Francisco Carvalho
09.10.2005
Tufic ao sopro do
Zéfiro
Recorro a um truísmo para dizer que o poeta Jorge Tufic já se tornou
numa figura legendária da poesia brasileira do século passado e do
milênio
que se inicia. Críticos e resenhadores do país,
independentemente de tendências e opções estéticas, não têm negado
aplausos ao desempenho
literário deste autêntico mestre da artesania
poética, acreano de pais libaneses, nascido no final da terceira
década do século recém-findo.
Numerosos livros de poemas e de ensaios enriquecem sua vasta
bibliografia. Jorge Tufic é desses autores que exprimem, através do
poema, sua paixão avassaladora pela beleza e fugacidade da vida,
pelo legado existencial herdado de seus antepassados mais remotos.
Profundamente ligado às raízes, sem renunciar à fidelidade e aos
apelos do tempo presente, o poeta insinua-se nos meandros das
realidades do cotidiano para se encontrar consigo mesmo, com as
razões ou sem-razões do poema. Ou para confessar em versos como
estes, repletos de evocações do seu rio tutelar: “Menino ainda,
escolhi o meu caso./ Segui uma nuvem que vinha das cabeceiras”
(Zéfiro com Soneata Barroca, Realce Editora, Fortaleza, 2004).
Mestre incontestável do soneto, essa teia mágica que ainda intriga
os pretendentes de Penépole, Tufic passa incólume pelas “perpétuas
grades” (Augusto dos Anjos) dessa autêntica jaula medieval, com
certeza uma das mais polêmicas de todas as modalidades de poemas já
concebidas pela fantasia humana. Os sonetos de Jorge Tufic são de
uma leveza prodigiosa, e nisso reside um dos segredos de sua
modernidade.
(Oportuno lembrar que o texto literário produzido sob o signo da
norma culta é, necessariamente, terreno propício ao surgimento de
numerosas figuras de sintaxe e/ou de pensamento, das quais é pródigo
o idioma dos nossos ancestrais ibéricos. Essa opulenta nomenclatura
de tropos faz parte do acervo arqueológico do próprio idioma, razão
pela qual, na maioria das vezes, eles entram compulsoriamente na
poesia ou na ficção sem que os autores tenham contribuído
diretamente para isso. Seria utópico imaginar que a verdadeira
poesia dependesse, aleatoriamente, de eventualidades ornamentais.
Não seria absurdo imaginar que esses arquétipos podem ser
encontrados até mesmo numa tediosa exposição de algum balancete
sobre lucros bancários).
Poeta
de muitas andanças pelo Brasil e outras paragens do mundo, espírito
inquieto num corpo de beduíno, Jorge Tufic assimilou imagens e
recordações dos lugares por onde passou. De tal que em seus poemas
arrulham pássaros e regatos, rios e lagos que escondem mistérios,
lendas de sereias e visões encantadas, duendes feiticeiros e outros
seres fantásticos que habitam nos troncos diluviais da floresta
amazônica. Além de colméias dos tempos da criação do mundo,
construídas de fragmentos de diamantes lapidados. Sem falar nas
flores exóticas cuja beleza e perfume enfeitiçam os homens, peixes,
insetos e animais que se acasalam ou hibernam nas grutas, à espera
de que os estios acordem no fundo dos lagos.
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Jorge Tufic,
foto de João Justino |
No
primeiro poema de Zéfiro, Tufic já celebra o rio tutelar: “Este rio
profundo, mas / nem tanto como a noite e as palavras / que dormem
nas conchas do lodo”. É a saga do menino que vai descobrindo
paulatinamente o mundo poroso das águas. “A incansável descoberta
dos mapas, / nomes que foram sendo trocados, / passaportes
vencidos.” A referência a passaportes sugere que o menino já trazia,
dentro de si, as encruzilhadas, rotas e caminhos que deveria
percorrer ao longo da vida. Ao ouvir predição de pessoa estranha,
segundo a qual haveria de ser famoso, deixou “que o menino ficasse
ali, / para sempre / coberto de vagalumes”. O memorial do menino
prossegue em seu lirismo minucioso: “Os morcegos de Sena Madureira /
tinham asas de eucalipto. / Quando estas árvores foram derrubadas /
eles passaram a dormir nos alpendres. / E a insônia tomou conta das
janelas”. O poeta confessa que nasceu numa rua chamada Amazonas.
