Fernando Pessoa

Nunca supus que isto que chamam morte
 
NUNCA SUPUS que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido, 
Onde manda a lei certa e falsa sorte,

Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro , entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue a viagem.

Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.

Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.

Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.

Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.

É como se esperasse eternamente
A tua  vinda certa e combinada 
Aí embaixo, no Café Arcada -
Quase no extremo deste continente.

Aí onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, doriu-nos [...]
Aquilo tudo que dizes no Orpheu.

Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
[...]
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.

Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia -
O amigo como esse que a falar amamos.

   
Remetente : Ângela Campanha 
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