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Expediente

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Um esboço de Leonardo da Vinci

 

Floriano Martins

Caixa Postal 52924 Ag. Aldeota
Fortaleza, CE CEP: 60151-970 BRASIL

floriano@secrel.com.br


ENTREVISTAS

1. Floriano Martins traz os poetas hispano-americanos ao Brasil [Depois de oito anos de trabalho, escritor cearense reúne 24 entrevistas em Escritura Conquistada], por José Castello

Um cearense de 42 anos, autodidata de formação, assina aquele que foi, provavelmente, o mais interessante livro de entrevistas lançado no País em 1998. Escritura Conquistada/ Diálogos com Poetas Latino-Americanos, um respeitável volume de 407 páginas, foi publicado em complicada, mas eficaz, co-edição entre a Fundação Biblioteca Nacional, a Universidade de Mogi das Cruzes, de São Paulo, e a editora Letra&Música, de Fortaleza. Traz longos diálogos, densos e bem meditados, do autor, o poeta e crítico literário cearense Floriano Martins, com 24 poetas do continente, entre eles nomes importantes, mas absolutamente desconhecidos entre nós, como o nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, o peruano Javier Sologuren, o chileno Pedro Lastra, o cubano José Kozer e o argentino Leónidas Lamborghini. Há quatro brasileiros na lista de entrevistados: o poeta, tradutor e crítico Ivan Junqueira, que não é preciso apresentar; Sérgio Lima, um raro representante do Surrealismo na poesia brasileira; Sérgio Campos, poeta falecido precocemente em 1994, aos 53 anos, que se definia praticante de uma "arte arcaica"; e o poeta mineiro, radicado em São Paulo, Donizete Galvão.

É curioso, primeiro, que um trabalho de tal qualidade necessite de uma verdadeira operação de guerra editorial para, finalmente, vir à luz. E depois, mais curioso ainda, que seja um crítico e poeta de Fortaleza, em ponto tão distante da fronteira hispânica, quem venha a realizar esse esforço de confronto, mas também conjunção entre as duas Américas.

Floriano Martins é bem um intelectual nordestino. Vive das críticas que escreve para a imprensa local, de projetos gráficos (pois é também projetista gráfico autodidata) e de traduções, fazendo verdadeiras contorções para levar à frente seus projetos literários. É um escritor de luta - e é isso, antes de qualquer outra coisa, o que causa respeito. Recentemente, aliás, chegaram ao mercado seus dois mais recentes trabalhos como tradutor: uma antologia de poemas de Federico García-Lorca e um livro de contos do cubano Cabrera Infante, ambos editados pela Ediouro, do Rio, volumes que também organizou e prefaciou.

Como poeta, Floriano Martins já tem dez livros publicados, o primeiro em 1979. Livros, reconhece, que como costuma ocorrer com a poesia brasileira, caíram no esquecimento quase completo, sobretudo por causa do eterno problema da distribuição. Alma em Chamas (Letra&Música), o mais recente, acaba de chegar às livrarias nordestinas. Floriano Martins circula sempre que pode pelo Rio, onde freqüenta poetas e críticos como Marco Lucchesi, Ivan Junqueira e Antonio Carlos Sechin, e por São Paulo, onde morou entre 1982 e 1987 e deixou amigos e interlocutores assíduos como Claudio Willer e Donizete Galvão. Mas é, por princípio, um grande solitário - ainda mais agora que trabalha em casa e vive apenas para escrever.

E não pára de escrever. No fim do ano passado, publicou pela Fundação Memorial da América Latina um belo ensaio, Escrituras Surrealistas, dedicado ao estudo (bastante desprezado, é bom recordar) do Surrealismo na América Hispânica. Somado ao volume de entrevistas, ao livro de poemas e às duas traduções, foram cinco livros publicados em apenas um semestre. Não satisfeito, Floriano trabalha agora em Fogo nas Cartas, um volume que reúne entrevistas com escritores brasileiros e algumas das resenhas críticas que publicou na imprensa.

Em parceria com o poeta chileno Pedro Lastra, trabalha ainda na organização de uma antologia da obra do poeta chileno, já falecido, Enrique Lihn - a ser publicada simultaneamente no Chile e no Brasil. Dedica-se também a traduzir uma novela do escritor costa-riquenho Alfonso Peña. E faz anotações, já bastante avançadas, para um volume de ensaios sobre os moderrnistas na América Hispânica. "Nesse caso, em vez de entrevistas, pois todos já morreram, eu os apresento por meio de ensaios", explica.

