Fernando Paixão
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Os heteroleitores de Pessoa
Insatisfação moderna confina obra do
português a clichês de emocionalidade direta
Muito já se escreveu sobre as várias
faces desse poeta português. Poliedro de heterônimos, embaralhou
o campo da poesia moderna com um piparote de largas consequências
metafísicas: renunciou a ser um, dividiu-se em muitos. E, por ter
sido deveras competente no próprio ocultamento, o enigma de identidade
pessoana atravessa fronteiras e línguas neste fim de século,
longe de ser fisgado pelo anzol dos críticos.
Do ponto de vista dos leitores, o mito se reduplica, chega a arrebatar
uma unanimidade inquietante. Lido por "teenagers" e professores universitários,
por admiradores de ioga ou executivos financeiros, os poemas do autor de
"Mensagem" (única obra que efetivamente publicou em vida) agradam
a um leque heterogêneo de gostos, idades, temperamentos e classes
sociais. Sobrepujando as diferenças, seus leitores nutridos de maior
ou menor grau de cultura e sensibilidade (nem sempre no mesmo compasso),
o fato é que a poesia de Pessoa resultou
num fenômeno único. Por isso mesmo é natural que nos
perguntemos: o que indivíduos tão diferentes procuram ou
encontram em suas páginas? E aí o raciocínio pede
voltas, complica-se um pouco.
Certamente não é possível dar uma resposta
unívoca à indagação. Melhor, e mais sensato,
será acenar com algumas possibilidades, coerente com a trajetória
do nosso autor. Como ponto de partida, vale a pena assinalar que a poesia
deste lisboeta de cotidiano simples e rotineiro (mas não pouco intenso),
apesar de desdobrada em heterônimos diversos, teve como foco primordial
de sua expressão o trabalho direto das emoções. O
que mais lhe interessava, do ponto de vista estético, era transmudar
o plano das sensações a um nível de linguagem que
fosse capaz de alcançar autonomia e, ao mesmo tempo, sensibilizar
a atenção do leitor. Deliberadamente, quando se põe
a enunciar em versos o intrincado repertório dos sentidos, em verdade
está a apresentar a medida emocional de um homem diante de seu presente:
"Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!/ E quando o navio
larga do cais/ E se repara de repente que se abriu um espaço/ Entre
o cais e o navio,/ Vem-me, não sei porquê, uma angústia
recente/ Uma névoa de sentimentos...".
Aquilo que o poeta sente só ganha veracidade quando recriado
na esfera do pensamento plástico das imagens. E vice-versa, almejando
por um circuito circular. Seja sob a ótica geniosa e levemente homossexual
de Álvaro de Campos (o trecho acima foi retirado de sua "Ode Marítima"),
ou do mestre Alberto Caeiro e de outros eus, a atenção do
poeta luso atém-se principalmente ao valor das sensações.
Elas lhe servem de "argila" a ser moldada pelo pensamento poético,
como sugere uma de suas definições: "A poesia é a
emoção expressa em ritmo através do pensamento" (1).
Walt Whitman foi quem inaugurou essa tradição sensorialista,
e com tal agudeza que desencadeou o ciclo da modernidade em poesia. "O
próprio ser eu canto:/ canto a pessoa em si, em separado...", anunciou
no preâmbulo do seu "Leaves of Grass", de 1855. A partir daí,
enriquecido pela variante de muitos outros autores de várias nacionalidades,
o sujeito poético se liberta para ocupar o centro da expressão,
ponto a partir do qual as imagens descem à esfera da cotidianidade
e o leitor encontra no poeta um seu igual. Quer dizer, um diferente, mas
em quem se pode mirar.
Fernando Pessoa, consciente do impasse moderno, radicalizou o procedimento.
Enfeixou-se, criou identidades distintas e deslocou o centro de gravidade
do imaginário romântico e simbolista. Empenhado em tecer uma
obra pautada pelo princípio de que a palavra poética também
pode servir à dicção de um sujeito literário
passível de ser inventado. Apostando, portanto, num certo ilusionismo,
o gesto poético acaba por sobrepor-se à noção
de verdade. Poesia é emoção, sim, mas intelectualizada,
tornada imagem para ser espiada como um jogo de possibilidades. Não
é outra, portanto, a lição de suas múltiplas
faces: vamos à poesia para experimentar um pouco do perigo e do
transe alheios.
