Glauco Mattoso
A patriota
Ela é bem gostosa. Tem trinta e tantos
mas passa por vinte e poucos, com boa vontade. Não falta nada pra
quem gosta de redondezas e fofuras. Sobra um pouco pra quem gosta de
peito que cabe na mão. Pra dona da butique do Itaim Bibi, ela não
tem classe nem a 50 metros. Pros donos de botecos do Itaim Paulista,
a meio quilômetro ela é mais que classuda, é comível. E mora no
pedaço.
Mas tem dono. É casada com um cara
fechado, que os outros respeitam mais pelo que ameaça calado que
pelo que faz ou diz. Quem diz é a vizinhança, agora que a situação
arrochou e ela teve que começar a trabalhar fora, pra reforçar o
orçamento. Juram que ela foi avistada em outras companhias, na ida
ou na volta do trampo. Na verdade a companhia é um só, aliás mais
feio que o marido traído, embora regule com ele em tudo o mais,
altura, peso, idade e tamanho do pau. Mais feio por causa dum bigode
mal aparado, caído nos cantos. A traição até que é discreta pros
padrões suburbanos. O outro a acompanha até em casa na volta do
trampo, fica um pouco e cai fora antes da volta do marido. Este já
desconfia desde o começo, não por causa de avisos ou fofocas, mas
pelo comportamento dela na cama e pelos papos daquela hora.
Agora vamos ao dilema do cara. O qual
tem muito mais a esconder que a mulher. Já foi bandido, e perigoso.
Matou, roubou, quase chefiou quadrilha, mas foi único sobrevivente
de guerra com a polícia, capturado, torturado, preso, foragido,
procurado. Tudo isso noutro Estado e noutra década. Resolveu começar
vida nova, mudar a identidade. Conseguiu despistar todo mundo com
documentos falsos, cara diferente (sem bigode), nome de paz. Acha
que compensou. Agora é só não se meter em encrenca, não ser fichado
de novo, que o velho delinqüente fica esquecido.
Mas nessa de apagar o passado ele vai
fermentando uma paranóia, fruto dum cagaço subterrâneo, germinado
desde o tempo de assaltante. Matou, é verdade, mas morrendo de medo
de morrer. Sempre foi assim. O que pros outros parecia coragem era
desespero. Agora o medo vem da lembrança somada com a esperança de
que ninguém descubra, a começar pela mulher. Pra isso ele a trata
com respeito, não faz tudo que gostaria na cama, ou pelo menos não
do jeito que gostaria.
Mete por trás e põe pra chupar, mas
com modos, pedindo em vez de mandar, tomando cuidado pra não
machucar. Ela corresponde ao tratamento, mas com o tempo a coisa vai
ficando meio indiferente. Falta entusiasmo. Isso aparece nos papos,
justamente agora que ela começa a trabalhar fora. Não demora e a
relação vai pro brejo. Ele deixa claro que desconfia e ela não
esconde que não tá satisfeita. Mas falta o flagra.
Pra precipitar as coisas, o outro se
insinua como amigo do casal, a pretexto de ser colega de trabalho da
mulher. O marido assina atestado de corno manso quando concorda
tacitamente que o outro a traga até em casa. A partir daí, é questão
de tempo pro desfecho. Ou ele vira corno berrante e lava a honra ou
perde a mulher pro outro.
O estopim é algo que ela diz pro
marido, tipo "Você não chega aos pés do Fulano, não serve pra
engraxar o sapato dele." e algo que o outro disse pra ela e ela
repete pro marido: "Ele falou que você não é homem pra mim...". Ele
reage, é claro, mas só de boca, com ameaças. Ela faz pouco caso. A
essa altura a cama tinha ido pro espaço.
Ele já começa a se apavorar com o rumo
da situação, mas pra não entregar tudo de bandeja resolve tirar
satisfação com o outro. Ainda trabalha com a chance de que ela
esteja inventando pra lhe fazer ciúme, ou que seja verdade mas o
outro recue se for chamado às falas. Mas não só não recua como
confirma descaradamente: "Falei pra ela e repito na tua cara: Tu não
é homem pra ela.". E acrescenta mais: "Ela mesma já confessou que tu
não serve pra me engraxar o sapato..." -- e mostra o sapato usado,
mas permanentemente lustroso, sua segunda mania (a primeira era o
bigode torto). O marido tenta retrucar na base da ironia, depois se
faz de sério e parte pra mais um pouco de ameaça. Mas essa de "da
próxima vez vai ter" não cola, a moral já era.