Desde que abandonou um emprego público, há três anos, para dedicar-se integralmente à literatura, Martins parece tomado pela febre de escrever. Mas não vê nada demais em seu ritmo avassalador de trabalho. "São projetos que eu vinha desenvolvendo devagar e agora chegaram à hora de concluir", diz. É hora também de falar sobre o que finalmente está concluindo.

Estado - Como começou sua paixão pela poesia hispano-americana?

Floriano Martins - Isso surgiu pelos idos de 83, 84, ao receber de um amigo na Espanha, de presente, a Poesia Completa de Cesar Vallejo. Logo no prólogo encontrei referências ao chileno Vicente Huidobro e ao uruguaio Julio Herrera y Reissig, poetas que eu desconhecia, ambos da lavra modernista, da virada do século - o Modernismo na América Hispânica equivale, aproximadamente, ao nosso Simbolismo. São poetas que me despertaram grande curiosidade e me estimularam a descobrir as trilhas invisíveis dessa poesia. A partir deles, em um ou dois anos, estabeleci uma vasta rede de correspondência com escritores do continente. Nas primeiras cartas, eu me identificava como um autor brasileiro curioso a respeito da literatura hispânica e me dizia interessado na correspondência. As respostas foram, no geral, muito acolhedoras. Em pouco tempo, eu me correspondia com dezenas, centenas, mesmo, de poetas de todo o continente.

Estado - Em que época começou a fazer as primeiras entrevistas?

Martins - Já entre 1985 e 88, comecei a fazer entrevistas com escritores brasileiros, que publiquei em parte no Suplemento Literário do Minas Gerais e também no Suplemento do Diário do Nordeste, de Fortaleza. Só agora eu as estou reunindo em um livro, Fogo nas Cartas, que acabo de organizar. Esse não é só um livro de entrevistas: é uma seleção dos textos que publiquei na imprensa. Há também resenhas, comentários e artigos críticos.

Estado - Viajou pela América Latina para fazer as entrevistas?

Martins - Todas elas foram feitas por carta. Em alguns casos, houve um vaivém: eu recebia um lote de respostas e remetia em seguida novas perguntas, num diálogo lentíssimo. Com os escritores brasileiros, afora raras exceções como o Claudio Willer e o Roberto Piva, que foram feitas pessoalmente, trabalhei da mesma forma. A técnica que passei a exercitar, e que hoje prefiro, é a da entrevista epistolar. Pode-se pensar que optei por ela só por força das contingências, mas não é só isso. As entrevistas feitas por cartas proporcionaram-me uma profundidade maior e as conversas tornaram-se também textos literários.

Estado - Quando você começou a trabalhar nas entrevistas?

Martins - As entrevistas com os hispano-americanos foram feitas entre 1988 e 1995, portanto ao longo de quase oito anos. Foi preciso ter paciência. Há a demora natural da correspondência internacional. E também houve outros autores que, por uma razão ou outra, acabaram por recusar-se a responder minhas perguntas e perdi longo tempo esperando por isso. O livro só ficou pronto em 1995. Foi entregue à gráfica em julho de 1998 e em agosto estava pronto - uma década depois da primeira entrevista. Foi uma edição pequena: 2 mil exemplares foram entregues à própria Biblioteca Nacional e a tiragem restante, não mais que 700 exemplares, ficou com a editora, que teve de enfrentar as dificuldades de distribuição. Fiz lançamento em Natal, São Paulo, Rio e Brasília, ocasião em que as pessoas puderam comprar o livro. São os exemplares que sobraram dessa leva, não sei quantos, que ainda estão nas livrarias.

Estado - Que critérios usou para a escolha dos entrevistados?

Martins - Todos os entrevistados representam, de alguma maneira, momentos inestimáveis da poesia contemporânea em seus países. Representam muitos gêneros, estilos, escolas. O chileno Enrique Gómez-Correa, ou o venezuelano Juan Calzadilla, ou o colombiano Fernando Charry Lara foram, por exemplo, os fundadores de importantes movimentos literários em seus países. Além disso, há a importância muito grande que alguns deles deram ao ensaísmo e à tradução, como é o caso do peruano Javier Sologuren, ou o do chileno Pedro Lastra, ou o do boliviano Eduardo Mitre. É a multiplicidade que define a existência do poeta em nossa sociedade.