Vem daí uma resposta possível à pergunta que
nos colocamos inicialmente. O estrondoso sucesso de Pessoa, de apelo vivencial
mais do que intelectual (e de alguns outros poetas modernos) estaria, em
parte, associado à uma demanda idealizante projetada pelos leitores.
Arquipélago de identidades literárias, suas páginas
oferecem de imediato uma alteridade que serve de espelho para quem está
lendo. Em termos anímicos, há um circuito de vivência
posto em cena - figurado em sensações - sobre o qual podemos
nos deter e estabelecer relação. Compartilhamos o pensamento
e o sentir de outrem por uma fresta concisa: o poema.
Coincide com esse raciocínio ser o mais aclamado dos heterônimos
pessoanos justamente Álvaro de Campos, notável por seu entusiasmo
(na acepção grega e original do termo, de incorporação
plena e divina) diante da realidade. Há nele um dado de assombro,
mesclado à reflexão emotiva, cujo ritmo envolve prontamente
o leitor. Como não acreditar, então, que de fato ele tenha
sido um engenheiro, nascido em 1890, licenciado em Glasgow e convertido
à atividade poética depois de algumas viagens e de alguns
amores furtivos? Ao cultivarmos uma poética de sujeitos, pouco importa
que estes sejam fingidos ou não; o que conta está ligado
a um roteiro de sensações.
Talvez seja este, aliás, o derradeiro resíduo de comércio
que impregna a poesia em nossos dias. Relegada à periferia da indústria
cultural, o pouco que lhe resta de glamour e atratividade estaria associado
a um traço de alteridade intensa. Dito de outro modo: o que em geral
o leitor adquire nos livros de poemas é a possibilidade de sua própria
despersonalização. Decaída a possibilidade regrada
e religiosa da interioridade, já sem vez numa sociedade laica, resta
a introspecção por fragmentos. Para isso serve a poesia:
ela acena com o canto sensível, ato minimal debruçado sobre
o correr do mundo.
Aceita esta hipótese, abre-se um leque variado de experimentos.
O leitor tem diante de si alternativas múltiplas no que diz respeito
ao cenário transfigurador das sensações. Em se tratando
de Fernando Pessoa, o requinte chega à biografia dos principais
heterônimos, cujas peculiaridades se afinam com o veio estilístico
de cada um, mesmo no momento da escrita. "Como escrevo em nome desses três?
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer
calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação
abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto
um súbito impulso para escrever e não sei o quê" (2).
Fingimento ou não (como sabê-lo?), é certo que
o estratagema das personas de Pessoa, mesclando momentos ingênuos
a outros de autêntico gênio, suscita a cumplicidade dos leitores.
Curiosamente, porém, o fato de se tratarem de identidades "criadas"
não lhes subtrai o conteúdo dramático. Pelo contrário,
acabam proporcionando uma espécie de conhecimento fundado no ato
de fingir. Mais do que a veracidade, interessa a aventura emocional e a
meditação subjetiva enredadas ao sabor das ocorrências:
"Pensar incomoda como andar à chuva/ Quando o vento cresce
e parece que chove mais" (3). Convívio entre sensação
e pensamento, entre percepção e sentimento, eis um dos principais
estímulos para nos abeirarmos de sua obra. A favorecer o encontro,
boa parte dos textos apresenta uma legibilidade de superfície que
pode ser desfrutada sem dificuldade. Não se confunde com o intelectualismo
exacerbado de certa produção atual, de notória ênfase
no raciocínio abstrato e no uso anamórfico da metáfora.
Pessoa, sem deixar de ser complexo, compromete-se, na verdade, com o vitalismo
do ato literário e quer tornar compartilháveis os estados
de alma de seus múltiplos. Para tanto, esconde um segredo: "A composição
de um poema lírico deve ser feita não no momento da emoção,
mas no momento da recordação dela" (4).
