gosto pelo
Infortúnio", no dizer de Éluard, era considerado pelos
surrealistas um poeta fundamentalmente moderno, juntamente com
Lautréamont e Rimbaud. O sentido de rebelião que se buscava no
Romantismo interessava aos surrealistas, embora Breton tenha
frisado que somente se atingisse um paroxismo, caso contrário
se tornaria "uma aventura barata" - o que é lícito dizer de
qualquer instância. Agora, a atualidade do Surrealismo pode
ser vista a partir de uma colocação de Breton: "Não se trata
aqui de uma poética: entregamos o produto do pensamento pelo
que vale". Concluímos o século XX com uma idéia completamente
fraudulenta do valor intrínseco das coisas. É como se o homem
deixasse de ser o homem e sua circunstância e passasse a ser
apenas a circunstância. Me parece que o Surrealismo tem sido
observado mais pelos erros do que pelos acertos. O estado de
ânimo a que se referia Artaud para justificar a existência do
Surrealismo me parece essencial trazê-lo para nosso tempo.
Vivemos em uma sociedade inteiramente domesticada, alheia ao
motor da inércia que a define. O Surrealismo ainda pode atuar
através de um sentido de libertação do espírito. Se o problema
é de corte histórico, que se mude o nome, não importa que não
se chame mais Surrealismo. Seguirá valendo a urgência de
mais realidade.
MS – ¿Cuáles son las características de esa sociedad
domesticada (¿Brasil?) que mencionas, ese valor fraudulento
del valor intrínseco de las cosas y cuál es el aporte especial
que puede hacer el surrealismo? Tú hablas de liberacion de
espíritu, algo que en realidad no es exclusivo del
surrealismo… En realidad, a través de la historia, cada
ismo, cada corriente de pensamiento, surge como
respuesta a algo anterior que se experimenta como agotado en
sí mismo, de lo cual se vive la necesidad de liberarse, entre
otras cosas. Pero, ¿qué es lo que el surrealismo aporta de
manera especial y diferente en esa liberación de espíritu que
mencionas?
FM – Breton dizia que o Realismo lhe transmitia uma certa
hostilidade "a qualquer progresso intelectual e moral". Por
sua vez, o Dadaísmo era tão exacerbadamente anárquico que
implicava em um certo negativismo. De qualquer maneira, não
entendo esse sentido de libertação do espírito como sendo uma
particularidade do Surrealismo. Éluard insistia em dizer que
essa liberdade não faria sentido algum sem uma consciência
humana, caso contrário não passaria de "um instrumento
qualquer de uma moral utilitária". Esta ausência de uma
consciência humana coincide com o que chamo de um estado de
inércia pelo qual passa a sociedade brasileira. Evidente que
também aqui não quero dizer que esse estado seja uma
exclusividade nossa. Nos deixamos essessivamente entranhar por
uma espetacularização da arte, uma mercantilização da cultura,
de tal modo que perdemos a consciência do humano que deveria
ser a raiz de toda cultura. Agora, o tipo de interferência a
ser feito é sempre a de duplo enfoque, exterior e interior, e
sempre buscando erradicar as antinomias entre sonho e ação,
loucura e razão, sensação e representação, como já alertara
tantas vezes o próprio Breton. Ilustro ainda com uma lembrança
de Claudio Willer de que "a mais realidade de Breton
era o sublime, a realização do amor louco, o mundo regido pelo
signo ascendente".
MS – ¿Conocés el trabajo de Anton Corbjn?
FM – Apenas através das capas de CDs de bandas como REM e
Echo & The Bunnyman. Outro artista identificado com o
mundo pop é H. R. Giger, bastante conhecido o trabalho de
design para o filme Alien, do Ridley Scott.
Nomes que poderiam ser ligados ao Surrealismo? É onde queres
chegar?
MS – En alguna oportunidad el critico de arte sueco Ulf
Linde se refirió a Andre Breton como seguidor de la tradición
antiquisima en la cual los alquimistas de la Edad Media con
sus sueños sobre relaciones secretas entre el macrocosmos y el
microcosmos, el universo y el ser humano, construían una trama
sumamente atractiva. Luego fascinado por el surrealismo
Rimbaud escribía su famoso poema sobre la alquilmia de la
palabra… Bastante avanzado el siglo XX surge el arte pop, y en
este cuadro entre muchos otros aparece el aporte de un
Anton Corbjn; el arte pop toma sin lugar a dudas muchas cosas
del dadaísmo, del cual Breton formó parte antes de apartarse
para fundar el movimiento surrealista… ¿Adónde quiero llegar?