Estado - Esses poetas consagrados confirmaram seu prestígio?

Martins - Tive mais confirmações que desilusões. Tive, sim, algumas frustrações. O chileno Enrique Lihn, por exemplo, às vésperas de nosso encontro, morreu. Não pude entrevistar o peruano Emilio Adolfo Westphalen, que, ao lado de César Moro, outro peruano que já morreu, é um dos mais destacados nomes do movimento surrealista do Peru. Ele queria receber-me, mas está muito velho, com problemas de saúde, e não foi possível.

Estado - Por que estamos tão isolados da poesia da América hispânica?

Martins - Segundo alguns dos entrevistados, o isolamento dá-se por causa da ineficiência das ações diplomáticas de seus países. Outros acham que há um desinteresse mútuo, expresso na frase "nós não nos interessamos por eles porque eles não se interessam por nós", o que, além de não resolver o problema, é um argumento falho. Basta pensar que em alguns países como o México, o Peru e a Venezuela se publicam coleções importantes de autores brasileiros. A Biblioteca Ayacucho, da Venezuela, por exemplo, tem um programa editorial com obras completas de autores da América Latina, entre eles vários brasileiros, como Drummond, José Lins do Rego e Machado de Assis. Além do mais, há o mais inaceitável dos argumentos: o da falta de mercado. A verdade é que não temos nenhum programa editorial para a publicação da poesia hispano-americana. E os poucos poetas que chegam até nós, chegam às vezes de forma bastante estranha. O argentino Enrique Molina, por exemplo, entrou no Brasil por meio do único romance que escreveu, um romance histórico! Ele morreu há dois ou três anos, deixando dez excelentes livros de poesia, mas só conhecemos seu único romance, de menos importância. As editoras parecem, às vezes, trabalhar às cegas.

Estado - Isso, provavelmente, produz uma visão distorcida da poesia hispano-americana contemporânea.

Martins - Sim, há um desconhecimento em relação ao que se passa lá fora e, em conseqüência, há, como eu costumo chamar, um "desprograma" editorial. O nicaragüense Ernesto Cardenal, bastante conhecido no Brasil, é, na verdade, um poeta de menor importância em sua geração. Basta confrontar sua obra com a de Pablo Antonio Cuadra, um de meus entrevistados em Escritura Conquistada, e também com a de Luiz Alberto Cabrales, e se verá a diferença. E, no entanto, enquanto esses dois são absolutamente desconhecidos no Brasil, já temos pelo menos uma antologia de Cardenal em português. O mesmo se dá em relação ao Chile. Enquanto se disseminam as traduções do pior Neruda, desconhecemos poetas como Pablo de Rokha, Rosamel del Valle ou Humberto Díaz-Casanueva, que são da mesma geração de Neruda e muito aclamados pela crítica chilena. Do mesmo modo, modernistas de importância do mexicano López Verlarde, ou do peruano José Maria Eguren, ou do argentino Leopoldo Lugones, continuam desconhecidos no Brasil.

Estado - E quais seriam os motivos de tantos enganos?

Martins - Não consigo encontrar nada que justifique esse isolamento e esses enganos a não ser uma desprezível tendência brasileira de considerar a América Hispânica mais próxima do Terceiro Mundo do que nós. O que é apenas um efeito cascata no âmbito do colonialismo cultural. Nós somos uma nação sem paidea, desfigurada culturamente, e aí não aceitamos que possa haver identidade na cultura peruana, na uruguaia, na mexicana. E cometemos um grave erro. O importante seria que os escritores brasileiros concordassem em discutir abertamente o que se passa conosco.

Estado - Não persistem também zonas de isolamento interno? Apesar de todos os avanços das telecomunicações e da informática, uma cidade como Fortaleza não está ainda culturalmente isolada?