Passa a noite em claro (enquanto ela
ronca) equacionando o dilema. Se chama o cara pra briga, vai apanhar
e fugir da raia, o vexame vai ser pior. Se atirar na mulher, no
outro, ou nos dois, vai ser fichado de novo, e nem a honra poderá
livrá-lo da cadeia pelos outros crimes que virão à tona. Além disso,
vai ser fogo. Ter que abrir mão da sua privacidade pra dar
entrevista pro Gil Gomes no "Aqui Agora". Que fazer? De duas uma: ou
larga tudo e some, ou se sujeita. Sumir significa ter que começar de
novo, e talvez ser pego. Se sujeitar pode ser barra, mas dá tempo de
pensar em outra solução, ou de esperar que a sorte mude e o cara
resolva deixá-los em paz, ou ela se arrependa. Uma alternativa se
desdobra em outras. É só excluir as piores hipóteses. Isso na cabeça
dele. Pois na dela a última coisa que passa é voltar atrás. Pra ela
a aventura tá começando, as perspectivas são excitantes, e o marido
merece mesmo uma lição.
Afinal, ela sempre quis que seu homem
fosse mandão, exigente, convencido, sacana. O outro era tudo isso, e
ela gozava como nunca. A humilhação do marido é um tempero a mais
nessa gororoba: sabor de desforra pelo tempo que esperou pra ter
prazer total. Isso ela fala na cara do marido, quando ele, no dia
seguinte, antes de sair pro trabalho, dá o braço a torcer e admite
que ia propor ao outro um acordo.
Quando volta do trabalho (faz cagada
no serviço, leva chupada do superior), a mulher e o outro já estão
em casa jantando. O outro nem espera que ele participe do rango. Vai
se antecipando e impondo condições: "Tua mulher não é mais tua,
cara. Ela já me contou que tu tá pedindo arrego. Pra mim não faz
diferença. Se tu quisesse engrossar, ia ser pior. A gente já tinha
combinado até acabar com a tua vida, se precisasse. Se tu prefere
facilitar as coisas, melhor pra todo mundo. Fica aí no teu canto e
não chia, que a gente fica numa boa. Senão, conheço gente que pode
ajustar umas continhas com a tua pessoa, cara."
Ele já tá arrasado e ainda leva um
susto. "Que contas? Tem mais gente nisso?"
O outro: Por enquanto não tem, mas
tenho amigo aí nas bocas que pode me dar uma mão. Uma mão branca,
sabe como é? (Ele nem ousa perguntar se os amigos são da lei ou
fora. Não faz mesmo diferença. Pode ser blefe, mas o caldo já
entornou. Sem querer (querendo), o outro lhe pôs o dedo na ferida da
paranóia. Ele atira a toalha.)
Ele: Tudo bem, cara. Não precisa nada
disso. Se eu não sirvo mais pra ela, não vou ficar no caminho de
vocês. Se eu tivesse pronde ir, saía já. Mas não posso largar tudo,
emprego, casa...
O outro: Problema seu. A casa agora é
nossa, e ela não vai ficar cozinhando e lavando pra você. (Antes era
tu, agora é você)
Ele: Não, não, eu faço tudo, eu sei me
virar.
O outro: É, mas se quiser ficar vai
ter que fazer também pra ela e pra mim. Isso ela já me falou que faz
questão.
Ela: É isso aí, pra ficar vai ter que
trabalhar pra nós. (Aparteia pra mostrar que tá sintonizada com o
amante. Ele abaixa a cabeça e seu olhar vai cair bem no sapato
lustroso do outro.)
Ele: Tudo bem, vai ser do jeito que
vocês quiserem. (O outro ri com um lado do bigode, balança a perna
cruzada, mexe o pé dum lado pro outro. E dá o golpe de
misericórdia.)
