Surrealismo
& Brasil
Floriano
Martins
Em
agosto de 2001, escreveu o jornalista Sérgio Augusto que
“dois dos mais notórios apóstolos do surrealismo no Brasil,
Ismael Nery e Murilo Mendes, não só acreditavam em Deus como
iam à missa aos domingos – onde vez por outra comungavam ao
lado de um e outro comunista, pois não há limites para o
absurdo neste país irremediavelmente surreal”. Lembrava ainda
Sérgio Augusto que, “de qualquer modo, nosso maior pensador
católico, Alceu Amoroso Lima, nem esperou a tinta do primeiro
manifesto de Breton secar direito para excomungá-lo”.
Temos
aqui uma ambientação da complexidade que seria a presença do
Surrealismo em terras brasileiras. Não são raros os momentos
em que Surrealismo e catolicismo protagonizaram alguma polêmica
em nossa cultura. Quando em 1934 Flávio de Carvalho teve tanto
uma exposição quanto a montagem de uma peça interditadas pela
polícia, declarou, como recorda Rui Moreira Leite, que “católicos
tradicionalistas teriam sido os responsáveis pela intervenção
da Delegacia de Costumes, tanto no Teatro da Experiência quanto
na exposição à rua Barão de Itapetininga”.
E o crítico Carlos Lima chega a afirmar que “em Ismael Nery,
Jorge de Lima e Murilo Mendes vemos a influência surrealista se
dissolver em um catolicismo radical, que pretendia restaurar a
poesia em Cristo”, concluindo enfaticamente que “todos três
são grandes artistas, mas não têm nada a ver com o
surrealismo!”.
Não
resta dúvida quanto ao fato de que vivemos em um país católico,
mesmo considerando as oscilações desse catolicismo nos dias de
hoje. Contudo, isto não quer dizer que não tenha se
verificado, entre nós, a presença do Surrealismo. Significa
apenas que seus obstáculos foram de natureza distinta daqueles
encontrados em outros países, o que resulta em uma aclimatação
igualmente distinta. Basta pensar no quanto o Surrealismo era
repudiado por Alceu Amoroso Lima e na conseqüente maneira como
esse repúdio interferiu na formação de nossa cultura.
Acrescente-se a isto que o Modernismo no Brasil era pautado por
duas ações estratégicas peculiares, o seqüestro da realidade
cultural em Mário de Andrade e a antropofagia de Oswald de
Andrade. Ambos ficaram a dever em honestidade intelectual no
sentido de fazer referências às fontes onde foram tecer suas
bandeiras essenciais. A escrava que não era Isaura, de Mário
de Andrade, traça um percurso de identificações com as
preocupações essenciais do Surrealismo e, no entanto, como bem
recorda Carlos Lima, não há ali “nenhuma palavra sobre
Breton que, no mesmo ano em Paris, publicava o primeiro
manifesto do surrealismo e fazia de Rimbaud o ponto de partida
de uma nova poética que juntava poesia e utopia”. E logo
complementa Carlos Lima que “ele, Mário, tinha chegado às
mesmas descobertas, àquilo que ele chamou de ‘polifonia poética’”.
Breton
e Mário de Andrade tinham pensamentos opostos acerca da
analogia, por exemplo. O que em um era pleno exercício de
liberdade, no outro não passava de mera substituição da
"coisa vista pela imagem evocada", constituindo-se
assim, a analogia, segundo Mário, em "um dos maiores
perigos da poesia modernista". Ele, Mário, manifestou-se
acerca da beleza apenas compreendendo a distinção existente
entre o "belo artístico" e a "beleza da
natureza", jamais percebendo a condição convulsiva que
lhe indicara Breton. Havia, no geral, um certo acanhamento em
nossa ruptura, em nossa transgressão.
Evidente
que não se encontra aí o impedimento único para um diálogo
mais franco entre surrealismo e a elite cultural no Brasil.
Vencida uma primeira etapa, os anos iniciais do Modernismo,
vemos aos poucos se desvanecerem aqueles princípios
cosmopolitas e internacionalistas que de alguma maneira
norteavam a aventura modernista. A rigor o ponto central desse
desvanecimento seria a implantação de uma ideologia
nacionalista. Como recorda Wilson Martins, “a consciência
nacionalista foi a atmosfera em que se envolviam todos os espíritos,
a partir de 1916: é para o nacionalismo que enveredará o
Modernismo logo depois da Semana de Arte Moderna, passado o seu
instante cosmopolita”.
Do nacionalismo exacerbado, por exemplo, do grupo Anta, ao
regionalismo, que era um retorno à literatura realista, não
houve propriamente um salto, mas antes uma profunda identificação.