Martins - A verdade é que só temos dois grandes centros editoriais, São Paulo e Rio, e tudo o mais é periferia. E o que se produz aqui só existe se desaguar e ecoar nesses dois centros. É lamentável, mas é uma realidade. No caso cearense, por exemplo, temos dois poetas que se poderia mencionar nacionalmente: Gerardo Mello Mourão e Adriano Espínola. Mas ambos moram no Rio e, além disso, têm suas obras editadas por grandes editoras do Rio ou de São Paulo, que fazem seus livros existirem. A publicação de um livro já não lhe garante a existência. Um livro só existe quando é lido e para isso precisa ser distribuído. No caso do Ceará, temos poetas como um Francisco Carvalho, e no passado tivemos José Albano e Américo Facó, já mortos, que foram em seu tempo nomes de grande importância. Mas eles não tiveram obras reeditadas. Eu mesmo estou cuidando da reedição da obra do Facó, um poeta esquecido que morreu só há 40 e poucos anos.

Estado - Ivan Junqueira diz que os poetas cearenses brigam muito entre si - e aponta, assim, para um isolamento interno também.

Martins - Isso é verdade, mas se dá mais no plano existencial, até porque a inveja é um dos componentes mais característicos do perfil do cearense - e ao revelar isso num artigo na imprensa de Fortaleza, certa vez, eu quase fui apedrejado, mesmo risco que corro agora. A verdade é que no nosso caso a inveja é um componente forte e não diz respeito só aos artistas. Eu não saberia dizer qual é a origem desse sentimento, francamente.

Estado - Se há pouco espaço, é natural que a competição se acirre.

Martins - De fato, de uma maneira geral, os poetas são invejosos. Mas é curioso ver até que ponto essa briga se dá entre bons e maus poetas. Não me vem à memória o caso de nenhum bom poeta que participe desse tipo de atitude, mas posso estar enganado. O fato é que não nascem bons poetas todo dia, mas todo dia há alguém querendo ser poeta e isso cria um ambiente propício para esse tipo de atitude. A poesia que se divulga hoje em raros momentos vai além de superficialidade, de maneirismo retórico, e o que se vê é uma ausência quase absoluta de identidade. Os poetas, hoje, são sempre epígonos de alguma determinada circunstância, escrevem sempre "à maneira de". Boa parte desses poetas mais divulgados é, além disso, refém da imagem. Brinco dizendo que se tirassem o vaso de flor da janela não teriam mais sobre o que escrever.

Estado - O contato pessoal com os poetas que entrevistou não teria sido importante?

Martins - De todos os poetas o único que conheci pessoalmente foi o chileno Rolando Toro. E isso porque ele esteve em Fortaleza e veio à minha casa. Poetas da América Hispânica raramente aparecem no Nordeste. Mas as cartas permitem uma aproximação muito boa e também que se faça muita coisa a partir delas. No ano passado, por meio de uma correspondência intensa com a revista literária Blanco Móvil, do México, fizemos uma edição da revista inteiramente dedicada à literatura brasileira contemporânea, organizada e apresentada por mim.

Estado - Como é o contato entre os poetas nordestinos?

Martins - A grosso modo, os poetas não se comunicam entre si. Mais do que a disputa, há o isolamento. Isso é do temperamento dos poetas? Do meu não é. Não faço parte disso, não entendo, mas os escritores têm dificuldade de ir à imprensa, acham que a imprensa é que deve ir a eles. Depois reclamam que não há espaço para eles... Muitas vezes isso é verdade, mas outras vezes vejo o oposto: o escritor acha que tem de vir alguém atrás dele, a começar pelo próprio colega, o outro escritor. Isso é pela vaidade, pelo orgulho, ainda muito fortes no temperamento do escritor brasileiro.

Estado - Só do brasileiro?

Martins - Nas entrevistas com os hispano-americanos não transparece esse tema do orgulho. Há, no entanto, alguns casos bem parecidos. Os colombianos também são um tanto quanto desunidos. De um modo geral, não vejo esse orgulho e essa vaidade em outros países, não quero dizer que não exista. Vejo, sim, o inverso disso, como é o caso dos poetas peruanos, que são muito unidos.

Estado - Não são as condições adversas, de mercado, que provocam tanta competição?

Martins - Isso pode ser uma boa defesa dos escritores, mas não é justificativa. Com condições editoriais mais favoráveis, num local com uma tradição de publicação de revistas poéticas, etc., podem competir menos. Aqui as revistas ainda são sazonais, sem consistência, sem durabilidade. Logo, há menos espaço para os escritores e os ânimos se acirram. Países pequenos como a República Dominicana ou Porto Rico têm, ao contrário de nós, grande tradição de revistas literárias. O México, nesse sentido, é insuperável. Não há mais espaço para a aventura literária, três amigos juntarem-se para fazer uma revista. Hoje, uma revista é uma empresa, tem de ser feita em outras bases. E, quando há a oportunidade de uma revista se firmar, sempre aparece alguém disposto a invalidar o trabalho.