O outro: E tem mais. A partir de agora
durmo aqui quantas vezes quiser. Hoje, por exemplo, vou passar a
noite com ela, e não quero você por perto, tá entendendo?
Ele: Eu posso dormir na sala...
Ela interrompe: Nada disso. Na sala
pode atrapalhar. Vai dormir no quartinho! (Ele não discute. O
quartinho fica no quintal, é uma edícula ridícula que serve de
despejo. Vai ter que mudar uns troços de lugar, desenrolar um
colchonete. Mas antes de trancar por dentro a porta da cozinha/dos
fundos (lhe deram tempo de mastigar umas sobras e lavar a louça),
ela se empolga com o próprio sadismo. Tem uma idéia, e vem trazendo
o par de sapatos do outro, que já tava de chinelo (o chinelo do
marido) vendo televisão.)
Ela: Toma, pega esse sapato e devolve
amanhã, en-gra-xa-do, tá ouvindo? Assim você mostra que serve
pralguma coisa. É bom pra passar o tempo. E não pensa em sacanagem,
viu? (Ela ri, mas a gargalhada do outro se escuta mais alto lá da
sala. Ele se fecha no quartinho, passado de vergonha. O pior não foi
eles se trancarem. O pior é que ela falou sério, porque é no
quartinho que fica o material de limpeza, inclusive graxa e flanela.
Tudo bem, ele não vai mesmo conseguir dormir. O jeito é não
contrariar os dois. Trata de passar a graxa, a escova, o pano.
Enquanto segura um pé de sapato, examina bem o tipo, o tamanho, a
cor. É um modelo social barato, preto, já deformado pelo uso, mas
conservando algum brilho. Tamanho 41, o mesmo seu. Põe-se a divagar:
se é verdade que o pé é proporcional ao pau, então o do outro é
igual. Não dá pra entender o que foi que ela viu naquele vagabundo.
Não tem nada que ele não tenha. Lembra como foi bom no começo, como
ela gostava que ele lhe lambesse o peitão, chupasse os bicos que nem
neném. Será que o outro podia fazer melhor? Ou será que não é pelo
que se faz, mas pelo que se diz enquanto faz? O cara deve ser um
desbocado, um sujo, e ela, se não era puta, tinha vocação e tá se
revelando agora. Tudo isso ele rumina mais com dor que com ódio, e
sem tirar o olho do sapato, enquanto esfrega devagar, apalpando o
contorno do solado. Uma lágrima cai no couro e ele de repente
vislumbra uma hipótese a mais: se matar. Mas pisca, deixa o olho
clarear, encara o sapato em suas mãos e resiste ao pensamento
mórbido: não, esse cafajeste não merece mais esse presente, e ela
não vale tanto. Vamos viver e ver no que dá. Tem que ter um jeito.
Mesmo porque, depois desta, o cara vai se esbaldar às custas dele,
cada vez mais. A solução não pode demorar.
E não dá outra. Na manhã seguinte não
há maiores incidentes. O marido faz o café, os outros se servem, o
cara pega o sapato de volta, checa, faz cara de "dá pro gasto",
calça e sai com a mulher. Ele também se manda antes que se atrase e
complique sua situação na firma. Mas à noite, quando regressa, os
outros ainda estão fora. Ele vai até o quarto. Olha a cama de casal
desarrumada, confere os cheiros do ambiente, mas o cigarro do outro
é mais forte e predomina. Volta pra cozinha, prepara algo pra comer,
janta só (faz tempo que não), depois fica andando pela casa sem
conseguir se sentar nem pra mudar de roupa. Nisso eles chegam. Estão
animados, bem humorados, e nem lhe dão atenção. Ele se dispõe a sair
pro quartinho quando o outro bate palma.)
O outro: Ei, ei, onde pensa que vai?
Ele: Desculpa, eu não queria
atrapalhar. Quer comer alguma coisa?
O outro: Comer, nós já comemos lá
fora, e eu vou comer mais lá dentro daqui a pouco, né paixão?
Ela: Só. Que tal uma limonada? Tá
calor. Ele faz pra nós.