O que poderia ser visto como uma trajetória estética, fica
melhor entendido quando atentamos para as palavras de Valentin
Facioli, ao situar que “a intersecção da política
nacionalista do Estado, com a força difusa, mas presente em
quase todos os níveis da vida cultural letrada, do positivismo,
mais o peso extraordinário da Igreja Católica conservadora e
mais a simpatia do Partido Comunista, operou uma mudança
significativa de rumos na arte moderna no Brasil a partir de
1930”.
Considerando todos estes aspectos, cabe ainda acrescentar que os
vínculos estéticos estabelecidos pelo Modernismo no Brasil
foram muito mais fortes em relação ao Futurismo e ao Cubismo,
do que propriamente em relação ao Surrealismo. Este foi
penetrando em nossa cultura de forma indireta, tendo como pontos
de costura tanto as afirmações de Flávio de Carvalho, Jorge
de Lima, Aníbal Machado, como as simpatias de Pagu e Murilo
Mendes e posteriormente a participação mais entranhável de
Maria Martins. Talvez se nos concentrássemos mais nesses nomes
encontraríamos um melhor ponto de defesa não exatamente de uma
influência do Surrealismo em nossa cultura, mas antes – e
este é um aspecto mais substantivo, me parece – de um diálogo
entre partes, pois, como salienta Valentin Facioli, “o surrealismo nos
enriqueceu e nós o enriquecemos”. De outra maneira estaríamos
aqui apenas tratando de um predomínio, o que não interessa nem
ao Surrealismo nem à cultura em seu aspecto geral.
De
qualquer forma, é preciso ter em conta a observação de Belén
Castro Morales, no sentido de que, se “o surrealismo
contribuiu para o encontro do artista americano com os estratos
profundos dele próprio, este viu muitas vezes que não
necessitava filiar-se a um movimento forâneo quando podia
desenvolver com amplitude e complexidade uma leitura pessoal de
seu entorno”.
É bastante razoável o que nos diz a ensaísta espanhola,
sobretudo se pensarmos em casos como os do chileno Humberto Díaz-Casanueva
(1907-1992), do venezuelano Vicente Gerbasi (1913-1992) ou do
colombiano Jorge Gaitán Duran (1924-1962), que souberam
reconhecer acentuada influência do Surrealismo em sua poética
sem no entanto vincularem-se formalmente ao mesmo. Naturalmente
esta é uma posição destoante de uma recusa preconceituosa ao
Surrealismo ou, o que é ainda pior, o comportamento discricionário
amparado em chamar para si uma ventura que não lhe é de todo
própria.
Caso
distinto de Mário de Andrade foi o de Oswald. Este propiciou inúmeras
polêmicas, quase que por compulsão. A busca das "fontes
puras do primitivismo", ele entendia como possibilidade única
de despir a arte de "convencionalismos e sofisticações".
Tento entender a idéia de convencional, mas penso a que tipo de
sofisticação nos teria levado o Futurismo tão cultuado por
ele. Claro que agia provocativamente ao dizer dos poetas que o
sucederam: "são todos superiores a mim". E a própria
escritura paródica que perseguia na poesia implicava ao menos
em uma busca de sofisticação estilística. Curioso é observar
que, nos anos 50, despertavam a atenção de Oswald novos poetas
como Thiago de Mello e Geir Campos – o mesmo Oswald que
considerava Ledo Ivo "um caso típico do soldado do Exército
do Pará".
Talvez
caiba dizer que a grande obra do Futurismo são os manifestos.
Marcel Duchamp foi quem mencionou que o Futurismo era "um
impressionismo do mundo mecânico", ou seja, aquela coisa
da retina funcionar como "uma inesgotável fonte de
prazer" que, no dizer de Max Ernst, caracterizava o
Impressionismo, vale para o Futurismo, desde que pensemos que os
futuristas tinham olhos apenas para um mundo mecânico
("Escutar os motores e reproduzir seus discursos").
Agora, também Mário de Andrade foi um notável autor de
manifestos. Indagaríamos então: tanto em um caso como no
outro, quanto se adotou pra valer, em matéria de fazer
coincidir com a ação o discurso dos manifestos?
A
propósito de provocações, menciono aqui uma afirmação de
Claudio Willer de que “hoje, deve-se deslocar o foco da militância
por vezes episódica para uma configuração de obras pautadas
pela riqueza imagética e pelo exercício da liberdade de
imaginação, cuja recepção é prejudicada pelo filtro de uma
espécie de cartesianismo poético brasileiro”.
Dei propositalmente um salto no tempo, apenas para
compreendermos que, se considerados os obstáculos referidos ao
início, a militância não foi tão episódica. Havia um
paralelismo de ações – sobretudo no que diz respeito às
artes plásticas e à ambientação da psicanálise e sua relação
com a criação artística envolvendo crianças e loucos –,
que não estampava uma cumplicidade explícita com o
Surrealismo, mas que era claramente uma decorrência do mesmo.
