Luiz
Paulo Santana
Soares Feitosa, Poeta:
O novo e-mail já está na agenda. Aqui faz um dia nublado, frio, indefinido. Releio "No Céu tem Prozac": a mesma enorme dramaticidade de "O Relato do Capitão". Neste, a culminância da foto avassaladora, derruindo a própria arte; naquele, o verso "Mãe, no céu tem pão?" concentrando em si todo o significado da tragédia humana. A mesma inércia vagarosa do movimento do mundo entre a inocência e a crueldade. Releio com um sentimento de derrota, eu pretenso reformador do mundo, racionalista, positivista inconfesso, incapaz de captá-lo na sua imensa complexidade. Nem o envelhecer me dá a santa sabedoria evocada no poema, aquela em que a pessoa se põe como um humilde instrumento e não como um demiurgo de 100ª. categoria:
"Adiam-se-lhe os minutos,
ao gesto do amor,
sacrifícios e devoções:
êxtase de Margarida,
êxtase de Madre Teresa,
êxtase do Cura D’Ars,
êxtase da irmã Dulce;"
Pois não será pura sabedoria essa dedicação sem perguntas, essa fé gratuita? Em que horizontes buscarão tais santas e santos — canonizados ou não — a força de sua humilde retidão? Como gostaria de sabê-lo, ou melhor, de senti-lo. Talvez pudesse superar essa oscilação angustiante: euforia pelo ideal de justiça, derrota pela injustiça flagrante. E culpa, culpa, culpa. Eu, neurótico, preciso recorrer à vossa palavra poética para desculpar-me. Porque nela encontro um sentimento maior do mundo. Ou à palavra poética de Moacyr Félix:
"Sabemos do anzol apenas o que vai até o fácil branco e o facílimo vermelho de sua boiazinha de superfície;
o que o chumbo leva ao fundo, o mar, o peixe, a vida do peixe, o nosso desejo preso às giratórias mortes do peixe, o segredo central da pesca, isto nunca sabemos, porque no mar do Mar nada sabemos até o fim:
somos sempre o início, como a vaga é sempre o início de outra vaga, como a vaga que, quando isolada, é
apenas um temporário espaço de água e sal, jogo de químicas e retortas, sem nenhum movimento capaz de ligar-nos à história do mar, ao seu princípio e ao seu fim."
De vez em quando a barra pesa, você sabe. Daí que leio o Salomão Souza com o seu "Recorte sobre a poesia brasileira contemporânea" e uma vereda se abre. Fina percepção de um movimento que transcende a análise de uma escola ou "igrejinha" e/ou sua comparação com outras. Nem sequer é crítica literária, (por um momento, só por um momento resvala para um quase revanchismo ao referir um "fundamentalismo" e mencionar a
Alexei Bueno e Espinheira Filho) mas percepção fenomenológica. Não há demérito para ninguém. Com seu olhar panorâmico faz observações interessantíssimas.
Salomão Souza levanta-me o astral ao fazer-me perceber que esse vazio na boca do estômago é compartilhado. Mas, claro que é compartilhado, que é sofrido por todos, sem exceção, mas não necessariamente apreendido, detectado e finalmente expresso, por todos. Apenas as "antenas" da humanidade, pensadores, poetas e escritores, por dever de ofício. Assim mesmo a percepção completa, analítica, é posterior. O fato é que a literatura (dentre outras antenas) emite sinais, e os emitiu antes da primeira grande guerra, e entre esta e a segunda, por exemplo.
Pois Salomão
Souza detecta — como uma forte tendência, capaz de caracterizar uma originalidade expressiva — no panorama da poesia brasileira contemporânea a complexa e paradoxal expressão do vazio. Complexa como se pode apreender da elaboração dos versos dos poetas citados. Paradoxal, porque longe de uma poética destituída de brilho, aliás, muito pelo contrário.
Referindo-se a tal tendência, escreveu Salomão: "... atrai-me na atual poesia de pós-vanguarda essa liberdade de não querer nada — nem engajamento, nem bordado de um texto estruturado numa forma definida, nem a estrutura sólida dos objetos da natureza e da cultura.". Outras características são assinaladas, como agressividade, densidade, sonoridade, sugestão, interioridade, condensação, corte, que não são em absoluto estranhas ao mundo da poesia, razão porque separei, a meu juízo, a instantaneidade, a desconstrução de forma e conteúdo e a ausência de significado explícito como vetores mais importantes dessa tendência a que se refere Salomão. Os três vetores apontariam para um "esvaziamento" semântico que mais corresponde a uma sugestão, a uma pergunta, do que a uma proposta, ou a uma resposta, já que estas, até mesmo pela ausência cada vez mais pronunciada do "eu" no mundo real, deixaram de ter sentido nesse "mundo em cacos" "em que o eu não mais ocupa a figura de centro". A viagem se interioriza. A metalinguagem faz-se presente não para explicar fórmulas, mas para corroborar na pergunta, ou realçar a perplexidade: e agora, em que nos tornamos?
A palavra perdeu o seu sentido habitual. Perdeu o seu sujeito. Está muda, vazia. Está a espera de uma ressignificação. Ou sugere-a num novo sentido não explícito, para nova fruição.
Não cabe perguntar se essa tendência e seus poetas têm ou não razão. O fato, para mim, é que seus versos refletem uma concepção poética que parece "escapar" da encruzilhada em que se mete o mundo, entre o ideal gasto, esfarrapado, e o real fragmentado e anômico, apesar das marcas do desassossego. Como acentua Salomão, referindo-se aos versos de Iacyr Anderson Freitas, "Então, é uma vasta procura e uma vasta
dúvida.".
Enquanto isso,
Salomão fotografa o mundo com a mesma "neutralidade" dos santos e santas em êxtase: olha, tem coragem, mira o teu rosto. Veja como é belo. Veja como é odioso. Veja como rimos e como choramos. Veja como somos humildes e quanto somos pretensiosos. Veja como a saga humana tem de fantástico o que tem a Arte. Veja como nossa história poderá nos salvar no Século Cem, de Ésquilo!
Mas, às vezes, às vezes, a barra pesa.
Mudando de pau pra cavaco, gostaria de, oportunamente, substituir (ou retirar) na minha página o poema "Quando plantei na lata", por incompleto, inacabado, insatisfatório, mais que os demais. Não sei porque acabou indo com os outros. Quando for possível. E já que falei de "vazios" e de metalinguagem, aqui vai este que bem pode ser o substituto daquele.
Desandar
Caneta, bloco, livros, cinzeiro,
os objetos estão aqui,
estão inertes em sua postura
de objetos em si.
Nada os reúne, nada os convoca
para uma troca existencial.
Diante deles estou perplexo
mudo, deflexo, convencional.
Não há perfumes, não há naufrágios,
nada me toma nem me libera
e os objetos repousam tácitos,
tudo é silêncio, nada se altera.
Cansado e roto recolho antenas
deito-me às penas de não dormir.
Vejo carneiros, conto às centenas,
todos a me balir.
Grande, grande abraço,
LPSantana
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