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Florisvaldo Mattos


 

Surrealismo, A voz e a mão do bizarro

 

A Tarde On Line
28/12/1996


 

A palavra surrealismo foi usada pela primeira vez pelo poeta Guillaume Apollinaire em 1912 na apresentação de um balé de Jean Cocteau e Erik Satie, intitulado Parade, referindo-se a uma arte que ultrapassava as aparências, desobrigada de fidelidade para com o real. Entre 1920-1924, André Breton dela iria apropriar-se para rotular o movimento, aconselhando seus adeptos, através de seu famoso manifesto, a deixar a essência pela sombra, e começar a viagem. Ao escrever uma apresentação para uma exposição de colagens do pintor alemão Max Ernst em 1921, Breton parecia tomado dos poderes mentais que impeliam a imagem poética surrealista; primeiro, comparou a uma centelha elétrica as duas realidades separadas da pintura e da colagem; depois viu nas colagens o equivalente plástico de uma famosa frase de Lautréamont - "o encontro casual de uma máquina de costura com um guarda-chuva numa mesa de dissecar cadáveres".

Residia aí o preceito estético que expulsava qualquer tipo de premeditação no processo de criação da obra de arte, literária ou visual. "A desorientação do espectador constitui um passo em direção à destruição das maneiras convencionais de apreender o mundo e de manipular as próprias experiências, de acordo com padrões preconcebidos. Os surrealistas acreditavam que o homem se encerrava na camisa-de-força da lógica e do racionalismo, o que mutilava a sua liberdade, atrofiando a imaginação", (Dawn Ades, 1976).
 

Algumas
idéias-chave
nortearam o
movimento
desde o
começo.


Até mesmo
Lênin entrou
na dança
especulativa
 

Verbete - O primeiro Manifesto de 1924 lançava o verbete que pretendia definitivo: "Surrealismo, substantivo. Puro automatismo psíquico através do qual se deseja exprimir, verbalmente ou por escrito, a verdadeira função do pensamento. Pensamento ditado na ausência de qualquer controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral".E advertia que filosoficamente "o surrealismo se baseia na crença da realidade superior de certas formas de associação até então negligenciadas, na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento".

Algumas idéias-chave nortearam o movimento desde o começo. Marx dera, no plano das revoltas políticas, a régua e o compasso para a transformação do mundo; "mudar a vida" (changer la vie) tinha seu fundamento na estética rebelde de Rimbaud - palavras de ordem que, para André Breton, possuíam um só sentido. A exploração do inconsciente e os discursos da e sobre a loucura já se encontravam no mapa psiquiátrico traçado por Charcot e Freud. O restante se completaria com pregação fervorosa e amor ao combate, além de estudo e ação, lógico. O surrealismo foi um movimento cujas idéias básicas se expressavam principalmente na poesia e na pintura.

À primeira passaria a dever o prestígio da teorização, o sentimento de liberdade, o arrojo inventivo e a espontaneidade; às artes plásticas, a popularidade e a internacionalização.O surrealista é o filho natural bem-comportado do dadaísmo, de quem herdou, à luz da negação, da abolição e da destruição, sem a iconoclastia radical e o niilismo, o espírito de combate a todas as formas e práticas de conservadorismo estético.

Muitos dadaístas se tornaram depois surrealistas - Tzara, Arp, Man Ray, Ernst, Picabia.Embora reconhecidamente de base francesa, com Breton à frente, o surrealismo representou, a uma só vez, a primeira grande mistura de nacionalidades a vigorar na modernidade.

Basta arrolar, num relance, alguns de seus destaques: Max Ernst é alemão; Hans (depois Jean) Arp, nascido em Estrasburgo (1886), também; Francis Picabia, de ascendência hispano-cubana; Man Ray, norte-americano; René Magritte e Paul Delvaux, belgas; Roland Penrose, inglês: Giorgio de Chirico, italiano; Salvador Dali e Luis Buñuel, espanhóis, Tristan Tzara, romeno. Isto, nos inícios - mais que uma Europa unida, após Weimar e Tratado de Versailles. Depois, vieram: Wilfredo Lam, cubano; Arshile Gorky (Vosdanig Manoog Adoian, de origem), armênio de ramificação turca, George Grosz e Otto Dix, alemães; mais espanhóis, Joan Miró e Oscar Domínguez; Alberto Giacometti, suíço: Matta (Roberto Sebastián Matta Echaurren), chileno; Aimé Césaire, martiniquenho, e tantos mais por vários continentes, como a prefigurar uma ONU das letras e das artes.