Exemplo disto é possível encontrar na publicação de um livro
como A expressão artística dos alienados, em 1929, de
Osório César, ou ainda no vínculo, distinto entre si, que
tiveram com essa nova atividade artistas como Tarsila do Amaral
e Lasar Segall.
Há
inúmeros aspectos a serem verificados quando se está a
desenhar um mapa das atividades afins ao surrealismo na cultura
brasileira. Valentin Facioli salienta que “o surrealismo foi
percebido logo em 1924 por um grupo que se reuniu no Rio de
Janeiro em torno da revista Estética, que publicou
apenas três números e desapareceu em 1925. Os dois jovens
editores, Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque [de
Hollanda], defenderam o surrealismo e polemizaram contra seus
detratores, que já apareceram quase instantaneamente, entre
eles o crítico católico Tristão de Athayde”.
Também Sérgio Lima faz menção “à aparição polêmica da
revista Estética em 1924 e a publicação na mesma do
manifesto pelos ‘direitos do sonho’, de Sérgio Buarque de
Hollanda”. Trata-se de uma afirmação quando menos curiosa,
pois revendo os três números de Estética não é possível
localizar o citado manifesto. Graça Aranha faz menção ao fato
de que “não há cultura coletiva no Brasil”, e evoca o
empenho dos editores da revista em “modernizar, nacionalizar,
universalizar o espírito brasileiro”. Neste mesmo número
inaugural, Sérgio Buarque aborda a falta de tradições nas
jovens culturas americanas, logo concluindo que “resta ao
homem americano, e ao brasileiro em particular, a imaginação
estética criada no ‘inconsciente mítico’, onde ainda não
foi de todo eliminado o ‘terror cósmico’”.
Não me parece que em nenhum dos casos se possa falar de uma
defesa explícita do Surrealismo, sobretudo considerando que
Prudente de Moraes, neto, no terceiro e último número que
publicou a revista, refere-se à escritura automática como uma
moda passageira.
Este
tipo de acréscimo a uma situação que não coincide com a
realidade dos fatos é tão danoso à construção de uma
historiografia quanto seu revés, a não-menção
a aspectos reais, de que pode ser exemplo a leitura quase sempre
parcial que é feita da poética de Jorge de Lima, sem
considerar corretamente sua identificação com o Surrealismo,
manifesta não somente em sua poesia mas também na série de collages
que resultou na publicação de A pintura em pânico, em
1943. No Brasil preferiu-se o termo foto-montagem ao invés de collages,
e Mário de Andrade apressou-se em dizer, em 1939, que esta técnica
“não deve ser apenas uma variedade de poesia sobre-realista,
que, por princípio mesmo, não se sujeita a nenhum controle estético”.
O próprio Murilo Mendes, companheiro de Jorge de Lima nesta e
em outras identificações, ao prologar este livro afirma que
“o movimento surrealista organizou e sistematizou certas tendências
esparsas no ar desde o começo do mundo”,
mas em momento algum afirma um vínculo direto entre Jorge de
Lima e Surrealismo. Isto nos leva diretamente ao “surrealismo
à moda brasileira”, maneira encontrada por Murilo Mendes para
definir sua identificação com o movimento. No entendimento de
Valentin Facioli, “nas condições brasileiras da época, a
liberdade de escolha possível e plausível limitava-se, pois,
à escolha de técnicas artísticas e seus efeitos, como opção
particularizante e parcial de estilo artístico, o que era
melhor que nada e interferia no modo de produção de sentido,
mas bem pouco diante das possibilidades abertas pelo surrealismo
como intervenção nas condições sociais de produção,
circulação e recepção da obra artística erudita”.
Ora, este “melhor que nada” aos poucos vai se deixando
acentuar como traço essencial do perfil sócio-cultural
brasileiro, cujos danos verificamos ainda hoje na quase absoluta
falta de compromisso diante de toda ou qualquer situação.
Haveria então uma curiosa sintonia entre “surrealismo à moda
brasileira” e o jeitinho brasileiro.