[in jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, de 06.02.1999]

 

2. Entrevista concedida a Consuelo Tomás

Tu relación con el surrealismo. su presencia en tu vida, en tu estilo, em tus afinidades poéticas, en tu visión general del hecho artístico. El surrealismo como oposición a qué? Como coincidencia de qué?

Só espero que esta tua inquietude no tocante ao Surrealismo não me situe como um poeta surrealista. Mesmo em se tratando de escalas tão abrangentes como romantismo ou surrealismo, não se pode restringir a obra de um poeta a uma condição em isolado. A coerência estética de minha poesia deve-se menos ao Surrealismo do que à minha própria experiência de vida. Mas tenho que comentar a este respeito. A presença do Surrealismo no Brasil sempre foi distorcida. Por um lado se buscava atender a um programa de cunho nacionalista. Por outro, nunca se configurou um quadro surrealista que alcançasse coesão suficiente para se estabelecer como tal. Temos grandes artistas que se encontram vinculados a um espírito surrealista, sobretudo no âmbito plástico (Vicente do Rego Monteiro, Ismael Nery, Cícero Dias, Flávio de Carvalho). Tenho sempre pensado na grande dificuldade que enfrentou o Surrealismo de se afirmar na América Latina. Pensemos em Orígenes (Cuba), Contemporáneos (México), Los vanguardistas (Nicarágua), e posteriormente Mito (Colombia). Claro que encontraremos afinidades, ao mesmo tempo em que sabemos que eles viviam ali uma necessidade tão grande de firmação de uma cultura que não poderiam se deixar prender por um rótulo externo. Ao contrário, tivemos Gesta bárbara (Bolívia) ou Mandrágora (Chile). Mas me pergunto se seria "ao contrário". Me pedes para explicar com brevidade uma das questões mais complexas com que tenho me deparado. De qualquer maneira, para que as primeiras frases não fiquem perdidas, menciono que uma coisa que sempre me indignou foi a falta de caráter dos artistas brasileiros. Estão sempre na sombra, esperando o melhor momento para participar de alguma circunstância. Como havia nitidamente uma distorção em relação à leitura do Surrealismo no Brasil, me vinculei a um grupo surrealista, a partir daí chamando a atenção para os laços de nossa cultura com o Surrealismo. Sigo firme nisto, mas lembro que minha poesia não corresponde unicamente àquele universo estético geralmente associado ao Surrealismo.

El sentido de la poesía. Primero, para ti. paar tu vida, para tus definiciones, odio y amores. Para enfrentar el hecho de vivir. Segundo, cómo la ves en el momento histórico que transcurre. Esta condenada? Sirve para algo? Tiene posibilidades de sobrevivir como facto artístico?

A que poderia estar condenada a poesia? E para que ela serviria? Quanto a sobreviver como fato artístico, o homem tem sobrevivido como fato humano? Creio que há um erro de visão em relação a esses assuntos. A poesia não me serve de nada. Não posso olhar para mim no espelho e indagar: de que me serves, oh imagem minha? Posso, sim, dialogar comigo e buscar uma melhor compreensão acerca de minha existência. Em minha maneira de pensar e de agir. Isto significa um plano ético e outro estético. Não é o mesmo que se dá com a poesia? então aí está tua resposta. A poesia é o que sou, em fundo e forma.

Tu trabajo como promotor, como revelador, como abrecaminos, para la literatura hispanoamericana en Brasil. Por qué la literatura hispanoamericana? Desde cuando esta intuición, esta voluntad de ser un punto focal?