A reflexiones abarcadoras…
FM – Ah as reflexões abarcadoras! Tenho que recorrer a
Breton uma vez mais, quando diz, em entrevista ao espanhol
José María Valverde, que o Surrealismo, desde o princípio, "se
apresentou como a codificação de um estado de espírito que tem
se manifestado esporadicamente em todas as épocas e em todos
os países". O que teríamos que ver é se essa manifestação
emancipadora do espírito está presente na obra de um Corbjn ou
de um Giger. Até que ponto a pop-art se mostra como uma
insurreição ou apenas acomodação ao mercado, como temia
Magritte? Não vejo nela o caráter violento e escandaloso que
definia o Dadaísmo. Mas devo aclarar que talvez não seja
correto limitar a obra desses dois artistas citados ao âmbito
decorativo da pop-art. Já disse que conheço pouco o trabalho
do Corbjn, mas o suíço Giger me fascina com as paisagens onde
se mesclam o erótico e o macabro.
MS – El dadaísmo fundamentalmente, y en sus orígenes, se
caracterizó por un nihilismo. Pero cuando digo que al arte pop
toma cosas del dadaísmo me refiero a elementos, no a una
totalidad. Sin embargo, el escándalo, la búsqueda de
provocación ha estado presente en el surrealismo. Y no menos,
elementos de mercado. No hay como pensar en un Salvador Dalí.
Tal vez lo relevante sería preguntarse si sería posible e
incluso deseable, estar fuera del mercado. Tú acabas de
publicar un libro sobre el surrealismo en la poesía
hispanoamericana, ¿no es cierto? ¿Está tu O Começo da
Busca fuera del mercado? ¿Qué es una entrevista sino una
forma de marketing?
FM – Evidente que sim, e não cabe aí nenhuma rejeição cega.
Minha observação dizia respeito a um tipo de arte que se torna
apenas acomodação ao mercado, que se entrega por completo às
exigências de um marketing desenfreado, centrado em uma
imposição que é também uma impostura. Há todo um processo de
esvaziamento de valores culturais naquilo que se conhece por
indústria do entretenimento.
MS – ¿A qué publico se dirige tu O Começo da Busca?
¿A qué búsqueda estás invitando al lector de tu libro?
FM – O livro descortina um amplo painel acerca das
influências do Surrealismo, informando sobre acontecimentos
até então não percebidos ou devidamente inseridos na
historiografia que trata do assunto, mostrando assim que a
América Latina desconhece parcialmente a si mesma. Procurei
expor com honestidade e sem folclorização aspectos ligados à
poesia e à cultura naqueles países que conformam o âmbito da
pesquisa, ultrapassando o circuito europeu e permitindo ao
leitor uma compreensão de momentos até então não mencionados
ou sequer verificados pela crítica literária no Brasil. Ao
reunir poetas brasileiros e hispano-americanos creio haver
propiciado um encontro revelador, sugerindo alguma reflexão
acerca da ausência de diálogo entre essas culturas. O
Começo da Busca divide-se em três extensos capítulos,
iniciando-se com um estudo detalhado sobre as ações essenciais
do Surrealismo em vários países da América Latina. Segue-se
uma mostra do pensamento e da poesia de doze poetas: os
argentinos Aldo Pellegrini e Enrique Molina, os peruanos César
Moro e Emilio Adolfo Westphalen, os brasileiros Sérgio Lima e
Roberto Piva, o mexicano Octavio Paz, os chilenos Enrique
Gómez-Correa e Ludwig Zeller, o colombiano Raúl Henao e os
venezuelanos Juan Sánchez Peláez e Juan Calzadilla. Um
conclusivo capítulo reúne entrevistas com os brasileiros
Roberto Piva e Sérgio Lima, o argentino Francisco Madariaga e
o espanhol Ángel Pariente (autor de uma importante antologia
do Surrealismo em língua espanhola). Já no título se revela
uma intenção desmitificante, ao inverter o título de um livro
de Octavio Paz sobre o Surrealismo. O que era busca do
começo no mexicano passa a ser visto como começo da
busca, identificando assim uma urgência, em um contexto
com evidente sentido político, de que nos reconheçamos a nós
mesmos, latino-americanos. Uma leitura atenta de O Começo
da Busca permitirá o entendimento de uma poesia cujo
diálogo aberto com as evidências propiciadas pelos conceitos
de tradição e ruptura soube evitar submissões a nacionalismos,
modismos, limitações escolásticas ou quaisquer outras formas
de provincianismo. Trata-se de um Surrealismo renovado e
diverso, que segue surpreendendo pela vitalidade. Creio que
assim definimos também o perfil do leitor do livro, não?
MS – ¿Cuáles son las características de esa urgencia de
autoreconocimiento como latinoamericanos que tú señalas?