Criemos
aqui um caso Jorge de Lima, apenas para esclarecer melhor
a questão. Sempre se tratou de evocar, nele, a aproximação ao
cristianismo como razão para negar-lhe identificação com o
Surrealismo. Diz Sérgio Lima, ao tratar deste tema, que “a
controversa conversão religiosa desses dois poetas –
Murilo e Jorge de Lima –, a partir de 1934, não exclui tudo o
que escreveram e produziram nos anos anteriores”,
observação que carece de aprofundamento, ainda mais se
considerada a reflexão levada a termo por Claudio Willer, a
seguir:
“Em
Murilo Mendes, o rótulo de ‘poeta católico’ reduz o
alcance de uma lírica plural, na qual se encontra o que houve
de inovador em seu tempo, com uma linha evolutiva, da poesia
em Cristo de Tempo e eternidade, escrita como se
fosse para substituir a oração, até o ganho em síntese e
vigor de As metamorfoses, de 1941. Jorge de Lima,
inequivocamente um poeta de etapas na criação, apresenta
reflexões sobre a poesia no Livro de sonetos afins a idéias
surrealistas: ‘Não procureis qualquer nexo naquilo / que os
poetas pronunciam acordados, / pois eles vivem no âmbito
intranqüilo / em que se agitam seres ignorados’. No
empreendimento máximo da poesia hermética e cósmica, Invenção
de Orfeu, reitera a idéia do poeta sonâmbulo, que desce a
um mundo originário, arquetípico e pré-verbal: ‘Pra unidade
deste poema, / ele vai durante a febre’. Seus transes,
despertando no meio da noite para escrever, foram fatos biográficos
(quem me falou dessas ocorrências foi Lúcio Cardoso, fonte
autorizada pela amizade de ambos). Demonstram fidelidade à
inspiração, realizando a frase de Octavio Paz: ‘O poeta não
se serve das palavras. É o seu servidor.’ Tendo abraçado o
catolicismo, foi mais fundo, até a religiosidade primordial,
pagã, indissociável do seu apelo ao telúrico.”
Diante
da leitura de Willer não é possível concordar com Sérgio
Lima, bastando pensar que são posteriores a 1934, tanto Invenção
de Orfeu quanto sobretudo A pintura em pânico, o
volume das fotomontagens.
É de se lamentar que este livro tenha caído em completo
esquecimento. Em 1987 surge uma edição das collages de
Jorge de Lima encontradas no acervo de Mário de Andrade, em
primorosa organização de Ana Maria Paulino. Em estudo que lhe
dedica, ao final do volume, Paulino destaca, em Jorge de Lima, a
“procura de novos meios para transmitir sua sensibilidade e
penetrar as regiões misteriosas do inconsciente, refletindo nas
associações livres de sua linguagem aparentemente ilógica, um
mundo sombroso representado por enigmas, símbolos e presságios”.
Também nesta edição se reproduz o prólogo de Murilo Mendes
à publicação original de A pintura em pânico, onde,
ao evocar o princípio defendido por Rimbaud de desarticulação
dos elementos, destaca que essa desarticulação resulta, em último
caso, em articulação, sugerindo que “seria instrutivo
pesquisar o modo pelo qual este livro de Jorge de Lima se insere
na sua obra”, ou seja, “estabelecer a relação do mesmo com
seus poemas, romances, ensaios e tentativas de quadros”. Desta
maneira evitaríamos tantas observações preconceituosas e
infundadas em relação à poética de Jorge de Lima e, por
conseqüência, a má interpretação, por vezes intencional, da
presença do Surrealismo no Brasil. Aqui nos referimos apenas a
dois casos que ilustram a complexidade do tema. Diversas outras
instâncias deverão ser cotejadas, em oportunidade mais ampla,
evocando demasias tanto de ordem afirmativa quanto negativa.
Evidente
que a ausência de filiação formal não autoriza a crítica a
negar identificação com o Surrealismo seja em Murilo Mendes ou
em Jorge de Lima, o mesmo valendo para inúmeros outros poetas e
artistas brasileiros que poderiam ser evocados no momento de uma
reavaliação da presença do Surrealismo no Brasil. Há toda
uma história subterrânea a ser desentranhada e ainda estamos
por fazê-lo. Ao referir-se a “período imediatamente
associado ao modernismo”, Claudio Willer recorda “o modo
como uma legítima vanguarda, intelectual e política,
articulou-se, através de [Benjamin] Péret, com o surrealismo,
incluindo Patrícia Galvão, a Pagu, Flávio de Carvalho e Mário
Pedrosa. Pagu e Flávio chegaram a ser hóspedes de Péret e sua
esposa brasileira, Elsie Houston, em Paris, em 1934-35.”
Menos econômico do que Willer na menção a nomes, Sérgio Lima
considera pertinente referir-se a Fernando Mendes de Almeida,
Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Lívio Xavier, Osório César,
Jamil Almansur Haddad, Raguna Cabral, Wagner Castro, Eros Volúsia,
e destaca ainda a presença de Raul Bopp e Tarsila do Amaral e a
Revista de Antropofagia, afirmando que “a turma da segunda
dentição antropofágica acolheu Péret e representou a única
vertente que se opôs aos nacionalismos despregados pelas
movimentações vanguardistas do momento no modernismo
brasileiro”.