Não se trata de intuição, mas antes de indignação, a partir do momento em que se descobre que o Brasil é um país inteiramente cercado por uma cultura distinta da sua e que prefere atravessar toda essa imensa região e ir se relacionar com a cultura européia e estadunidense. Não há como não se indignar diante dessa constatação. Por razões poeticamente indignas acatamos fatias da obra de Vallejo, Huidobro, Neruda, Girondo, Borges. E nunca dialogamos com a poesia hispano-americana. Jamais nos sentamos para dialogar com os desdobramentos poéticos existentes nos 19 países hispano-americanos que nos cercam. E não me refiro somente à poesia. Há um imenso prejuízo cultural, social e econômico em função desse dar as costas à América Hispânica. Todos os presidentes brasileiros juntos não encontrarão justificativa aceitável para tanto. Nem toda a oposição a seus governos. Traduzir a poesia, entrevistar poetas, editar textos sobre música, teatro, cinema, editar livros envolvendo artistas plásticos e escritores, tudo isto tem uma grande importância. Mas são ações isoladas. O que tenho feito é uma ação isolada. O único crédito que mereço é o de minha teimosia. É preciso fundar um diálogo sem demagogia e sem as distorções intencionais que permeiam a entrada no Brasil dos autores inicialmente citados.

Qué valor le otorgas a las nuevas tecnologías para tu trabajo de "juntar lo disperso"? sobre todo en el caso de un país tan grande como Brasil, o una región tan diversa como América Hispana?

A tecnologia não possui uma dimensão estética, como muitos pobres artistas acreditam. A invenção da lâmpada elétrica não tornou mais luminosas as idéias poéticas, nem mesmo as ações humanas. O "disperso" pode ser juntado em uma lâmina de laboratório ou em metros quadrados de um pavilhão de bienal. Tudo não passa de um inventário de recursos que vamos tendo à mão para promover alguma perspectiva de reconciliação do homem consigo mesmo. E esses mesmos recursos sempre podem encontrar um fim diverso. No caso da Internet, por exemplo, o Brasil é um país com acentuado índice de acesso. No entanto, permeia ainda a utilização superficial, sem perspectiva melhor dimensionada. Há cinco meses que edito uma revista virtual, juntamente com Claudio Willer, e temos aprendido muito no que diz respeito a nossas possibilidades de produção e difusão cultural. Contudo, a Internet ainda não deixou de ser um mecanismo de escoamento da sucataria mercantilista.

Algo de la poesía en el Brasil hoy. En el contexto de los 500 años de fundación de Brasil, qué nos conviene mirar más para entender esa historia a los de fuera, leer los textos de historia, o leer los textos poéticos? Cómo encuentra sus puntos comunes la poesía de un país tan grande?

Se pegarmos os mexicanos José Juan Tablada e Octavio Paz veremos que a identificação de ambos com uma poética oriental é distinta. Se Tablada busca um depuramento formal, Paz amplia essa relação e alcança uma dimensão outra, ao mesclar experiência formal e cultura azteca, em seu Piedras sueltas. Eis a antropofagia que defendia Oswald de Andrade, cuja obra jamais alcançou dimensão estética consistente. Essa aproximação entre história e poesia não define a qualidade de uma obra. Não se trata de encontrar melhor tribuna em textos históricos ou poéticos, como sugeres. A história da humanidade possui sua parcela de distorções. Em alguns casos, a incidência é maior ou menor. Sabe-se, no caso do Brasil, da chegada primeira ao nosso território do navegador espanhol Vicente Pinzón, e não do português Cabral, e que o Tratado de Tordesilhas dava a primazia do registro de terras à coroa portuguesa. 500 anos depois, o que se discute a respeito é se Pinzón teria chegado primeiro no Ceará ou em Pernambuco. Há um aspecto maior que não se discute, entende? A dizimação da raça indígena nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo. Nos dois casos, o processo foi brutal e criminoso. As reservas indígenas estadunidenses perpetuaram um processo de aculturação. No Brasil, os sobreviventes foram deixados à míngua, entregues às ações avassaladoras de fazendeiros. A criação de um órgão institucional de defesa do patrimônio indígena é patética e ineficaz. No entanto, não se discute essa questão seriamente. Às vésperas de uma que outra data o índio vira manchete de jornal. No dia seguinte desaparece uma vez mais de circulação. O país todo parece funcionar em função de datas comemorativas. Não se trata de saudosismo em relação ao índio, mas sim de uma ausência total de perspectiva histórica. Isto é patente em meu país, e falo disto com grande pesar. Os grandes nomes de nossa cultura não são abordados e preservados colmo deveriam. Tom Jobim, por exemplo, dedicou-se a registrar todas as suas obras em vida, temendo que isto jamais fosse feito após sua morte. O que aconteceu com nossa poesia, ao longo dos anos, não difere muito do comportamento nacional como um todo. Grandes vozes do passado seguem ainda hoje sem a devida difusão e correspondente leitura crítica. Tua pergunta, no entanto, me convida a um terreno delicado, o da relação entre criação artística e história, o que requer explanação mais extensa. Somos talvez a maior nação mestiça em todo o planeta e nossos intelectuais, em sua grande maioria, sempre tiveram desprezo por essa mestiçagem, reduzindo o país a uma instância culturalmente oriunda da Europa católica. De maneira que nosso ponto comum se chama a mestiçagem, e a antropofagia dos modernistas teria aí uma grande solidez se acaso não tivesse sido pervertida em sua raiz.