Tudo isto tem origem num dia de 1916, em Zurique (Suíça), mal comparando no instante mesmo em que na França, no clímax da guerra, começava a batalha de Verdun. Por meio de espetaculares e escandalosas reuniões ali, no cabaret Voltaire, irrompia freneticamente o movimento Dada, palavra enigmática de origem até hoje pouco explicada, ao que se supõe erigida do vazio, como arte de viver permanentemente em atitude de protesto, sob o signo do verbo gritar, como estava no manifesto de Tzara, que dizia, entre sincero e blefador, quando perguntado: "Dada nada significa". Nem por isto ficou seu significado imune a palpites; a semântica mais provável: aberto um dicionário ao azar, caiu-se na palavra dada, que em francês significa cavalo de brinquedo. E assim se estabeleceu o nome.

O resto é, como tudo no dadaísmo, fantasia ou lenda.

E até mesmo Lênin entrou na dança especulativa. Conta-se que, de passagem por Zurique, tendo ido assistir a um espetáculo burlesco oferecido por Tzara, com atores como sempre arrebatados, o revolucionário russo seria alvo de chicanas dos dadaístas, que aos urros o apupavam. Indignado, Lênin parte contra eles berrando: "Da! Da!". Não há registro histórico do episódio, mas de espetáculo em espetáculo, de trampa em trampa, o dadaísmo firmou nome e vigência, dando origem ao surrealismo, e influenciando por simbiose toda a cadeia de movimentos artísticos de protesto que com ele terão parentesco no curso do século. Aliás, o que não falta é lenda, quando se trata de dadaísmo.

Uma delas tem como fundo a morte de Guillaume Apollinaire, precursor e incentivador do movimento. Durante seu enterro no dia 13 de novembro de 1918, os que acompanhavam o féretro foram surpreendidos por uma turba que percorria as ruas gritando: "A mort Guillaume!" (Guilherme morreu!).

Logo em seguida veio-se a saber que o brado fúnebre se referia ao Kaiser Guilherme da Alemanha guerreira, que acabara de morrer, não ao poeta francês. Humor negro de fatura dadaísta...Embora ainda mantenha sua marca indelével, o surrealismo começa e se finda com o francês André Breton, que formou com Louis Aragon, Paul Éluard e Philippe Soupault os chamados "quatro mosqueteiros" do movimento, ou um quinteto, a estes se acrescentando o poeta Benjamin Péret. Porém, a base francesa predominante incluía mais gente, como René Crevel, Jacques Prévert, Jean Cocteau, Robert Desnos, Roger Vitrac, Raymond Roussel, o teatrólogo Antonin Artaud, e outros tantos, que se encarregaram (com os estrangeiros) de firmar, consolidar, difundir e expandir o movimento, na literatura, nas artes, no mundo das idéias e na política, arrastando um exército de escritores, poetas, pintores, fotógrafos, cineastas e agitadores por toda parte, até 1966, quando morre Breton, aos 70 anos, e depois.

Como se tem visto, com seus signos de resistência, manifestando-se aqui e ali, onde haja um ânimo decidido de combate ao statu quo artístico, o surrealismo parece um mvimento fadado a não morrer, por que é, antes e acima de tudo, um estado de espírito, fiel à alusiva função química que lhe atribuía seu fundador, a de poisson soluble (peixe solúvel), título de um escrito que acompanhou a publicação de um manifesto, mas hoje trocado por poison (veneno), muito mais coerente com a era dos agrotóxicos. Quem o negaria?ênciasAdes - O Dada e o Surrealismo. Editorial Labor do Brasil. Tradução:Coelho Frota, 1976.Luc Rispail - Les surréalistes - Une génération entre le rêve et l'ation. Paris: Éditions Gallimard, 1991. (Um mimo de Jorge Amado; agradecido, FM)