Nos
anos 60, dentro do que Sérgio Lima considera um segundo período
de identificação do Surrealismo na cultura brasileira, temos a
formação de um grupo (1965) e a realização de uma exposição
internacional (1967). Ao remeter a este momento, escreve o poeta
Contador Borges que “tanto a poesia de [Roberto] Piva quanto a
de [Claudio] Willer são poéticas do apocalipse, testemunhas
desse momento universal da poesia revolta vivido pela
modernidade”, logo lembrando ser possível citar “outros
poetas brasileiros que também criaram suas obras sob este
impacto, como Sérgio Lima, que faz do poema uma topografia
panteísta do corpo erotizado, e Rodrigo de Haro, de fatura mais
lírica e contida, em que os versos parecem escandidos por uma
navalha oculta, que repentinamente surge nas mãos do poeta”.
A exemplo do que houve no primeiro período, também aqui
a crítica é exígua e por vezes intencionalmente leviana. Como
observei em O Começo da Busca, “críticos como José
Paulo Paes e Gilberto Mendonça Teles foram falhos em uma brevíssima
abordagem deste não-capítulo
de nossa historiografia literária. Mendonça Teles, em
entrevista que lhe fiz em 1994, declarou não haver-se reportado
à revista A Phala, por exemplo, no livro Vanguarda
européia e modernismo brasileiro, por desconhecimento. Ao
publicar A escrituração
da escrita (1996) observa o Surrealismo pela mesma ótica de
José Paulo Paes, validando tão-somente o caráter programático,
reduzindo-o à categoria dos ismos, sem perceber a fundamental importância dos desdobramentos em
diversas culturas, assim como ‘seu inegável vetor revolucionário,
inclusive de natureza extra-literária’, como salienta o próprio
Sérgio Lima.”
Limitam-se a tratar o Surrealismo como a escola que nunca foi,
situando a aparição tardia do mesmo entre nós.
É
possível comentar ainda que em 1938 Flávio de Carvalho, na
apresentação do II Salão de Maio, em São Paulo, como bem
recorda Sérgio Lima, “irá precisar que se trata ‘de um
movimento’ e não de mais uma exposição”,
ou mesmo a adesão pública ao Surrealismo da parte de Aníbal
Machado. No entanto, o Surrealismo só entra na pauta oficial de
nossa historiografia como uma ambientação tardia, considerando
a criação de um primeiro grupo nos anos 60, justamente a
partir de Sérgio Lima. Já em 1930 Breton nos levava a recordar
que “o surrealismo busca simplesmente a recuperação total de
nossa força psíquica por um sistema de descida vertiginosa em
nós mesmos, na iluminação sistemática dos lugares ocultos,
no escurecimento progressivo dos demais lugares e no passeio
perpétuo pela plena zona proibida”.
Não se requer propriamente uma ação coletiva, decerto. Nem se
pode vincular a idéia de movimento à de um colegiado onde
todos seguem a rigor uma orientação central. Os erros
decorrentes de uma ortodoxia surrealista são bastante claros
neste sentido. Mas enfim, oficialmente o Surrealismo chega ao
Brasil com o estabelecimento, em 1965, de um grupo surrealista
em São Paulo, capitaneado por Sérgio Lima, que já aderira ao
grupo parisiense em 1961, quando de sua residência na França.
Adesões similares já havíamos tido com Flávio de Carvalho e
Maria Martins, por exemplo, sem que em nenhum dos casos houvesse
uma disposição por fundar uma sucursal surrealista no Brasil.
Ao fazê-lo, Sérgio Lima evoca para si todos os paradoxos
decorrentes de uma aproximação entre duas realidades quase
antagônicas, ou seja, estava aqui a tentar reproduzir aquele
cenário do encontro fortuito de uma máquina de costura com um
guarda-chuva sobre uma mesa de cirurgia. Talvez o que lhe tenha
faltado foi a indagação, no sentido de atualidade da insurgência,
de qual sentido deveria apontar a poesia então. Em âmbito
nacional, da pressão católica havíamos passado à pressão
militar, embora já em 1924, Graça Aranha tenha dito que “no
Brasil só há uma classe organizada, a classe militar”, logo
afirmando, como já ressaltei, a inexistência de uma cultura
coletiva, avaliando que “as populações jazem afundadas na
ignorância selvagem, de que o animismo fetichista é a expressão
viva, a feição pitoresca que o diletantismo literário explora
e não quer ver substituída pela civilização”.
