Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Francisco Edi de Oliveira Sousa


 

A reinvenção de Roma

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

"A Eneida é a maior audácia literária da Antiguidade", afirma o professor de literatura latina Francisco Edi de Oliveira Sousa. Seguindo a trilha da Ilíada e da Odisséia, a Eneida, de Virgílio, reinventa Roma, narrando fatos anteriores à fundação da cidade

 

Na Roma do século I a. C., surgiu uma interessante prática de divulgação de obras poéticas, as recitações (recitationes). Em locais públicos ou em recintos especialmente construídos para esse fim, os auditórios, autores podiam ofertar suas composições a uma seleta audiência. Um dia, depois de presenciar uma dessas recitações, o poeta Propércio voltou para casa tão impressionado com os versos que acabara de ouvir que resolveu registrar tal sensação em um poema (II, 34), publicado em 25 a. C.: Cedite, Romani scriptores, cedite, Grai! / Nescio quid maius nascitur Iliade (Cedei, autores Gregos, e cedei Romanos! / Nasce algo inda maior do que a Ilíada). Que versos eram aqueles que tanto o encantaram? Eram versos que ainda hoje encantam, naquele dia Propércio ouviu passagens de uma epopéia que Virgílio estava compondo... Nascia a Eneida.

Escrita entre 29 e 19 a. C., a Eneida narra as façanhas de troianos que sobrevivem à destruição de sua cidade e partem em busca de um lugar onde possam reerguê-la, perseguidos pela ira da deusa Juno. A Enéias, filho de Vênus, guerreiro ilustre pela piedade, cabe a missão de chefiá-los. Assim empreendem uma acidentada viagem náutica: contornam a Grécia, passam pela Sicília, por Cartago, no norte de África, até chegarem à Itália, primeiramente a Cumas, depois ao Lácio, a região indicada por oráculos e sinais para a reconstrução de Tróia. Contudo, quando os sofrimentos parecem acabar, eclode um maior, uma guerra contra nativos que não vêem com bons olhos a instalação de estrangeiros em suas terras. Com a ajuda de aliados, os troianos vencem.

Assim o poema termina, mas apenas começa a lenda da origem dos romanos.

Segundo a tradição clássica, a epopéia deve exaltar um povo. Como então os romanos entram nessa história? Bem, a lenda revela que o filho de Enéias, Ascânio, fundará a cidade de Alba Longa, onde seus descendentes governarão muitos anos; nessa descendência nascerá Rômulo, o fundador de Roma. Um dos desafios da Eneida seria, portanto, abordar Roma narrando fatos anteriores à existência dessa cidade; desafio habilmente superado: explorando diversos recursos narrativos, o poema manobra o tempo e lança-se ao futuro, percorre episódios que se estendem até a época de Virgílio. De fato, do ponto de vista da composição, a Eneida é soberba, dentro de uma moldura épica, trabalha modelos e técnicas de diversos gêneros literários.

Os principais modelos são obviamente a Ilíada e a Odisséia, com os quais deveria emular quem ousasse criar uma epopéia na Antigüidade; destacam-se também a tragédia Medéia, de Eurípides, o épico alexandrino Argonáuticas, de Apolônio de Rodes, o épico romano Anais, de Ênio, o poema filosófico Da natureza das coisas, de Lucrécio, o poema 64 de Catulo... Quanto às técnicas, empregando procedimentos da tradição homérica, da tragédia, da poesia alexandrina, da retórica, a Eneida leva ao ápice o processo criador fundamentado na imitação (mímesis).

Como resultado desse labor artístico, o poema oferece a seus receptores vários níveis de compreensão: detrás de episódios vividos por Enéias, vislumbram-se a lenda e a história de Roma, redimensionadas; a política imperial também se manifesta, sobretudo através de Augusto e de sua ideologia de revalorização de antigos princípios morais e religiosos; filosoficamente, além de passagens pitagóricas, platônicas, epicuristas, há uma forte configuração estóica de Enéias, herói que conjuga muitas virtudes e funciona como um modelo aos romanos... Desse modo, a Eneida reinventa Roma.

Qual a repercussão de uma obra dessa magnitude e de seu autor? No canto X, a personagem Turno, tentando animar seus soldados em uma batalha, diz: ''Audentis Fortuna iuuat'' (''A Fortuna ajuda os audaciosos''). A Eneida é a maior audácia literária da Antigüidade, e a Fortuna a ajudou. Os versos de Propércio mostram que, antes mesmo de ser concluído, o poema já impressionava os escritores que o ouviam, e muitos utilizaram-no como modelo temático e artístico, como Ovídio, nas Heróides, Dante, na Divina Comédia e Camões, em Os Lusíadas. Já Virgílio... esse virou mito. O amigo Horácio o considerava a metade de sua alma (Odae, I, 3). O misticismo medieval o transformou em bruxo, em profeta do cristianismo. E Dante, na Divina Comédia, rendeu-lhe uma sublime homenagem ao escolhê-lo como guia em sua viagem através do Inferno e do Purgatório; no canto I, ao encontrar Virgílio, Dante exclama, ''curvando respeitoso a fronte: 'Oh! És então Virgílio, fonte de onde jorra em abundância a vibração poética? Ó glória, fanal e luz dos demais poetas; valha-me agora o muito tempo em que com grande afeto em teus versos me abeberei. És meu mestre, meu modelo único, e a ti exclusivamente devo o bom estilo que o mundo festeja em meus versos!.' (tradução de Hernâni Donato).

Na Roma do século I a. C., nasceu a Eneida. Essa epopéia não fundou a literatura latina, no entanto redimensionou de tal forma a concepção de obra poética pautada na imitação que podemos considerá-la um poema fundador da grande literatura latina... da grande arte literária.

Francisco Edi de Oliveira Sousa é professor de Filologia Românica, Língua e Literatura Latina da Universidade Federal do Ceará - UFC.

Para saber mais sobre a Eneida:

GRIMAL, Pierre. Virgílio ou O Segundo Nascimento de Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HARDIE, Philip. Virgil's Aeneid: Cosmos and Imperium. Oxford: Clarendon Press, 1989.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica, vol. II: Cultura Romana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
VASCONCELOS, Paulo Sérgio de. Efeitos Intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP: Fapesp, 2001.

 

 

Publius Virgilius Maro

Leia Públio Virgílio Marão

 

 

 

 

 

04.08.2005