“Ficava perto do rio / perto do mercado. / Era a rua mais perto do
mundo”. A rua em que o menino dialogava com o futuro poeta nas
esquinas do sonho.
Por
esse tempo, Tufic contemplava “A noite pública / sobre telhados
particulares”. Zéfiro com Soneata Barroca termina com o poema XIX.
Um soneto no qual o poeta lavra esta inscrição para os tempos
vindouros: “sou formiga, sou fonte, sou texugo, / larva na sequidão
dos necrológios. / Quem foi ao bosque, livre-se dos ódios / que
outros lugares roubam-me do estudo; / ali estão nossos ossos e o
veludo / das luas sobre tantos episódios”. Restaria uma alusão
especial aos treze sonetos de que se compõe a Soneata Barroca.
Trata-se de poemas da melhor qualidade, seja pelos aspectos formais
ou pela clarividência com que o poeta celebra as metamorfoses do
cotidiano, onde muitos de nós naufragamos naqueles “instantes sem
razão e sem verso”, a que se refere Carlos Drummond de Andrade.
Sempre imaginei que os verdadeiros poetas são bons em tudo o que
fazem. (Deixo aqui a ressalva de Horácio, em A Arte Poética, segundo
a qual até mesmo o bom Homero tem o direito de cochilar algumas
vezes.) Pouco importa que escrevam poemas rimados e metrificados ou
poemas em versos livres, sem medida e sonoridades coincidentes. Na
épica, na ode, na elegia, no epigrama ou no madrigal, o verdadeiro
poeta sempre diz a que veio. É o que acontece com Jorge Tufic, que
oportunamente publicou plaqueta à maneira dos repentistas
nordestinos ou dos chamados folhetos de cordel. Com o mesmo
“savoir-faire” com que escreve poemas eruditos, onde celebra o amor,
a vida e a morte sob o viés metafísico, Tufic canta, em tom de menor
intensidade, diversos outros assuntos ligados à natureza, ao ser
humano e aos bichos de modo geral. Um exemplo de sua verve nessa
vertente caudalosa da poesia popular: “Ao som, portanto, maduro, /
dessa batalha encourada, / visto a roupa do vaqueiro, / seu gibão,
sua toada / e curto o couro dos bichos / que morrem de madrugada”.
Tufic
está por dentro dos saberes e feitiços dos pajés, pessoas dedicadas
às reflexões e estudos dos fenômenos da natureza que se revestem de
conotações sobrenaturais. Segundo o poeta, em Quando as Noites
Voavam, “os pajés costumam ver uma escada que tem a ponta no
setestrelo e a base na fonte sagrada que alimenta as reservas do
líquido primário” (p. 43). Logo mais adiante, esta informação para
iniciados em estudos amazônicos: “Pelas bordas da fonte, rãs se
petrificam de olhos nos mosquitos. E a linfa, de alegre, não pára de
cantar”. Desconfio que o engenhoso Tufic teria sido eminência parda
de algum pajé para tratar de assuntos relacionados com bruxarias e
outras coisas desse tipo. A segurança com que trafega nos labirintos
e mitologias da selva lhe confere o diploma de pós-graduação nessa
área inacessível ao comum dos mortais. Vejam a intimidade com que
fala o poeta dos poderes da “Cobra Grande, que ajuda o boto a entrar
nas moças surdas aos conselhos do pais”. Pelo discurso poético de
Tufic, a gente fica sabendo que “os filhotes da Cobra Grande deixam
a barriga da moça” que se deixara seduzir... “A água vai subindo,
engole a casa. Nas palhas que submergem, cobrinhas arrastam seu avô
para o fundo das águas”. Surrealismo à flor da pele.
Francisco Carvalho
da
Academia Cearense de Letras
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