O rito de passagem não foi senão um passar o bastão, por
assim dizer. Ao que parece o que faltava nos exemplos dados até
aqui havia em correspondente excesso em Sérgio Lima, ou seja,
ao tentar recuperar distorções, ao dar corpo a uma indignação
intrinsecamente válida, acabou por envolver-se demasiado com
uma ortodoxia que já enfrentava discussões internas no próprio
núcleo parisiense. Sérgio repetia a cartilha de Breton em uma
circunstância onde melhor caberia sua atualização. Há um
depoimento de Claudio Willer, em entrevista que lhe fez Roberto
Piva, que propicia algum esclarecimento. Diz Willer que, “na
verdade, nós éramos um grupo surrealista desde quando nos
conhecemos. O Piva já conhecia bem, o Piva colecionava o
surrealismo, a revista La
Brèche, por exemplo. Poesia surrealista foi uma coisa
seminal e formadora para todos nós. Agora, em 63, o Sérgio
Lima veio de Paris, havia feito estágio de um ou dois anos na
Cinemateca Francesa e participou pessoalmente, diretamente, do
movimento surrealista. Conheceu André Breton, subscreveu
manifestos surrealistas, correspondeu-se com Breton e teve
contato com ele até sua morte em 66. Então, houve um período
em que nós nos reuníamos em grupo, regularmente, uma ou duas
vezes por semana, em um bar, no estilo surrealista. Isso, essa
fase sistemática de grupo, durou até 64. O grupo explodiu, e
eu acho que nós não poderíamos e nunca conseguiríamos formar
o tipo de movimento do surrealismo.”
A
referência a grupo aqui é no sentido informal, cumpre
esclarecer. Trata-se de um núcleo que serviria de base para a
formação do primeiro grupo surrealista afirmado como tal,
embora apenas o Sérgio Lima viesse a participar dele, como seu
fundador e principal articulador. Retornemos ao depoimento de
Willer, bastante significativo: “Acho o surrealismo
fundamental em dois níveis: como criação, e isso é o que
realmente importa, a criação poética; e como movimento de idéias,
como prosseguimento da rebelião romântica e tentativa de unir
a rebelião romântica à transformação da sociedade. A junção
do mudar a vida com o transformar a sociedade, de Rimbaud e Marx. É um movimento de idéias
que teve mudanças ao longo do século, e que é fundamental. De
tudo o que aconteceu naquele período vanguardista do começo do
século, evidentemente foi o movimento mais significativo, mais
importante, e, disparadamente, o mais consistente.”
Ao contrário do que se possa pensar, Claudio Willer e Roberto
Piva jamais integraram o grupo surrealista oficialmente dado
como existente entre 1965-69, o qual, no dizer de Sérgio Lima,
“se responsabiliza por toda uma série de atividades
coletivas, indo de panfletagem, edição de plaquetas, livros,
testemunhos públicos, exposições e um manifesto, publicado em
editorial na Phala # 1 (redigido em conjunto por mim e
Aldo Pellegrini)”.
A raiz do impedimento da adesão formal de ambos, Piva e Willer,
ambientava certa reserva da parte do próprio Breton em aceitar
desdobramentos do Surrealismo, de que poderiam ser exemplos
tanto o abstracionismo como a explosão da Beat Generation e da
contra-cultura. No Brasil, coincidindo com uma reafirmação
formalista, sua radicalização extrema, o surgimento do
Concretismo, este teria sido um momento ideal para uma recusa àquele
referido espírito do “melhor que nada” já aqui referido.
Nada mais coerente com o sentido de recusa total que adotaram,
por exemplo, os canadenses, na afirmação de um Surrealismo que
em circunstância alguma pode ser entendido como segmento de uma
ortodoxia. Em entrevista que fiz ao crítico de arte canadense
André Lamarre, por exemplo, ele menciona que “o
Refus Global e a corrente de pensamento que o prolonga
tentam, por uma parte, ligar-se a uma concepção original do
surrealismo e, por outra parte, fazê-la progredir, isto é, levá-la
até seus limites. Entre as noções fundamentais do
surrealismo, Borduas assinala ‘a importância moral do ato não
preconcebido’. Refus Global formula uma crítica da razão
e da intenção que bloqueiam o desenvolvimento humano.”
Refus Global é justamente o nome que leva a principal
formação grupal surrealista no Canadá, tendo à frente Paul-Émile
Borduas.
É
bom reforçar aqui que essa recusa à qual aludo sempre foi
reafirmada pelo próprio Sérgio Lima, considerando sua defesa
de que “o surrealismo é a exigência maior do espírito
humano, erguida frente ao desencanto do mundo, da realidade
dada, e contrapõe seu querer às acomodações e convenções,
que contrapõe, portanto, ‘o homem do desejo desejante’ ao
sistema racionalista e restritivo do progresso e da modernidade,
instaurando um retorno, uma abertura sobre o moderno e que passa
pelo passado: em um processo aberto de busca permanente, na própria
imanência de mais realidade e sua revolução, não de sua
reforma”.