Ansioso por despersonalizar-se, atraído para a hiperexcitação,
o leitor passeia por duplos. Até Pessoa, ele próprio, passa
por máscara, composição construída. Estamos,
sem dúvida, diante de um jogo radical. Por isso mesmo, ainda que
seja por cisma, cabe levar o questionamento adiante. Sabendo que a possibilidade
de fruição não atinge por igual aos seus leitores,
não poderá haver aí também um círculo
vicioso a desfigurar a natureza original dos versos? Ou ainda: será
que uma parte de seus cultores, plantados na plataforma do senso comum,
não macera e torna cega a visitação poética?
Sejamos francos. É claro que sim. E outra vez, tateando hipóteses,
somos obrigados a dar voltas ao raciocínio.
De um lado, a perspectiva da despersonalização sugere
uma dinâmica positiva e estimulante, inerente a uma criação
que se deseja transpessoal. De outro, sob o formato de princípio
idêntico, flagramos lances de um maneirismo pernicioso, como circunscrevê-lo?
Ora, sabemos que a poesia não escapa ao alienamento de uma sociedade
cristalizada, reprodutora de simulacros para os seus anseios. Em muito,
a dita cultura, e sua infindável variante de produtos, volta-se
para dinamizar um movimento catártico do público, de modo
a afastá-lo (contraditoriamente) do ensimesmamento sensível.
Polarizada com relação ao poder técnico da realidade
cotidiana, a arte em circulação oferece uma possibilidade
de transporte (para o sonho, para outros países - outras histórias,
afinal), que toca de imediato a sensibilidade dos espectadores, ouvintes
e leitores.
Mas, por se meter o olho sempre pela mesma fenda, é comum
perder-se nesse caso o limiar de alta voltagem em torno de uma obra. Arranha-se
um fundo de imagens, mas por supostos. E, como conseqüência,
o que nos é dado ritualizar acena precisamente para uma espécie
de "fim da leitura" - quando a apreensão de versos e figuras estagna
numa barreira de superfície, ou seja, da arte consome-se a regra
e não o conhecimento que expande. Não poderia ser diferente,
pois, o viés de certa recepção da poética pessoana
identificada com um arremedo de catarse.
Confinada a clichês de emocionalidade direta, a palavra do
poeta serve de espasmo a dar conta de uma insatisfação tipicamente
moderna. Seus versos se vêem impregnados de um instinto primário,
misto de desabafo e sentimentalismo. Exemplo disso encontramos em muitas
das representações teatrais inspiradas no autor. É
comum ver-se no palco a retratação melodramática de
seus poemas enfatizando um mal-estar no mundo, visão parcial e limitada
do que o poeta tem a dizer. Fernando Pessoa, quem diria, virou grife para
pessoas sensíveis. Sensíveis até certo ponto, é
claro.
Chega-se à poesia, empreende-se o gesto de ler páginas
e páginas de poemas, mas com limites. Com freqüência
patinamos em falso, repetindo uma circularidade ao modo de Narciso. Enamoramo-nos
das visões alheias sob o molde do próprio rosto. Aliás,
não escapam a esse risco os seus melhores leitores, ou mesmo os
críticos, tão empenhados em vasculhar o famoso baú,
numa disputa acirrada e ferina pela "verdadeira" exegese dos escritos do
autor.
Ainda que atentos e bem intencionados, sempre podemos reproduzir
às cegas os volteios de um eterno romantismo. Célere, o genial
criador de heterônimos ganha ares de escultura acadêmica ou
pode se tornar o guia de um emocionalismo disperso e atarantado. A cada
heteroleitor cabe traçar a sua linha de risco. Não há
como escapar quando o rosto desce sobre a página.
Notas: 1. Em "Páginas de Estética e de Teoria e Crítica
Literárias", Lisboa, Edições Ática, 1973, pág.
73;
2. Citado em João Alves das Neves, "Fernando Pessoa", SP,
Íris, s/d, pág. 180;
3. "O Guardador de Rebanhos", em Fernando Pessoa, "Obra Poética",
RJ, Nova Aguilar, 1983, pág. 137;
4. Em "Páginas de Estética e de Teoria e Crítica
Literárias", op. cit.
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