[Talingo, La Prensa, Panamá, maio de 2000]

 

3. Entrevista con Floriano Martins, por Carmen Virginia Carrillo

- ¿Qué es la poesía para Floriano Martins?

Dizia o grego Embeiríkos que "a poesia é o desenvolvimento de sapatos engraxados". No mesmo poema dizia ainda: "esta excursão não tem fim". De alguma maneria, toda definição limita. A poesia se deixa encharcar de toda a matéria humana. O homem a anuncia como o canto da gravidade, da vivência. Mesmo assim, como digo ao final de um poema, "haverá sempre algo ali impossível de se seguir". Portanto, melhor será não defini-la, mas antes tomar-lhe o curso, vendo o que se aprende com ela.

- ¿Cuáles son los autores que más han influido en su obra?

Não compartilho muito essa idéia algo imprecisa das influências que, no caso de um escritor, sempre remete a um plano literário. Compreendo que um autor tem por influência maior a própria experiência de vida. Em meu caso, acrescentaria um diálogo que quase sempre estabeleço com algum livro quando estou a escrever. Posso assim pensar em livros como The White Goddess, de Robert Graves, ou Le coupable, de Georges Bataille, ou Diario de muerte, de Enrique Lihn, ou O livro egípcio dos mortos, ou El blasfemo coronado, de Humberto Díaz-Casanueva, que foram leituras que me acompanharam durante a escritura de alguns de meus livros. Mas juntamente com essas leituras, posso também referir-me ao Paris Concert, de Keith Jarrett, ou aos carvões de Goya, ou ao Joe's garage, de Frank Zappa e a muitas canções de Tom Waits etc., mas com sinceridade não vejo ali o que se poderia chamar de influência. Agora, como somos a soma de tudo o que fomos e seremos, é natural que todos os poetas estejam em mim, sem que me caiba destacar algum. Em todo caso, interessa o mergulho na existência humana, no grande tumulto originário, alheio a todo tipo de identificações convencionais, literárias ou não.

- ¿Qué relación encuentra usted entre la filosofía y la poesía?

Não creio em nenhuma dessas duas forças desgarradas de uma imanência que lhes é peculiar, ou seja, a relação intrínseca que ambas devem ter com o homem e a realidade. Qualquer tentativa de torná-las distantes dessa imanência, por exemplo, a redução a mera técnica (mística ou poética), não consegue senão afastar o próprio homem de si mesmo. Mas tenhamos em conta que poesia é criação, invenção, ao passo que filosofia é reflexão sobre o criado ou seu desejo.

- El tiempo y la memoria son dos temas recurrentes en su obra. Cree usted que el tiempo de la escritura es un tiempo mágico que eterniza el asombro del poeta ante la vida, sus emociones, vivencias y anhelos?

Não há propriamente um tempo mágico. O que se poderia chamar de mágica é nossa relação com o tempo. E esta magia tem que estar na carne daquilo que escrevemos, pois é afinal o que estamos vivendo. Tal experiência pulsante, diária, não se separa de uma memória, seja do passado ou do futuro. A escritura de um poema reflete a vida de seu criador, consequentemente comporta tanto o sublime quanto o revés, de maneira que o assombro do poeta estará ligado mais à capacidade de percepção da realidade.

- El crítico Rolando Toro ha comentado que "su proyecto poético es subversivo, ajeno a los valores convencionales", en qué medida su obra se revela contra la tradición poética del Brasil?