Em
agosto de 1967 se publica então o número inaugural da revista A
Phala, apresentada tanto como “revista do movimento
surrealista” quanto “catálogo da 1a exposição
surrealista tendo por temas a mão mágica e o andrógino
primordial”. O editorial, embora tenha sido escrito, segundo Sérgio
Lima, por ele e o argentino Aldo Pellegrini, não traz
assinatura alguma. Lemos ali que “o surrealismo é o movimento
organizador do pensamento revolucionário que tende a uma
reivindicação absolutamente moderna do sagrado”. Os três
parágrafos seguintes são esclarecedores das relações entre
Brasil e América Hispânica, merecedores portanto de reprodução
na íntegra:
“No
âmbito americano e, em particular, latino-americano, as
manifestações isoladas e a própria estrutura natural das forças
imanentes do meio, onde brilha o coração selvagem, o
Surrealismo se apresenta como uma consciência primeira, daquele
que seria o ponto capital para todo um desenvolvimento de liberação
do espírito, que tende a desencadear as forças mágicas.
Entre
nós, os movimentos mais significativos se orientaram sempre em
duas vertentes comuns, a plástica e a poética. As expressões
relacionadas com a poesia, desde seu começo, estiveram
vinculadas em geral a manifestações plásticas, não
profissionais.
As
vozes propícias que nos chegam de pontos do México, da
Argentina, do Chile, do Brasil, do Peru, da Colômbia, do
Equador, da Venezuela e do Haiti, o encantamento das vozes que
ainda nos chegam da tradição d’amour da faixa
equatorial do globo, nos propõem uma linguagem excepcionalmente
única, e pura.”
Será
bastante recordar as palavras de René Char, para quem “a
poesia se incorpora ao tempo e o absorve”, para compreendermos
o que havia de impossível no Surrealismo defender a existência
de uma “linguagem pura”, conceito este que vinha já sendo
discutido em outro âmbito. A propósito, diria que, ao contrário
de Pierre Reverdy, me parece que estava mais correto Adolfo
Casais Monteiro, ao defender que “a imagem não é uma
criação pura do espírito, pela simples razão de não haver
criações puras do espírito”.
No caso de A Phala, revista e exposição dão mais
sinais de relacionamento com França e Portugal do que
propriamente com América Latina. A presença de Aldo
Pellegrini, o argentino que desde o final dos anos 20 tratou de
ser um profundo defensor e difusor das idéias surrealistas, não
deixa de ser de imensa importância. A princípio, estava assim
oficializada a entrada do Surrealismo no Brasil, e com o apoio
internacional de nomes como José Pierre, Mário Cesariny de
Vasconcelos, Aldo Pellegrini e Elisa Breton, esta última dando
continuidade ao apoio de seu marido, que morrera no ano
anterior. Os contatos com o continente americano eram quando
muito ocasionais, de modo que o movimento acabou se dispersando.
Também internamente se deram alguns afastamentos, a exemplo de
Raúl Fiker, Paulo Antonio de Paranaguá, Maninha Cavalcanti,
Leila Ferraz e Carlos Felipe Saldanha. Sérgio Lima observa que,
mesmo considerando algumas novas adesões, elas “não foram
suficientes para a formação de um novo grupo, visto que
faltava a cristalização de um segundo momento […] e as
conseqüentes tomadas de posição que implicavam […] a
retomada da aventura surrealista”.
Defende
Valentin Facioli que “muito da inviabilidade do surrealismo
nos nossos países” – e aqui se reporta à América Latina
– “tem a ver com a qualidade da democracia burguesa que
vivemos, ou sofremos, pois que ele não se pôs nunca como
vanguarda artística, e sim como práxis vital, a qual
foi reprimida, impedida ou deformada ao extremo por aqui”.
Em muitos casos, na América Latina, o Surrealismo esteve
presente justamente em um ambiente que não se poderia jamais
chamar de democrático. Talvez a distinção que se deva traçar
em relação ao caso brasileiro seja a de que entre nós o
Surrealismo jamais se firmou como uma reação ao poder instituído.
Este sentido de rebelião contra o establishment é possível
detectar no Chile e também no Canadá. Ocorreu na Venezuela e
no Haiti. Mas não ocorreu no Brasil. O Surrealismo capitaneado
por Sérgio Lima não definiu barreiras contra o poder
estabelecido, não representou nenhuma espécie de resistência
ao mesmo. Sequer o considerou, pois se ausentava no tempo e no
espaço do que eventualmente pudesse se chamar realidade
brasileira nos anos 60. Os afastamentos foram quase todos
decorrentes de uma perda de interesse nessa forma curiosa de
autismo. Houve um erro fundamental, da parte de Sérgio Lima
que, a despeito de importâncias capitais que tenha em relação
à compreensão e difusão do Surrealismo no Brasil, não soube
perceber o que havia de latente na cultura brasileira naquele
instante, preferindo seguir a trilha de uma ortodoxia que já
havia sido superada em manifestações situadas em países como
Venezuela, Canadá, Chile, Peru, Estados Unidos.