O outro: Não, faz você. Enquanto isso
ele vai dar um lustro no meu sapato, que pegou poeira. (Ela ri da
idéia de ver o marido ainda mais humilhado, mas sobra uma pontinha
de dúvida: o outro não podia mandá-lo fazer as duas coisas? O amante
já ligou a TV e está acomodado no sofá, uma perna esticada e o outro
pé apoiado na mesinha de centro, o degrau do salto encaixado na
borda da mesa. O marido, calado, vem com a flanela, se abaixa e
começa a passar no pé apoiado. Não ajoelhou, só apoiou um joelho no
chão e o braço no outro joelho. Mas sua posição não agrada o
amante.)
O outro: Sai da frente da tela. Abaixa
essa cabeça. Tá com vergonha de ajoelhar? Agacha aí, porra. (Ele
sente a cara esquentar de vergonha, chega bem perto do sapato, evita
olhar na direção do outro pra não ver aquele bigode rindo. Mas ouve
a risada da mulher, que acompanha a cena da cozinha, sem parar de
espremer o limão.)
Ela: Puta, meu, que cena! Nunca
imaginei meu marido se rebaixando tanto. Conta pra ele o que a gente
fez na cama ontem!
O outro: Pra quê? Ele deve imaginar.
Vai ver que nem dormiu pra ficar batendo punheta, fala a verdade! (O
marido calado. Pra não ter que responder nada, ele se concentra mais
na tarefa, procura mostrar afinco, não desvia o olho do sapato.)
Ela: É, vai ver que ele ficou com
vontade de participar. Já pensou?
O outro: Nem pensar. Não faço suruba
com corno.
Ela: Nem pra fazer ele de viado? Põe
ele pra chupar a gente, faz ele assistir enquanto eu te chupo...
O outro: Nada disso. Corno e viado
comigo não tem vez. Deixa isso de lado, que nós dois já temos muito
que fazer. Se ele quiser virar viado, que se vire sozinho. Chupa o
meu sapato, se quiser. (O marido quer sumir pelo chão adentro. Torce
pra que os dois parem com aquilo/aquela tortura, e pra sua sorte a
mulher já vem com a limonada. O outro se endireita no sofá, dispensa
o marido, faz mulher sentar junto e o marido é convidado a se
retirar pro quartinho. Já ia saindo, quando o outro se lembra.)
O outro: Antes, traz o chinelo e me
tira o sapato e a meia. (Ele desata os cadarços com cuidado,
desajeitado, encabulado com a cara de riso da mulher. Descalça um
pé, depois a meia, põe dentro do sapato. Faz o mesmo no outro pé.
Então percebe que a mania de lustro do cara não confere muito com o
cheiro forte do pé suado, que o cigarro tinha disfarçado no quarto.
Calça o chinelo no pé do cara e se levanta.)
Ele: Posso ir agora?
O outro: Pode. E leva o sapato pra
passar mais graxa. Vê se tapa esse branco do bico. Acho que tá na
hora de comprar um pisante novo. (O marido leva o par pro quartinho.
Sua por todos os poros. Tira a roupa, se abana com a camisa, ajoelha
no colchonete. Lhe vem um ódio da mulher, aquela abusada, um ímpeto
de fazê-la engolir aquela arrogância fodendo-lhe a boca. Chega a
ficar de pau duro imaginando se na posição do outro, enfiando-lhe o
caralho até a garganta, aquela vaca, merece o macho que arranjou.
Cai de bruços no colchonete, o sapato está no lugar do travesseiro.
Ele desafia a própria desonra. Manda o desmando às favas. Mostra pra
si mesmo que tira aquilo de letra, é a única saída. Olha o sapato
bem de perto, cheira a meia, cheira de novo, mais fundo. Xinga-se a
si mesmo. Corno. Viado. Foi isso que você conseguiu, panaca. Pega no
sapato pelo calcanhar, aproxima o bico da boca, abre os lábios e
deixa entrar o mais que pode, até a sola doer na língua. Depois tira
fora, ofegante, olha com raiva, decidido a se vingar pelo novo e
pelo velho, foda-se o futuro. Ele não sabe, mas ela costumava
segredar pruma amiga: sua maior frustração é que nunca tinha tido o
gostinho de ver dois homens brigando por sua causa.)
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