Há um componente metapoético em minha poesia que a aproxima um pouco de autores como Jorge de Lima ou Dante Milano. Trata-se de uma reflexão constante sobre o próprio pensamento poético, em meu caso uma crítica à relação entre poeta e sociedade. Por outro lado, participam de minha poética componentes da tragédia (personagens, diálogo, trama, coro), que lhe dão uma peculiaridade dramática que não se observa na tradição lírica brasileira. A subversão a que se refere Rolando Toro diz respeito a um vício formalista, beletrista, parnasiano, que caracteriza a poesia brasileira, somente rompido em raros momentos em toda a história.

- Usted se considera un poeta surrealista, cuán importante resulta la analogía en su proceso creador?

Devo aclarar essa questão. Tenho com o Surrealismo uma relação entranhável, sobretudo se pensarmos em alguns poetas hispano-americanos, a exemplo de Enrique Molina ou Ludwig Zeller, que sempre me interessaram muito. Agora, não me considero um surrealista, e sim alguém que chamou para si a defesa do Surrealismo, levando em conta que se tinha dele uma idéia bastante distorcida em meu país. Além desse aspecto, não caibo nas classificações habituais.

Já no tocante à analogia, é naturalmente a chave de todos os conflitos que encarno em meu processo criador, as relações entre visível e invisível, possível e impossível, mundo criado e mundo por criar. A analogia como uma transgressão do facilmente perceptível, do que se mostra apenas em aparência. Como destacou Rolando Toro, vemos em minha poética uma "linguagem que para viver deve consumir seu corpo". Em tal consumição reflete sobre as formas que encarna, averiguando inferno e paraíso, Eros e Tanatos, todos os pares que conformam a grande aventura humana, reconhecendo as semelhanças ocultas, restituindo o mistério da imagem, uma mística profunda que transgride todas as leis de um pensamento lógico.

- De sus primeros libros de poemas a su última producción ha habido algún cambio estilístico fundamental?

Naturalmente. Por muito tempo confesso não haver encontrado uma voz própria. Tanto em forma como em conteúdo, vivia um pouco à sombra de algo já escrito. Em um primeiro momento, escrevi muito pautado pelo discurso, despreocupado com a forma. Logo me deixei influenciar bastante pela Beat Generation e o universo dos comics, mesclando essas duas leituras em painéis que buscavam já alguma aproximação com o que escrevo hoje. Mas somente a princípios dos 90 é que defini uma poética que fosse a grande soma de todas as vivências e percepções, uma escritura polissêmica cuja complexidade estrutural não fosse apenas uma articulação retórica, mas sim uma estratégia essencial à própria resolução dos desafios impostos, definida por um sentido natural de abrangência de códigos, quase uma volúpia da escrita.

- ¿Cuándo y por qué surge su interés por la literatura hispanoamericana?

Vem originalmente da curiosidade que logo vai se mesclando com uma indignação. Ao ler o prólogo de uma edição da Obra Completa de Vallejo vi ali menção a dois ou três outros poetas que eu desconhecia. Ao procurar pistas me deparei com vários, o que me foi levando a averiguações cada vez mais intensas, até que se descortinasse diante de meus olhos um mundo completamente outro, fascinante em sua raiz e desdobramentos. Desde então persigo um encontro possível entre essas múltiplas poéticas que constituem a América Latina.

- Cómo se ve en Brasil la poesía hispanoamericana actual?

Sigo lamentando que não se veja no Brasil a poesia hispano-americana, a menos que importe falar de iniciativas isoladas ou de algum exercício tradutório entre jovens poetas. Em um plano editorial, não se leva em conta, em meu país, a existência de uma poesia hispano-americana. Raramente surge alguma edição, desprovida de qualquer caráter programático que nos faça acreditar na existência de um diálogo entre duas culturas. Reflexo disso é que criamos um entendimento desnorteado do que seja a poesia na América Hispânica. Caso recente é o de fascínio de alguns poetas brasileiros pelo que se chama de neo-barroco (ou neobarroso, como preferem), o que se justifica apenas em função de ignorância nossa em torno dos grandes postulados poéticos de gerações anteriores.

Como o Brasil encarna uma vez mais o mito beletrista, com todos os vícios formalistas que o caracterizam (em qual outra tradição poética seria possível o Concretismo?), o que percebemos da atual poesia hispano-americana é justamente aqueles acentos que facilmente idenficamos como um retrocesso em uma densa e iluminada tradição.

[Caracas, setembro de 2000]

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