Ao
retomar as atividades grupais, logo no início da última década
do século passado, mesmo considerando diálogos estabelecidos
com grupos existentes em países como Argentina, Espanha e
Estados Unidos, o fato é que internamente os novos integrantes
deste segundo grupo surrealista, em grande parte, não possuíam
uma identificação tão forte, seja na essência ou na forma,
com o Surrealismo, sobretudo uma compreensão do papel que ainda
lhe caberia representar contemporaneamente, de maneira que a
dispersão mostrava-se como inevitável, muito embora tenha
havido, a título de contribuição factual, a realização de
algumas exposições e a publicação de uma revista, Escrituras
Surrealistas. Dentre os mais interessados em não se perder
nas teias do tempo, ciente de que só é possível ser agora,
encontra-se o arquiteto Fernando Freitas Fuão, cujo empenho em
provocar depoimentos dos demais participantes, como se estivesse
ali a compor uma cartografia emocional daquele ambiente em que
nos afirmávamos como surrealistas, foi o que mais me despertou
atenção.
Ao
largo desta nossa conversa diversas vozes são citadas, o que de
alguma maneira propõe a recolha de uma bibliografia dispersa,
sobretudo no que diz respeito a material de imprensa, quase
sempre em órgãos de raro acesso. Isto se passa sempre em relação
àqueles temas que ou não são de grande interesse ou cujo
interesse maior é abafá-los, evitando-lhes assim compreensão
e natural desdobramento. Em nosso caso, não me parece que a razão
principal seja o Surrealismo –
ou seja, há um componente na cultura brasileira que a
leva a ausentar-se de si mesma, a sentir vergonha do que é em
essência, e o mais curioso é que sua essência é de uma
grandeza imensa. Já citei aqui a espanhola Castro Morales, mas
quero uma vez mais a ela me referir, quando diz que “o
interesse dos surrealistas europeus pelas culturas que hoje
identificamos como da ‘alteridade’ ou da ‘outridade’, se
explica por sua reivindicação do não normativo: os loucos, o
ocultismo, o subconsciente, a sexualidade, os sonhos, o
maravilhoso”, e então nos dá um cheque-mate, afirmando que
“todos esses elementos que foram matéria da investigação
surrealista conformam o conjunto de uma realidade excluída do
canônico, e o primitivismo e o gosto pelo selvagem se incluem
na exploração de uma cultura rejeitada, submergida”.
A
miscigenação cultural que tanto prefiguraria o destino dos
povos americanos, referida por nomes como o mexicano José
Vasconcelos, o peruano José Carlos Mariátegui ou mais
recentemente o brasileiro Darcy Ribeiro, não teve entre nós a
consideração que merecia, de maneira que temos uma compreensão
bastante estratificada de nossa realidade cultural e sequer a
conseguimos pensar em sua relação íntima, por exemplo, com a
hispano-americana.
Finalizo
recordando passagem de uma recente entrevista com Roberto Piva,
onde ele afirma que “O dionisismo é uma das religiões mais
profundas que já existiram. Basta ver que uma das suas
manifestações produziu o teatro. Quer mais do que isso? Dionísio
é o deus do teatro. As artes da aparência empalideceram diante
de uma arte que proclamava a sabedoria na sua própria
embriaguez. […] Vivemos num país profundamente dionisíaco,
onde os intelectuais têm preconceito contra as manifestações
espontâneas, criativas. Mesmo o fato de me enquadrarem na
poesia marginal, dos anos 70, tem a ver com isso. Eu não sou
dos anos 70 e não sou marginal; sou marginalizado. E por não
ter pactuado com a universidade, com uma certa esquerda, por não
participar das rodas literárias, nem dos "chás-da-cinco",
aos poucos fui sendo excluído.”
Este
é o ponto. Identificando-se com o futurismo, o existencialismo,
o surrealismo ou mesmo o nazismo, via integralismo, os
brasileiros compreendem a si razoavelmente pouco ou não de todo
suficiente para afirmar ao menos uma simpatia. É uma tática
camaleônica, ao que parece. A qualquer momento um regime de
posição pode causar indisposição, e disto nós entendemos,
do trocadilho semântico que infesta nossa poesia desde um
parnasianismo canônico adotado em caráter de perpetuidade.
Somos formalistas por natureza. Nada nos interessa em essência.
Mesmo os nossos surrealistas incorreram em tais disparates.
“Entrevista com o escritor Roberto Piva”. Concedida a Fábio
Weintraub. Revista Cult # 34. São Paulo. Maio de
2000.
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