¿Cuáles son los elementos distintivos de un "surrealismo
latinoamericano" teniendo en cuenta que el movimiento
originalmente nace en un contexto geopolítico muy diferente y
que incluso las realidades y los contextos latinoamericanos
dentro del continente son muy distintas según el país de que
se trate?
FM – São aspectos bastante arriscados de serem tratados de
uma maneira generalizante. Um livro como este meu tem que
despertar a atenção para uma exigência mínima, a compreensão
do fato, a partir daí gerando o diálogo que vai enriquecer o
assunto. Recordemos com Francisco Madariaga que o Surrealismo
já estava latente em si mesmo, e bastante identificado com uma
realidade americana. Diz que a expressão dessa realidade
"vinculada a mi país natal siempre estuvo en mí", concluindo:
"El surrealismo me ayudó a encontrar la manera." Madariaga
observa de forma muito lúcida que o Surrealismo na América
Latina tinha o aspecto de uma boda e jamais de um protesto,
referindo-se claramente ao racionalismo exacerbado que a
Europa necessitava questionar.
MS – ¿Cómo vinculas el surrealismo que intenta encontrar en
la América Latina "su manera", con la narrativa
latinoamericana del realismo mágico y lo real maravilloso? ¿No
es posible para el autor latinoamericano -poeta o narrador-
encontrar su manera a través de una propuesta estética como la
del realismo mágico o lo real maravilloso; una propuesta que
nace y se desarrolla en la América Latina y que cuenta con
tantas posibilidades? ¿Por qué buscar en el surrealismo? ¿No
tiene lo real maravilloso justamente esa manera propia de
mostrar que la realidad latinoamericana es diferente a la
europea?
FM – Breton tinha enorme rejeição ao romance e a
justificava dizendo que certo estado do verdadeiro, para ser
alcançado, exigia uma "total depuração do supérfluo". Claro
que essa exigência não cabe unicamente ao romance, havendo aí
um equívoco de Breton. A busca de uma superação do realismo,
no romance latino-americano, partia de uma influência
surrealista e recorria a procedimentos sugeridos pelo
Surrealismo. Se tomarmos a idéia de Aragon de que "o
maravilhoso é a contradição que aparece no real", encontramos
uma certa contradição nesse conceito de um real
maravilhoso. Talvez coubesse avaliar a confluência de
aspectos encontrados no Surrealismo e na teoria de uma raça
cósmica defendida por José Vasconcelos. Teríamos aí uma
leitura mais interessante acerca dos desdobramentos no romance
na América Hispânica. Particularmente me interessa muito mais
a prosa poética que surge inclusive antes do Surrealismo, como
no caso do venezuelano José Antonio Ramos Sucre - autor que
ainda não foi devidamente percebido por historiadores e
críticos. Teria que sondar o alcance dessa prosa poética na
obra de poetas como Luis Cardoza y Aragón, José Lezama Lima e
Ludwig Zeller. Se a raiz encontra-se no Surrealismo, não vejo
por que negá-la. Há um livro de leitura interessante:
Hispanoamérica: mito y surrealismo (ProCultura, Bogotá,
1986), de Carlos Martín, onde avalia o alcance do realismo
mágico. Gostaria de mencionar aqui as palavras iniciais deste
livro: "no es exagerado afirmar que la única vía que conduce
hacia un nuevo humanismo, capaz de restituirle al hombre su
dignidad perdida, es la que mezcla e identifica en sí misma
poesía y vida". Não seria aceitável situar um Pablo Neruda ou
um Gabriel García Márquez como adeptos desse postulado. Então
concluímos que não se trata de um conflito envolvendo Europa,
América Hispânica, romance, poesia. As rejeições sem
fundamento são tão precárias quanto o seguimento cego de uma
ortodoxia qualquer.
MS – Una última pregunta: ¿por qué citas tanto a otros
autores? ¿Por qué no dejas que Floriano Martins diga lo que
tiene para decir por propia cuenta sin apoyarse todo el tiempo
en referencias textuales?
FM – Sempre me pareceu importante saber dar passagem a
outras vozes. Tenho feito isto a todo momento, seja na
condição de editor de revista ou de pesquisador. Em nenhum
momento penso nas citações como exibicionismo ou escudo para
suprir ausência de um pensamento próprio. Permitir essa
variedade de vozes inclusive dá ao leitor uma idéia mais ampla
e, consequentemente, mais sólida a respeito de determinados
assuntos. A rigor, é preciso aceitar que não se está sozinho a
refletir sobre o objeto de uma determinada pesquisa, e
reconhecer antecedentes valiosos. Essas presenças confluentes
são inestimáveis para uma melhor definição de temas e
enfoques. Enfim, é indispensável a prática da honestidade
intelectual, o que nem sempre se observa, no Brasil, no que
diz respeito aos estudos sobre
Surrealismo. |
|
|